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1. Repetiu-se, muitas vezes, que tanto a
religião como a irreligião dos portugueses eram bastante
analfabetas. Basta, porém, um acontecimento relevante para que os
meios de comunicação social mostrem a nossa abundância em peritos do
vasto e complexo mundo das religiões. Uns espantam-se, outros
duvidam, mas o nosso génio repentino tem destas coisas. Seria,
porém, injusto não reconhecer que o panorama da nossa iliteracia
religiosa não se tenha vindo a alterar.
Importa, no entanto, não esquecer de onde
vimos, se quisermos compreender a alergia do Papa Francisco ao
clericalismo e ao proselitismo, assim como as resistências ao
espírito das suas reformas. A espantosa entrevista à jornalista
argentina, Elisabeta Piqué, merecia uma demorada visita que terei de
adiar[1].
Mas acima de tudo, se não quisermos confundir o combate aos
movimentos terroristas do “Estado islâmico” com o Islão, importa
compreender a calda de cultura religiosa de que ele se reclama. Uma
viagem ao nosso passado católico pode ajudar-nos a compreender o
outro e a ser exigentes no diálogo inter-religioso.
Um prestigioso investigador do Centro de
Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica, Afonso
Rocha, mostrou como no século XIX, mais precisamente, de 1850 a
1910, se processou, em Portugal, uma grande mudança na filosofia da
religião. Numa obra notável – coroa de várias outras - apresentou e
caracterizou as figuras que mais se destacaram nesse significativo
período: Pedro Amorim Viana, José Maria da Cunha Seixas, Teófilo
Braga, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Sampaio (Bruno) e
Basílio Teles. Manifestaram-se em ruptura com o catolicismo da
Igreja de Roma, de então, enquanto adversária da razão, da
consciência e do progresso, mas não eram ateus[2].
2. Por um lado, era o próprio
catolicismo português que demonstrava continuar completamente preso
àquilo que representava a tradição católica no seu pior,
designadamente no respeitante à desconfiança para com tudo o que
fosse afirmação da liberdade de consciência e de religião, da razão
e do progresso, intransigentemente dogmático e tradicionalista na
sua prática teológica e pastoral, não indo além de um posicionamento
de “reacção”, de “apologética” e de “polémica” em relação a tudo que
tivesse sabor a “moderno”.
Segundo este autor, o catolicismo português,
ao aproximar e identificar as concepções e as posições destes
filósofos e pensadores com o racionalismo, o materialismo, a
irreligiosidade e o ateísmo estava a ser guiado por um espírito
claramente inquisitorial, intolerante e retrógrado. Com o
inquestionável apoio do magistério oficial do Papa da altura, o
comportamento teológico-pastoral mais corrente era o de suspeitar e
condenar tudo o que fosse concepções e posições de sabor moderno,
designadamente as que pudessem minar a doutrina e os dogmas do
catolicismo.
Por outro lado, o novo pensamento português,
identificado com a consciência, a razão e o progresso, propunha uma
sociedade baseada na racionalidade positivo-científica, servida por
uma religião de liberdade de consciência e de tolerância. Seria uma
religião mística e da razão, sem hierarquia e sem normas, tão alheia
à revelação positiva e ao carácter institucional, organizado, como
às pretensões do dogma de uma “religião verdadeira”, única e
universal, presente na “Igreja de Roma”.
3. Para Afonso Rocha, os pensadores e
filósofos que estudou – em comunhão com outros companheiros
estrangeiros - longe de poderem ser interpretados e apodados de
irreligiosos e ateus, tendo em conta as suas concepções e posições
sobre o religioso, deverão ser considerados como profetas e
agentes de uma concepção religiosa assente em valores perenes e
imprescritíveis.
Quais são esses valores? Uma religião
essencialmente mística, de âmbito universal, cujos “dogmas
sacratíssimos” não poderão deixar de ser os da liberdade de
consciência, da tolerância, da razão e do progresso. Conforme os
tempos e lugares, os povos e as culturas poderão traduzi-los em
diversas e grandes religiões.
Para mostrar a incapacidade do pensamento
católico em compreender o repto do pensamento moderno, a ruptura com
o catolicismo de Trento, a liberdade de consciência e de religião, o
autor observa que só na década de sessenta do séc. XX, com a
“Declaração sobre a Liberdade Religiosa”, no concílio Vaticano II, é
que a Igreja conseguiu dar esse salto. Acrescentaria: sem esse
salto, estaríamos na situação cultural e religiosa do Islão.
Foi muito importante ver aqueles Chefes de
Estado de vários continentes, unidos contra a barbárie e pela
liberdade de todos. Mas, diante das suas responsabilidades
históricas e actuais, que estão a fazer para evitar tragédias
semelhantes?
Desfilar não pode ser o único objectivo
daquela grande convocatória. O que importa é tocar a reunir para
encontrarem, nas zonas de conflito, onde reina e se desenvolve a
barbárie, os meios adequados para a suster e prevenir.
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