1. A
sacralização da dimensão humana da Igreja e das respectivas
estruturas acaba por impedir a sua reforma permanente e encobrir
situações recentes de triste memória.
A
Alegria do Evangelho* mostra que o Papa Francisco não tem acções
nas indústrias de conserva: “Sonho com uma opção missionária
capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os
horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um
canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual do que
à auto-preservação”.
Este
sonho deve concretizar-se em processos de mudança nas paróquias,
nos movimentos e nas dioceses. O Bispo deve estimular organismos
de diálogo e participação nos quais todos sejam ouvidos e não
apenas àqueles que estão sempre prontos a lisonjeá-lo.
Jorge
Bergoglio comprometeu-se a praticar aquilo que pede aos outros,
isto é, a trabalhar na conversão do Papado e das estruturas
centrais da Igreja universal. Importa dar conteúdo à
colegialidade e tornar as Conferências Episcopais sujeitos de
atribuições concretas, mesmo doutrinais. A centralização
excessiva não responde às necessidades actuais da evangelização
a partir de situações sociais e culturais tão
diversificadas. Este argentino recusa a consagrada receita da
rotina: fez-se sempre assim! É preciso ser ousados e criativos
na tarefa de repensar objectivos, estruturas, estilos e métodos
evangelizadores das respectivas comunidades. Sem identificação
comunitária dos fins e dos meios, o sonho não passa de uma
fantasia (nº 27-33).
2.
Donde poderá vir a energia para tanta desenvoltura reformadora?
Do encontro com o núcleo essencial do Evangelho. É este que dá
sentido, beleza e fascínio ao novo estilo missionário, que faz a
triagem entre o principal e o secundário e vence essa obsessão
de amontoar doutrinas desconexas impostas à força de insistir no
ridículo.
Bergoglio retoma, do Concílio Vaticano II, uma perspectiva
entretanto esquecida: “existe uma ordem ou hierarquia das
verdades da doutrina católica, pois o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente”. Uma das tarefas teológicas
mais urgentes consiste em passar, a pente fino, certas posições
do magistério eclesiástico declaradas irreformáveis, certamente
para evitar questões incómodas. Quem poderá fechar o futuro ao
Espírito de Deus?
O Papa
retoma o ensino de S. Tomás de Aquino para destacar que também
na mensagem moral da Igreja existe hierarquia de virtudes e
acções que delas decorrem. ”O elemento principal da Nova Lei é a
graça do Espírito Santo, manifestada através da fé que opera
pelo amor”. Relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a
maior de todas as virtudes, pois compete-lhe debruçar-se sobre
os outros e – o que mais conta na realidade - remediar as
misérias alheias. Tudo o resto só existe para secundar e
exprimir o Evangelho da graça, do amor e da liberdade que exige
e supera a justiça (S. Th. I-II, 66; 106-108).
Bergoglio conhece bem as consequências nefastas nas orientações
pastorais, quando esta hierarquia não é respeitada e as virtudes
que deveriam ser as mais presentes na pregação e na catequese –
a caridade e a justiça - são as mais ausentes! Acontece a mesma
coisa quando se fala mais da lei do que da graça, mais da Igreja
do que de Jesus Cristo, mais do Papa do que da palavra de Deus
(nº 36-38).
A
moral cristã não é uma ética estoica, uma ascese, uma mera
filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. É a
resposta de amor ao amor que nos amou primeiro.
3.
Este Papa resolveu descongelar a liberdade e o pluralismo na
interpretação da Palavra revelada, honrando o trabalho dos
exegetas e dos teólogos, assim como o pensamento filosófico e as
ciências humanas. Serve-se de Tomás de Aquino para rejeitar o
sonho de uma doutrina monolítica defendida por todos. O
Evangelho é multiforme.
O
empenhamento dessacralizador do novo hóspede da Casa de Santa
Marta põe em causa costumes, alguns muito radicados no decurso
da história da Igreja, mas que não têm ligação directa ao núcleo
de Evangelho. Diz a mesma coisa de normas ou preceitos eclesiais
que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não são
canais de vida. Não tenhamos medo de os rever!
Recorre a
Tomás de Aquino para sublinhar que os preceitos dados por Cristo
e pelos Apóstolos ao povo de Deus “são pouquíssimos”. A Igreja
não deve transformar a nossa religião numa escravatura, quando a
misericórdia de Deus quis que ela fosse livre e libertadora. A
Igreja de portas abertas e enlameada pelos caminhos de todas as
periferias o mundo, encontra os passos de Cristo (nº 37-49)
O guia
do Papa, no seu programa reformador, é S. Tomás de Aquino, cuja
novidade o espanta. Umberto Eco lembrou que, desde os finais do
séc. XIX até aos nossos dias, uma corrente conservadora tentou
transformar um incendiário, o condenado do séc. XIII, num
bombeiro.
Esperemos que o irrequieto Bergoglio continue a desassossegar as
Igrejas, as religiões, a banca, as sociedades, os governos para
que se coloquem ao serviço da justiça.
P.S. A
Sophia não precisa nada do Panteão. O Panteão Nacional precisa
muito da Sophia.
Público, 06.07.2014
*
Nesta crónica limitámo-nos a tocar em alguns números do 1º cap.
do E.G.
|