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BENTO DOMINGUES, op
Eu já não
acredito no Papa Francisco (1 e 2)
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Bento Domingues. Frade da Ordem
dos Dominicanos, teólogo, professor e escritor. |
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Eu já não
acredito no Papa Francisco (1)
1. O Domingo passado não foi de grande
festa para toda a Igreja. Está em curso um Sínodo dos Bispos no qual
foi possível discutir temas considerados incómodos, como o do
acolhimento eclesial dos homossexuais e dos divorciados recasados.
Do relatório final da primeira etapa deste Encontro sobre a família
esperava-se mais e melhor. Por outro lado, a beatificação do papa
Paulo VI, responsável da Humanae Vitae (HV), - adiando
questões que há muito deveriam estar superadas – também não foi um
sinal muito encorajador. Mais do mesmo.
Não vale a pena dizer que isso não tem
importância. Cada um ficará onde já estava. Os casais que se
identificam com a doutrina da HV e a da Familiaris
Consortio (J. Paulo II) suspenderam os seus receios. Quem
aguardava, para já, uma alteração dessas posições, terá de esperar
por melhores dias. O Sínodo sobre a família não está encerrado. Cada
dia que passa, a realidade vai mostrando que a “Pastoral Familiar”
não é a mais adequada, pois se “os pastores” conhecessem e
escutassem as suas “ovelhas” não se contentariam apenas com as do
rebanho privilegiado.
O Papa Francisco lançou uma esperança e, na
sua prática, mostra-se fiel à Alegria do Evangelho. No
entanto, foi-se apercebendo de que os apelos feitos à hierarquia da
Igreja não têm tido os frutos desejáveis. Sentiu como estavam
activos, na preparação e realização do Sínodo, os funcionários da
indústria da conserva eclesiástica, ao ponto de ter de afastar o
cardeal Raymond Burke, presidente do Supremo Tribunal da
Assinatura Apostólica (Supremum Tribunal Signaturae Apostolicae)[1].
Mario Bergoglio surgiu com um programa
de reforma do papado e da cúria romana para lançar a Igreja como uma
realidade evangelizadora, em todas as suas instâncias, vendo o mundo
e actuando a partir das periferias. Trabalha por uma Igreja, toda
ela, em movimento. Seria um desastre se as conferências episcopais,
as dioceses, as paróquias, os movimentos, as congregações religiosas
se comportassem como meros observadores das iniciativas, das tomadas
de posição, das intervenções do Papa. É a forma mais requintada de o
atraiçoar. Mas, enquanto uns ficam parados, outros atiram-lhe
pedregulhos para o caminho.
Não podemos deixar este Papa sozinho e
comportarmo-nos apenas como espectadores benévolos e simpatizantes
das suas atitudes.
2. Seria péssimo que agora nos
deixássemos enredar em discussões que se arrastam desde a HV,
desde 1968. O mundo não pára e o próprio passado, se não for
congelado, está sempre em devir. Um dos méritos deste papado tem
consistido, precisamente, em descongelar doutrinas, atitudes, normas
consideradas irrevogáveis, definitivas, situadas fora do tempo e
valendo para todo o sempre. Entrar numa casuística de moral sexual,
dentro de um universo humano isolado por uma concepção de modelos
imutáveis de família, é o caminho do farisaísmo.
Ganharíamos muito se lêssemos e
interpretássemos as narrativas dos Evangelhos como belas e eficazes
peças de teatro. Têm acção, controvérsias, actores e existem para
colocar uma assembleia em movimento. A nossa tentação é a de extrair
desses textos apenas princípios doutrinais, sentenças e normas de
conduta, reduzindo tudo a lições de moral. As reduções de Jesus eram
de outro tipo.
3. Neste Domingo, passada a discussão
sobre o tributo a César e a história hilariante da mulher de sete
maridos da lei bíblica – de quem será ela depois da ressurreição? -
surge um aproveitamento dos escribas contra os fariseus. Vale a pena
ler e imaginar.
”Constando-lhes que Jesus reduzira os
saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. Um deles,
que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: «Mestre, qual é o
maior mandamento da Lei?» Jesus disse-lhe: Amarás ao
Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com
toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O
segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes
dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.» (Mt 22, 34-40 e
Mc 12,28-34; Lc 10,25-28; Jo 13,33-35)”.
S. Paulo ainda foi mais sintético: “não
fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos
outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. De facto: Não
cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, bem
como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: Amarás
o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo.
Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei (Rm 13, 8-10)”.
Creio que o Papa Francisco acredita
nisto.
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Eu já não
acredito no Papa Francisco (2)
1. O título da crónica do Domingo
passado – Eu já não acredito no Papa Francisco - foi
censurado por uma razão óbvia: o título tem de exprimir o conteúdo
do texto. Ora, o meu artigo era um elogio do pontificado do papa
Bergoglio e uma convocatória para não o deixarmos só, no momento em
que é acusado de instalar o “PREC”, na Cúria Romana. Texto e título
estão em mútua oposição. Aceito e agradeço o reparo.
Além disso, o emprego corrente da expressão -
“eu já não acredito” – revela um desapontamento, uma decepção com o
Pontífice romano, observável em diferentes quadrantes: para uns, ele
já foi longe demais; para outros, ao ser demorado na reforma da
cúria, será ela a tornar impossível continuar a obra começada. Ao
espelhar esta situação, visava algo muito diferente que insinuei, na
última linha, sem mais explicações.
Vamos, então, à substância. Não sou católico
por causa do Papa Francisco, cujo projecto e práticas me dão muita
alegria, não podendo dizer o mesmo de todos os que conheci, mas
nunca poderei esquecer a minha dívida a João XXIII.
Causam-me sempre bastante tristeza os
desabafos das pessoas que deixam de “ser católicas” devido a certas
posições da hierarquia eclesiástica. Nessas alturas, lembro-me da
reacção do Padre Chenu, quando, em meados do século passado,
louvaram a sua “obediência”, em vez de revolta contra as condenações
romanas a que fora submetido. Escreveu um texto para dizer que não
se tratava de obediência: foi e é a fé sobrenatural em Jesus
Cristo, que recebi na Igreja, mas que não é propriedade de nenhuma
instituição humana ou religiosa, que me sustenta.
Chenu, grande medievalista e renovador do
conhecimento histórico de Tomás de Aquino, lembrava que, para este
teólogo, o terminal do acto de fé não são os enunciados do Credo,
mas a misteriosa realidade divina. Estes são apenas mediações para o
encontro com a Verdade (II-II, q.1.a.2 ad 2). Para S. Tomás, a fé
teologal refere-se à própria realidade de Deus e não a uma criatura,
como por exemplo a Igreja. Por isso, no Credo, quando se diz
creio na Santa Igreja Católica, esta expressão deve ser
entendida como referida ao Espírito Santo. Daí que seria preferível
dizer simplesmente: creio no Espírito Santo que santifica a
Igreja (II-II, q.1.a.9).
Trazer para aqui estas subtilezas parece uma
tentativa para ignorar os debates actuais em torno da fé cristã e
dos seus problemas, num contexto que oscila entre o ateísmo, o
fideísmo e as espiritualidades à la carte, mais ou menos bem
adocicadas.
2. A seguir à 2ª Guerra Mundial,
certas correntes teológicas tentaram responder à seguinte questão:
que sentido tem, para a construção do Reino de Deus, o trabalho e o
lazer em que gastamos a maior parte do nosso tempo? Desenvolvia-se,
então, a teologia das realidades terrestres e do sentido da
construção da História Humana. Desejava-se viver o Cristo todo na
vida toda. Os próprios padres deixavam a sacristia e iam para as
fábricas aprender o que custava a vida dos trabalhadores. Dizia-se
que estava mal, porque mãos consagradas e dedicadas a levantar a
Hóstia na missa não se podiam manchar no óleo e na ferrugem. Nenhum
trabalho, porém, era incompatível com as mãos daqueles e daquelas
que o Baptismo consagrou. A “teologia do laicado” foi superando os
limites da teologia da Acção Católica. O Vaticano II, na Gaudium
et Spes, assumiu as dimensões incarnacionistas da fé cristã: um
futuro de justiça e de paz para todos não é uma loucura. É uma
tarefa! A fé é uma esperança que revela uma dimensão que a razão
esquece e reprime: o horizonte dos seres humanos não se limita à
sua condição mortal. O futuro não é apenas o resultado das
nossas acções e do sacrifício de gerações inteiras, para que
aconteça um mundo em que se possa viver. Este futuro seria um engano
para todas aquelas e aqueles que foram escravos da construção
daquilo que nunca poderão ver nem gozar. Só a memória infinita do
Amor por cada ser humano pode vencer a vala comum.
3. No dia consagrado a não esquecer
aqueles que já encontraram a Casa da Alegria, lembro o poema de Frei
J. Augusto Mourão, escrito para uma música muito bela que se canta
no Convento de S. Domingos:
Não pode a morte reter-me na cruz. Não
pode o mundo arrancar-me à raíz. Ao pé de Deus hei-de sempre viver.
Com Deus cheguei e com Ele vou partir.
Não poderá corromper-se a alegria. Não
pode o fogo extinguir-se no céu. Meu ser demanda a morada do Deus
que guarda os nomes no livro da vida.
Não pode a morte apagar o desejo de ver a
Deus face a face e viver. A Deus busquei toda a vida e vivi de
acreditar no infinito da vida. Não nos reduz o escuro da noite.
Não pode o amor esquecer o que o altera.
Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos. Já ouço a voz do amigo que
vem.
Não pode o mar esquecer o que o salga.
Não pode a areia esquecer-se do mar.
Meu Deus, meu Deus, vem buscar-me ao
deserto. Que em tuas mãos entreguei a minha sede. A Tua vida me toma
e transporta. Teu sangue inunda meu corpo de paz. Eu vejo as mãos do
Senhor glorioso. Nas minhas mãos a memória de Deus.
A Ti, Senhor, meus desejos regressam.
Findo o andar, disponíveis as mãos. Abre meu corpo ao devir que não
sei. Eu chamo a esperança pelo nome de Deus.
Público, 02.11.2014
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[1]
O Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica julga: 1. as queixas de
nulidade e os pedidos de restitutio in integrum contra as
sentenças da Rota
Romana; 2. os recursos, nas causas acerca do estado das pessoas,
contra a recusa de novo exame da causa por parte da Rota
Romana; 3. as alegações de desconfiança e outras causas contra
os Juízes da Rota
Romana pelos atos realizados no exercício da sua função; 4. os
conflitos de competência entre Tribunais, que não dependem do mesmo
Tribunal de apelo. |
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Público 25.10.2014 |
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http://www.we-are-church.org/pt/ |
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