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1.
Hoje é domingo de canonizações, de surpresas e decepções.
Fizeram-me, a este respeito, uma pergunta estranha: será verdade
que uma canonização envolve a infalibilidade pontifícia? Digo
estranha porque, nas questões de ordem teológica, o que me
preocupa, em clima cristão, é saber se um determinado
acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão
imanente e transcendente dos seres humanos, como criaturas de
relação e de interajuda. Respondi que uns teólogos dizem que sim
e outros dizem que não. Sabem tanto uns como outros. Estamos,
portanto, em matéria opinável. Como a própria noção de
infalibilidade tem pouco de infalível, é melhor não ligar muito
a esse género de preocupações.
Além
disso, o essencial da vida cristã não passa por aí e a Festa de
Todos os Santos é muito mais inclusiva e democrática do que
todos esses processos de levar gente aos altares. São, aliás,
rápidos para uns, muito demorados para outros e impossíveis para
quase todos. Preencher os requisitos previstos para obter esse
diploma de santo, não é para qualquer um. Um bom currículo não
basta. O júri que o avalia não goza de nenhuma garantia divina
de imparcialidade.
2. Os
produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção,
pretendem ser edificantes; os frutos dos incréus, nem sempre são
modelos de crítica histórica, como pretendem.
Quanto
a modelos, se podemos falar assim, no Ocidente ainda não
apareceu nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles
que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram
nem riquezas nem qualquer outro poder de dominação. Vem tudo
muito bem explicado no Evangelho segundo S. Marcos e paralelos
(10, 17-45).
Andavam os discípulos a discutir entre si os lugares que
desejavam ocupar quando o Mestre, o líder, tomasse o poder.
Jesus ia percebendo tudo e andava cada vez mais enjoado com
todas essas conversas e segredos. Não reagiu logo. Deixou que
eles tivessem a coragem de se manifestarem abertamente e
aconteceu. Tiago e João, filhos de Zebedeu, abriram o jogo e
pediram logo os primeiros lugares na hierarquia do governo.
Jesus tentou dizer-lhes que não tinham entendido nada. Mas os
dez, ouvindo isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Então o Mestre percebeu que aquela ambição era geral. Chamou-os
e pôs tudo em pratos limpos: “Sabeis que aqueles que vemos
governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam e
são chamados Benfeitores. Entre vós não deverá ser assim: ao
contrário, aquele que, de entre vós, quiser ser grande, seja o
vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro, seja o servo
de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.
Com o
gesto do lava-pés aos discípulos, o Evangelista João deu o
sentido a toda a vida de Jesus, antes, durante e depois da
Páscoa. Indicou-lhes, para sempre, o papel da Igreja no mundo:
não ajoelhar diante de nenhum poder (económico, financeiro,
político ou religioso); ajoelhar apenas diante dos excluídos da
mesa comum, os deixados à porta de tudo sem poder entrar!
3. É
esse o cânone cristão da santidade. O resto é apenas caminho
para esse despojamento libertador. João XXIII deixou-nos uns
apontamentos, para seu governo pessoal, com o propósito de
reduzir tudo – princípios, directrizes, assuntos – ao máximo de
simplicidade e de paz, com o cuidado de limpar em todo o tempo a
sua vinha do que são folhas e ramos inúteis e onde brilhe,
apenas, a verdade, a justiça e a caridade; sobretudo a caridade.
“Qualquer outro sistema de actuação não é mais do que jactância
e desejo de afirmação pessoal, que depressa se denuncia, se
torna nociva e ridícula. (…) Todos os sábios do século, todos os
santos da terra, incluindo os da diplomacia vaticana, que papel
mais mesquinho representam, colocados à luz da simplicidade e da
graça que emana deste grandioso e fundamental ensinamento de
Jesus e dos seus santos!”
Incomodado com o seu bom feitio, inclinado à condescendência e a
descobrir o lado bom das pessoas e das coisas, sofre com o
ambiente que o rodeia: “Qualquer forma de desconfiança ou de
tratamento indelicado com alguém – sobretudo se se trata de
deficientes, pobres ou subalternos -, qualquer dureza e
irreflexão de juízo causam-me mágoa e íntimo sofrimento. Calo,
mas sangra-me o coração. Estes meus colaboradores são uns
magníficos eclesiásticos: aprecio as suas excelentes qualidades,
estimo-os e merecem tudo. Mas sofro com o desacordo do meu
espírito em relação a eles. Prefiro o silêncio, esperando que
este resulte mais eloquente e eficaz para a sua educação. Não
será isto debilidade?”
Seria
longo explicar a razão de João XXIII ter surgido como uma
espantosa surpresa para a Igreja e para o mundo: como foi
possível, depois de Pio XII e de todos as condenações desde o
séc. XIX, começar a dar a palavra a toda a Igreja, convocando o
Vaticano II, aberto às outras Igrejas cristãs, às outras
religiões, a todos os seres humanos de boa vontade? Apesar de
todos os esforços para abafar essa revolução e para o esquecer,
hoje, muitos se alegram e outros perguntam: afinal quem foi ele?
João
Paulo II, quem o esqueceu? Para vergonha de todos temos o
cardeal Bertone.
in
Público, 27.04.2014
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