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1. A Amnistia Internacional iniciou, há semanas, a campanha Stop
Tortura para denunciar uma situação vergonhosa: 30 anos após a
assinatura, na ONU, da Convenção Contra a Tortura, esta prática
bárbara continua a crescer, como se fosse a coisa mais normal do
mundo. No entanto, na África, nas Américas, na Ásia-Pacífico, na
Europa e Ásia Central, no Médio Oriente e Norte de Africa,
alarga-se esta extrema forma de desumanidade, perante a
indiferença internacional. Nos EUA, nenhum agente da CIA,
envolvido em casos de tortura, foi levado a tribunal.
Não se pode atribuir esse comportamento “à ausência de Deus” na
esfera pública como, por vezes, se diz. Em todos os continentes,
é em seu nome que se oprime, tortura e mata. Tentei mostrar, no
Domingo passado, que a palavra Deus pode ser usada para o melhor
e para o pior.
Hoje, gostaria de chamar a atenção para outra forma de
observação e problematização das sociedades actuais, praticada
por Boaventura de Sousa Santos, no livro Se Deus fosse um
activista dos direitos humanos (Almedina). Foi também publicado
com grande ressonância no Brasil, traduzido em Espanha e
acolhido com fervor na América Latina.
Este professor catedrático da Universidade de Coimbra e de
diversas universidades americanas tenta mostrar como a
democracia representativa liberal foi derrotada pelo capitalismo
e como a invocação dos direitos humanos foi e é usada para os
destruir. A religião, grito dos oprimidos, passou demasiado
depressa a ser considerada “ópio do povo” e reduzida à esfera
privada. As teologias políticas não defendem todas os mesmos
interesses. Não se pode confundir as teologias que procuram
justificar as opressões com as teologias dos oprimidos que
animam as suas práticas concretas de libertação.
2. Juan José Tamayo, um teólogo bem informado, na selecção
internacional dos Cincuenta intelectuales para una consciencia
crítica (Fragmenta Editorial, Barcelona, 2013) incluiu dois
nomes portugueses: José Saramago e Boaventura de Sousa Santos. O
primeiro, por razões óbvias. Para quem estiver a par do que se
passa nas ciências sociais, no âmbito da língua espanhola –
verifiquei-o em vários países –, o segundo era previsível.
Tamayo considera Boaventura de Sousa Santos um dos cientistas
sociais mais criativos no actual panorama intelectual, porque
possui uma grande capacidade de inovação, tanto no próprio plano
da linguagem – cheio de imagens, de símbolos e intuições - como
nos conteúdos e propostas. Sabe articular coerentemente as
análises críticas com as alternativas, os protestos com as
propostas, a indignação ética com as utopias históricas. O seu
estilo não é o de seguir caminhos já trilhados, mas o de
levantar novas questões e abrir novas pistas na investigação e
na sua escrita.
Para o teólogo espanhol, a obra de Boaventura de Sousa Santos é
transgressora de fronteiras entre disciplinas académicas, de
fronteiras geográficas e culturais, recusando, no âmbito
académico, a separação entre teoria e prática e estabelecendo
uma conexão intrínseca entre ambas.
Se os polícias das ciências sociais ficam incomodados com a
heterodoxia deste académico militante, os adversários das
teologias da libertação são obrigados a sair do sossego, que
julgavam definitivo depois dos pronunciamentos negativos do
Vaticano, desde a década de oitenta até à eleição do Papa
Francisco. Não é por acaso que Fr. Gustavo Gutiérrez, fundador
da Teologia da Libertação, tenha sido recebido por este papa e
solicitado a escrever no jornal L’Osservatore Romano .
3. Este peruano tornou-se, muito cedo, um fervoroso discípulo do
genial antropólogo, Fr. Bartolomé de las Casas (1484-1566), o
intrépido defensor dos Índios, na frente filosófica, teológica,
jurídica e política, tanto em Espanha como nas Américas. Mas na
descoberta dessa história descobriu outra, a do célebre sermão
de Fray Anton de Montesinos e do seu inesquecível grito perante
os conquistadores espanhóis: e estes (os índios explorados) não
são seres humanos?!
A partir daí, os olhos de Gustavo Gutierrez saltaram do séc. XVI
para o séc. XX. As lutas contra a violência da opressão
económica, social, cultural e política precisam de uma teologia
elaborada a partir do chão das comunidades cristãs de base. Os
cristãos fazem a experiência de Deus na história concreta da
opressão e libertação dos seres humanos. A ousadia de G.
Gutierrez provocou a proliferação das chamadas teologias
contextuais, em todos os continentes.
Boaventura de Sousa Santos abriu um debate acerca dos principais
desafios que a emergência das teologias políticas, no início do
século XX, coloca aos direitos humanos. Não caiu na sua
simplificação para facilitar uma tese. As distinções entre os
diferentes tipos de teologias políticas e os discursos e
práticas contrastantes sobre os direitos humanos não falam do
mesmo Deus. Entre eles, qual poderá ser o activista dos direitos
humanos? O outro é um parasita.
in Público, 25.05.2014
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