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1.
Dizem-me que a verdadeira cura do ser humano seria a sua
substituição pelo pós-humano, realidade sem memória nem
futuro, sem infância nem velhice, liberto da doença e da morte,
despido de qualquer interrogação metafísica ou preocupação ética. Ao
que parece, existem ciências e técnicas disponíveis para uma “saída
limpa” da nossa humanidade cansada e, mesmo assim, irritantemente
belicosa.
Como já sou velho, tenho dificuldade em me
adaptar à ideia e não alinho em soluções de desespero. Prefiro
recorrer a um aforismo de Heráclito: sem esperança, não
encontrarás o inesperado. S. Paulo também não prometeu muito
mais. Na célebre Epístola aos Romanos (cap.8), depois de muita
ginástica mística e antropológica, observa com modéstia: vivemos
suspirando e gemendo pela redenção do nosso corpo, num mundo em
dores de parto, pois só estamos “salvos em esperança e ver o que se
espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? Se esperamos o
que não vemos, é na perseverança que o aguardamos”.
Contamos com a aurora depois da noite,
deixando aberto o mistério indizível da existência. Não é inevitável
que só a criança viva de perguntas e o adulto se afogue em respostas
apressadas. Renascemos numa atitude de permanente interrogação. A
invocação convencional de Deus, como pronta e beata solução para
todas as questões e enigmas, confunde a divindade em que vivemos,
nos movemos e existimos - como diziam os pagãos (Act 17,27) - com um
irrisório tapa buracos de nada. A verdade está na procura.
Humanizar-se é abrir-se às surpresas do céu e
da terra, de dentro e de fora, do presente e do futuro. Mas sem
romper com o reino das aparências, não é possível descobrir e curar
a vontade de dominação que se esconde nos projectos mais grandiosos.
2. Ao glorificar a prodigiosa história
do esforço humano que desde as cavernas criou e desenvolve uma
civilização cada vez mais prodigiosa e sofisticada, procura-se
ocultar a face escura desse percurso. Quem recorda vítimas
esquecidas do progresso, as civilizações sepultadas, a memória
eternamente apagada das pessoas que ninguém lembrará? Porque
insistirmos na falta de respeito à natureza e aos seus precários
equilíbrios, sabendo que comprometem o futuro das próximas gerações?
Cada verão que passa, cada inverno que chega alarga-se mais o
irreparável: a prevenção é demasiado económica.
Quando se celebra e interpreta a música, a
literatura, a pintura, a arquitectura, esses frutos da espantosa
criatividade de todos os povos e culturas, não se deve esconder tudo
o que foi impedido e arrasado. Não nascendo de uma razão utilitária,
esse tipo de cultura manifesta que o ser humano não tem preço, tem
dignidade.
Diz-se que Platão agradecia a Deus ter
nascido homem e não bruto, grego e não bárbaro e, acima de tudo, ter
nascido no tempo de Sócrates. O desprezo pelos membros dos outros
povos, não revelava apenas a sua ascendência aristocrática, ofendia
também a memória do seu mestre. A Sócrates, o filósofo dos
filósofos, mediante o método da pergunta irónica e da
maiêutica, só lhe interessava revelar os seres humanos a si
próprios e torná-los virtuosos, vencendo a ignorância, fonte de
todos vícios. Injustamente condenado à morte, observou: “é muito
mais triste merecer um castigo do que sofrê-lo”.
Na sua antropologia, a morte do corpo era uma
cura. Libertava a alma dessa prisão. Ao ver os que choravam a sua
condenação, terá reagido: “Porque chorais? Não sabeis que desde que
nasci, estava condenado, pela natureza, a morrer?”
Não basta vencer a ignorância e os erros que
ela provoca. Não se pode deixar o nosso corpo à porta e viver como
um puro espírito. O eu de cada pessoa é sempre um corpo
animado por uma mente incarnada, ligado pelo conhecimento e pelo
afecto aos outros, ao cosmos e a Deus.
Isto para dizer que não somos uma unidade
monolítica nem uma pluralidade desarticulada. Compete-nos viver a
nossa vocação espiritual na realidade carnal, ligados a tudo o que é
espiritual e material, em múltiplas dimensões. As soluções
unidimensionais, como as da troika, são um veneno.
3. A Quaresma não é um programa de
dieta alimentar para vencer os desvarios do Carnaval. Este
significa que, sem divertimento e prazer, fazemos do ser humano uma
simples peça da cadeia de produção. O tempo de Quaresma é dedicado a
descobrir quem somos: lembra-te que és pó e em pó te hás-de
tornar. Uma tristeza! Os cristãos eram obrigados a voltar ao
Antigo Testamento. A alternativa actual é muito melhor:
arrependei-vos e acreditai no Evangelho da Alegria, acreditai
que tendes cura.
Neste Domingo, o diabo arma-se em assessor de
Jesus, com um programa já pronto. Se queres fazer alguma coisa de
jeito, tens de conseguir – à base de milagre é mais seguro – a
dominação económica, religiosa e política. Jesus recusou todas as
propostas, pois a sua missão consistia em nos libertar da vontade de
dominação, raiz de todos os conflitos e guerras. As tentações que
Jesus venceu são aquelas em que nós, Igreja, mais facilmente caímos.
Por alguma razão foi cunhada a expressão: ecclesia semper
reformanda. Sem um processo de conversão continua a Igreja não
tem remédio. Mas há remédio.
in Público, 09.03.2014
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