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1. Os seres humanos
só podem viver como humanos acolhendo,
criando e recriando, desconstruindo e reconstruindo as narrativas
simbólicas da sua condição inacabada. Apesar de todas as máquinas de
desumanização, nunca esgotaremos a música, a poesia, a literatura, a
pintura, a beleza das civilizações antigas e modernas.
É próprio da linguagem simbólica viver
em figurações materiais, finitas, historicamente marcadas, em
passagem permanente ao intemporal, ao infinito, superando-se na sua
própria configuração concreta, limitada. A religião e as artes vivem
do mesmo fundo de intranquilidade. Apesar de todas as tensões, têm,
no impulso de transcendência, uma alma comum, que só morre ou se
eclipsa quando instrumentalizada.
Como escreveu Fernando Pessoa, a
literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não
basta. Mas também não a pode substituir.
“A vida é breve, a morte é certa”,
gritava durante toda a Quaresma, um ancião, meu vizinho. A religião
é a revolta contra os limites, a simbólica da absoluta
transcendência, a voz do impossível. A morte não é remédio para a
falta de vida. Diz apenas que o nosso exílio teve mais ou menos
lágrimas. Morremos inacabados. O silêncio de Deus na cruz de Cristo
é a sua linguagem, perante as diabólicas tentações messiânicas. Ao
entregar o seu espírito nas mãos do Pai, Jesus recebe o Espírito da
ressurreição, a fonte de uma Igreja sem fronteiras que O poderá
reconhecer na diversidade das culturas, pois é Ele que sempre a
precede.
2. O código
genético do Cristianismo, na sua nascente e nas suas configurações
históricas, brota do monoteísmo trinitário que as religiões do Livro
– Judaísmo e Islão - consideram impuro e ao qual não pode renunciar
sem cair no deus abstracto do deísmo, da metafísica das Luzes e que
infeccionou a catequese e a pregação do séc. XIX.
No Vaticano II, D. Hakim, bispo
grego-melquita de Akka, denunciou os esquemas da teologia latina,
por ignorarem a catequese e a teologia orientais de Cirilo de
Jerusalém, de Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa, de Máximo
Confessor e de João Crisóstomo. Com a mesma preocupação, na
Assembleia Geral do Conselho Mundial das Igrejas, em Upsala (1968),
o notável bispo I. Hazim (1920-2012), mais tarde Patriarca de
Antioquia, fez uma intervenção inesquecível.
“Eis a novidade: a ressurreição de
Jesus Cristo, o mistério pascal, não se explica pelo passado,
mas pelo futuro.
Deus vem ao mundo, ao seu encontro;
está diante de nós e chama, sacode, faz crescer, liberta. Qualquer
outro deus é um falso deus, um ídolo. Está na hora de a nossa
consciência moderna o enterrar. Esse deus multiforme, que habita na
velha consciência do ser humano, está como que por trás do ser
humano, como uma causa. Manda, organiza, faz regredir, aliena. Nada
tem de profético, pelo contrário, vem sempre depois como a única
razão do inexplicável, ou como o último recurso dos irresponsáveis.
Esse falso transcendente é tão velho como a própria morte.
A novidade criadora vem ao mundo com o
mundo. Essa novidade não se inventa nem se prova, revela-se,
mostra-se. Diante dela, ou se diz sim ou se diz não. Vem como um
acontecimento.
Esta é a acção do Espírito Santo que
introduz a novidade no mundo. Sem Ele, Deus fica longe; Cristo
habita no passado; o Evangelho não passa de letra morta; a Igreja
não seria mais do que mera organização; a autoridade, dominação; a
missão, propaganda; o culto, evocação mágica e todo o agir cristão,
pura moral de escravos”.
Este cristão, mostrou que o seu
discurso não era retórica vazia. Depois da sua eleição como
patriarca, disse o que gostaríamos de ouvir a toda a hierarquia: "Serei
julgado se não levar a Igreja e cada um de vós no meu coração. Não
me é possível falar convosco como se fosse diferente de vós. Nenhuma
diferença nos separa. Sou uma parte de vós; estou em vós e peço-vos
que estejais em mim. Pois o Senhor vem e o Espírito desce sobre os
irmãos reunidos, unidos em comunhão, manifestando uma diversidade de
carismas na unidade do Espírito."
3. Depois do
Vaticano II, a teologia latina revisitou a teologia oriental. Passou
a respirar, simbolicamente, com dois pulmões. Leonardo Boff, no
contexto da teologia da libertação, tentou repensar o mistério
sacrossanto da Trindade, que sempre o tinha desafiado. Publicou
várias obras para responder a esta questão: se Deus não é a solidão
do Uno, ao revelar-se e entregar-se como comunidade, quais as
consequências para entender a nossa história una e plural?
Não lhe bastou afirmar que Deus era a
melhor comunidade. Foi mais longe: Não há nenhuma razão teológica
que nos obrigue a parar na encarnação do Filho. Sustentei a
tese que o Pai se personalizou em São José, o Filho se encarnou em
Jesus e o Espírito Santo se espiritualizou em Maria. Assim temos a
família divina inteiramente presente na família humana.
As reticências que estas Josefologia e
Mariologia suscitam, obrigam a continuar a investigação: afinal, que
implicações espirituais tem a fé na misteriosa trindade de Deus, na
transformação da nossa vida na Igreja e na sociedade?
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