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Vêm as aves e a questão do "ser ou não ser" a propósito de "A Noite é dos pássaros". Graças à generosidade dos autores, o TriploV teve a felicidade de apresentar ao público este belo romance de Nicodemos Sena, ilustrado por João Castilho Neto, meses antes da sua publicação em livro, no Brasil. Aguarda-se para breve a sua edição em Portugal. Em editorial dessa altura, no TriploV (2), referi que a obra, inspirando-se na expedição à Amazónia do conhecido naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, não era uma biografia. Não só não era uma biografia como as informações relativas à personagem não se aplicavam à pessoa real. Isso seria difícil, porque nem sequer são contemporâneas. O intuito do ficcionista era outro, por isso outra a sua verdade. Ora, como procede Nicodemos Sena para revelar a sua verdade, entendendo por verdade, neste caso, que as informações sobre Alexandre Rodrigues Ferreira são falsas? Recorre a um artifício, natural na língua das gralhas: escreve Rodrigo em vez de Rodrigues. A gralha "Rodrigo" declara assim que estamos em face de um duplo código. Ora este artifício é banalíssimo nos textos de História Natural, a Lataste os naturalistas portugueses até chamam Latraste, a Bibron chamam Biberon, o que é bem exibicionista na sua gozação. Porém, só eu falo dele e levanto problemas, e as pessoas sorriem, sem saber o que dizer, como se duplos códigos e códigos secretos fossem algo de sobrenatural, fruto de delírio meu. Às vezes até me envergonho de repisar o assunto, pois as únicas pessoas sensíveis a ele não são as de letras, que deviam estar familiarizadas com os procedimentos, ainda menos os semiólogos, para quem os códigos deviam ser canja, sim aqueles que directa ou indirectamente lidam com os serviços de Intelligence, a espionagem. Repito: ninguém presta atenção às gralhas, o que poderá não ser importante na ficção, que cria os seus próprios factos, mas é muito importante nos documentos históricos. "As gralhas" é o título do meu site no TriploV, é das gralhas na literatura científica que me venho ocupando, e mesmo os colegas, os investigadores em História e Filosofia das ciências, estão a leste, não assimilam a ideia de que há um problema que também os afecta a eles. A ciência está de tal modo sacralizada e encurralada em grelhas de leitura ideológicas, que não se aceita a possibilidade de a sua comunicação ser dupla, como a literária ou a secreta. Não se aceita a ideia de que o conhecimento não é democrático, de que haja segredos no texto científico que só permitem a recepção a quem tenha a chave de dado código. E no entanto reina a convicção, entre as pessoas das ciências, de que a ciência é só para iniciados, e que só os especialistas podem entender coisas tão complexas como essa de as aranhas e os escorpiões serem Arachnida e não Insecta. Se alguém de fora diz que só são Arachnida porque a Sistemática instituiu essa convenção nomenclatural, atiram-nos à cara epopeias destas: "Não, as aranhas sempre foram aracnídeos, Lineu é que não sabia e por isso enganou-se ao classificá-las como insectos!" Ao menos Saussure, a ciência devia conhecer, pois não é admissível que uma élite intelectual, seja lá ela qual for, pretenda decretar que os nomes são as coisas nomeadas. Mas não imaginemos que o "ser ou não ser" se esgota nos nomes ou que os nomes careçam de valor. O verbo também declina a autoria e a propriedade. A colecção de objectos que se considera terem constituído um gabinete de curiosidades do século XVIII, conhecida por "Naturalia" e conservada no Museu de Évora (3), é ou não de Frei Manuel do Cenáculo? "No decurso de investigações recentes sobre a origem das colecções do Museu de Évora tem-se levantado a suspeita de que alguns objectos de História Natural existentes actualmente no Museu não possam ser atribuídos à Naturalia de Cenáculo, mas, sim, a posteriores coleccionadores. Contudo, não restam dúvidas de que no passado existiu uma colecção de História Natural pertença de Frei Manuel do Cenáculo" - informa por email Ana Luísa Janeira. É pouco o "ser" para suportar um projecto de investigação, a menos que a investigação comece por averiguar tudo o que diz respeito ao ser ou não ser. Era necessário o catálogo dos objectos pertencentes a Cenáculo. Sendo um dos homens da reforma pombalina, amigo de Vandelli, conhecia decerto Alexandre Rodrigues Ferreira e era plausível que objectos oriundos do Brasil, talvez coligidos pelo explorador da Amazónia, se encontrassem na "Naturalia". Mas não será a "Naturalia" uma "Artificialia"? O que há de verdadeiro na documentação relativa a Alexandre Rodrigues Ferreira? Parte dela já desapareceu, no incêndio da Faculdade de Ciências, outra parte desse mesmo lote sobreviveu às chamas. A parte desaparecida pode em parte ser consultada na obra de Simon (4), mas terá Simon transcrito com zelo suficientemente filantrópico todas as gralhas? A tendência geral é para emendar e ignorar as propriedades medicinais do "sic"... Outro objecto profusamente gralhado é a pedra de cobre, da mesma época (5), e Cenáculo conheceu-a muito bem. O que para mim há de mais significativo em Cenáculo são estes dois factos: diz-se que tinha uma cicatriz, portanto é um homem gralhado (marcado); e o outro é o de a mais substancial história da sua relação com espanhóis e franceses, no curso das Invasões Francesas, contada por ele em diário, ter sido publicada num jornal que conheço da investigação sobre Francisco Newton, O Conimbricense, propriedade de um carbonário, jornal que é uma das fontes primárias para o conhecimento das sociedades secretas em Portugal. No meio da documentação dispersa de e sobre Alexandre Rodrigues Ferreira, que inclui quantidade considerável de imagens e objectos, e alusões várias de terceiros a esse episódio histórico que já não se pode suportar como desculpa para nada - as pilhagens dos franceses durante as invasões napoleónicas - pouco deve ser verdadeiro. Não se pode suportar como desculpa para o que não existe, porque o episódio deve ser estudado, com apoio nas gralhas, e isso ainda não foi feito. Ora sabemos que, com invasores à porta, o mais natural gesto é o de esconder os bens, e Vandelli fez isso no Gabinete da Ajuda (6). Quem nos garante que a "Naturalia" exposta aos enviados de Napoleão não foi trocada por uma "Artificialia"? Quem faz História, Filosofia, Crítica, Sociologia ou Semiótica das ciências está sujeito a enfiar todos os barretes deste mundo e do outro. Também já o declarei publicamente, não havia outro remédio: foi enfiando todos os barretes da História Natural, com a biografia do lagarto gigante de Cabo Verde (7), que me estreei em História das ciências. Quando descobri que as gralhas piavam alto de mais, isto é, que o estendal de erros da literatura naturalista era voluntário e tinha um sentido, desviei-me da História para enveredar pela crítica dos textos. Os textos científicos são criticáveis como qualquer romance. E é neste ponto que estou, descodificando para descobrir a verdade. Enquanto isso não for feito, a qualquer momento nos podemos sentir ridículos por termos orientado uma investigação segundo uma linha de leitura que só era válida na suposição de que o corpus só contivesse informação verdadeira. Uma vez que paira a suspeita sobre essa verdade, é claro que todo o trabalho de investigação volta à estaca zero e terá de ser reorientado por outras bússolas. Não é importante que a "Naturalia" não seja de Cenáculo, se soubermos que pertenceu a outra pessoa da época, desde que o objecto de estudo seja a colecção e não o coleccionador. Mas já seria uma catástrofe trabalhar uma colecção do século XX como se fosse do século XVIII. Que terá o livro de Nicodemos Sena a ver com estes problemas? Nada, felizmente. Na verdade da ficção não há nenhum Alexandre Rodrigues Ferreira, sim um Rodrigo, figura paradigmática dos naturalistas que em tempos recuados ousaram desafiar os perigos da Amazónia. Rodrigo, eis uma gralha que não mente. As outras também não, vejamos: nós é que mentimos a nós mesmos, considerando-nos superiores a esses pobres naturalistas do passado que nem sabiam que Fernando Pó se localiza no Atlântico Norte e que "Newton" se escreve como acabei de redigir e não "Reesetán", Nitom" ou "New.on". Deixo um conselho a mim mesma, já que vós não precisais: nunca subestimes o adversário, chamando-lhe tolo ou ignorante, pois ele sabe que "A noite é dos pássaros" e tu, gralhas, nem as de tipografia conheces bem. |
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(1) As aves dividem-se em dois grandes grupos: Aves e Passeriformes. Dentro destas categorias há muitas outras. |
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