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MASCARADOS EM CIÊNCIA
Maria Estela Guedes
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AO EXMº SNR. DAVID E CUNHA
Professor do Lyceu de Vizeu

Eu tenho um quintalzito em minha casa,
Onde fiz um jardim, coisa pequena;
Tambem tenho um pombal, pois vale a pena
Vêr como o pombo á pomba arrasta a asa.

Uma cegonha alli os mais espanta,
Quando lhe dá para tocar matraca;
Entre gallinhas alto gallo canta;
Grita a pintada (1)=Que está fraca e fraca.
[...]

(1) Pintada, gallinha d'Africa, á qual dão vulgarmente o nome de gallinha do Maranhão.

Augusto Luso da Silva, "Ultimos Versos", Manuel Thomé de Castro Junior (Edit.), Porto, 1907, com prefácio de José Pereira Sampaio (Bruno)

 

A história de Rabicha, e de Coimbra no Douro (1, 2), que Augusto Nobre nos contou, conduziu a um cliché da narrativa romântica, o mistério das identidades. Um embuçado, um viajante que vem da Terra Santa, ou até um Ulisses, chega a casa, depois de anos longe, a fazer a guerra de Tróia, e nem o cão o reconhece. Aliás, neste caso específico em que tratamos dos mistérios da malacologia em Portugal, devíamos dizer: nem os caracóis o reconhecem...

Os mascarados são frequentes na literatura científica, basta alguém ter várias datas de nascimento e morte, como Francisco Newton ou Domingos Vandelli, para logo nos defrontarmos com o duplo. Nos últimos editoriais tivemos de enfrentar essa máscara, e até perguntámos quem era Augusto Luso da Silva (3), uma pessoa bem conhecida (no seu tempo).

Pois é, o link estava errado, mas agora já pode ir consultar a obra magna de A. Luso da Silva (4), para verificar que, como malacologista, ele só escreveu um artigo, publicado em V folhetins, e o V, como o V Império, não é deste tempo, remete para o futuro: no fim há indicação de que a história dos caracóis continua, mas o autor desaparece ali da cena malacológica. A seguir, no Jornal de Sciencias Mathematicas, onde a novela científica foi publicada, o que aparece é o mesmo título, mas agora em francês, e quem assina passa a ser José da Silva e Castro (5), malacologista português de quem nada se sabe, nem sequer as datas de nascimento e morte. O V Império, como se sabe, é o do Espírito. Vos estis sal terrae, dizia Padre António Vieira às lesmas... Sal é coisa que não falta nos textos e imagens (6) sobre malacologia de que nos temos ocupado.

Sim, aí em baixo tem um autógrafo, fotocopiado de uma separata do autor, que reza o seguinte: "Ao Exmº Snr. Dr. Eduardo Burnay, em testemunho da mais subida consideração, oferece José da Silva e Castro". Podemos concluir que José da Silva e Castro e Augusto Luso da Silva são a mesma pessoa?

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Hoje estive na Biblioteca Nacional, não me deram, não sei porquê, mas hei-de repetir a requisição, um texto de José da Silva e Castro com título meio esquisito, mas pode a ficha estar mal feita: "Observations sur la technique des diatomées", Imprensa da Universidade, Coimbra, 1899. Em princípio, quem publicava na Imprensa da Universidade de Coimbra eram os professores. Em princípio, se as diatomáceas usassem uma técnica, era preciso identificar a técnica. Armando Silva Carvalho, poeta português, publicou o livro "Técnicas de engate". Logo que saiba qual é a técnica destas algas, apressar-me-ei a informar-vos, deve ser interessante.

Também fiz a requisição de uma obra de outro encoberto, cujo título me entusiasmou imenso, por causa do S. João: "Senhor, João!", que nesta obra assina João Alegre. O que me entregaram foi o que eu tinha pedido, mas os caracteres do título tinham sofrido algumas mutações, entre a versão da ficha (ou dos meus olhos, quem sabe?) e o título original: "Senhor, pão!".

Deste mesmo mascarado, que agora assina A.N., passei os olhos por um livrinho, cujo título completo é o seguinte: "O meu caderno de verbos latinos irregulares, compostos e depoentes. Chave dos verbos" (Livraria Pacheco, Lisboa, 1933). Se leu os preliminares do texto de A. Luso da Silva (4), viu que ele se insurge contra o uso do latim nos textos científicos e defende que é preciso um catálogo dos moluscos em português, pois as pessoas não sabem latim. Isto é poeira atirada aos olhos incautos, o texto continua com outro nome de autor e muda do português para o francês. Aquelas pessoas sabiam latim, nós é que não sabemos. Eu não sei latim, apesar de somar várias cadeiras e chumbos disso. Mas alguma coisa sobrou, não é? A mais importante, para o que nos interessa, é que no latim, tal como no inglês, não há acentos gráficos. Ora estes cavalheiros, que sabem muito mais do que julgamos, põem acentos gráficos nos nomes das espécies, com isso cometendo não um, sim um duplo erro - o linguístico e o científico.

O autor do livro sobre os verbos latinos é uma pessoa que eu julgo nunca ter precisado de escrever em latim, mas sabia latim a potes, como demonstra o seu caderninho, que começa com o verbo crepo, continua com o verbo discrepo, em terceiro lugar ensina os verbos cubo e incubo e por aí adiante. Gostei em especial de saber que o incubo é um composto de cubo. Senhores, para que era o caderno? E para quem? Para mim, por exemplo, se tivesse paciência para o estudar, e recuso-me a estudá-lo porque não sou polícia nem nenhuma Mata Hari, pois o autor diz que os curiosos também podem aprender com ele. Ah, valha-nos ao menos isso, fico mais sossegada: a porta do conhecimento está aberta a todos, a chave do código não se destina só a um corpo de forças especiais nem de iniciados, literalmente falando.

João Alegre é um poeta panfletário, satírico, politizado, muito violento, que, a propósito das comemorações do Centenário do Infante D. Henrique, no Porto*, em que colaborou A. Luso da Silva, diz que não quer ser cúmplice do Rei quando o povo grita de fome: "Senhor, pão!". Certa tarde, o filho de João Alegre, ou de A.N., saltou para cima de uma mesa do café Brasileira, ao Chiado, a declamar um manifesto anti-Academia das Ciências, em que berrava: "Morra o Dantas, morra! Pim!" Ao contrário dele, o pai não fazia teatro, a sua agressividade era muito a sério, por isso teve de usar máscara, assinando João Alegre.

Este homem não tem nada a ver com os moluscos de Portugal, que eu saiba, sim, eventualmente, com os de São Tomé. Foi uma das pessoas que enviaram para os museus portugueses exemplares de História Natural coligidos nas ilhas do Golfo da Guiné. E tem obras fundamentais sobre as ilhas, de resto sobre Angola também e colonialismo em geral, assinadas com o seu nome verdadeiro: António Lobo de Almada Negreiros.

Para voltar ao mascarado da malacologia portuguesa, li vários poemas de Augusto Luso da Silva e o prefácio de Sampaio Bruno ao seu livro póstumo, "Ultimos versos", de que trouxe uma pequena amostra. Luso da Silva é um poeta de circunstância, também muito politizado, como João Alegre, mas num registo nacionalista e humanitário, empenhado nas causas sociais, sem a ferocidade da oposição ao regime manifesta por Almada Negreiros. Não é porém o poeta que nos interessa, se bem que nos poemas haja muita História Natural. Nesse livro póstumo, anuncia-se a saída próxima de "Horas Vagas", que Sampaio Bruno comenta, no prefácio, dizendo que era um "primoroso livro de história natural, cartas populares, etc."... Bem, é claro que não encontrei tal livro de Augusto Luso e resta saber o que seriam essas cartas populares, e que relação poderiam ter cartas populares (cartas de jogar, mapas, cartas de amor?) com a História Natural.

Luso da Silva foi professor de Sampaio Bruno, talvez por isso Bruno fale com tanto desembaraço dos caracóis do mestre, dizendo que no Jornal de Sciencias Mathematicas (esquece-se do volume, número, data e páginas, o que nos transtorna, pois o que anota tanto se aplica a A. Luso da Silva como a José da Silva e Castro...) se encontra um "valioso trabalho de Augusto Luso ácerca dos molluscos terrestres e fluviaes de Portugal, declarando ahi o naturalista portuense os motivos por que o não satisfaz a descripção, que mais é um indice ou catalogo, de Arthur Morelet". E mais adianta Bruno, que dos versos quase não fala, que Luso tinha deixado instruções para uso e montagem do Polariscópio, que tinha combatido os abusos populares contra os animais nocivos, e ensinado "como se pode formar uma collecção zoologica nos arredores do Porto".

Senhores, estamos a lidar com escritores, poetas, os mestres da língua. Nós sabemos o peso de cada palavra e de cada carácter, mesmo quando esse carácter é apenas uma vírgula ou um acento circunflexo. Nós não dizemos "caractér", para distinguir o carácter genético do carácter moral. Bruno não diz que Luso ensinou a formar colecções zoológicas com exemplares da fauna da região do Porto. Bruno declara que Luso ensinou a transformar a região do Porto numa colecção zoológica. É exactamente o que o próprio poeta descreve, em cima, ao falar do seu quintal, onde tinha até pintadas, fracas ou galinhas do mato.

Se Luso e Castro são a mesma pessoa, ignoro e nem quero saber disso. Informo no entanto os malacologistas que Bruno também diz que Luso tinha uma colecção de História Natural. Algures, Augusto Nobre declara que a Faculdade de Ciências do Porto tinha recebido a colecção de moluscos de José da Silva e Castro, mas que não lhe ia mexer, porque tinha valor apenas histórico, dado o sistema de classificação usado. Já são demasiadas colecções e coleccionadores. Por mim, não me interessa desvendar o mistério das identidades. Esclarecer este ponto é normalizar a anormalidade. Um encoberto na ciência só pode existir com a cumplicidade dos colegas e isso é uma aberração. As aberrações devem manter-se intactas, pois a sua função é a de sinal. Os sinais devem ser lidos e entendidos, não podem ser escamoteados. Se as pessoas são duas ou uma só, tanto faz à malacologia. Importante é o sinal transmitido pelo duplo - duplos caracteres biológicos.

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*Parece que li mal, trata-se do Centenário da Índia, em 1897.
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Textos em linha
(1) COIMBRA, NO DOURO...
(2) O LUSO AUGUSTO NOBRE
(3) A. LUSO DA SILVA, O ENCOBERTO
(4) MOLLUSCOS TERRESTRES E FLUVIAES DE PORTUGAL- A. LUSO DA SILVA
(5) MOLLUSQUES TERRESTRES ET FLUVIATILES DU PORTUGAL - JOSÉ DA SILVA E CASTRO
(6) CARACÓIS EM CASTELO
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