Graças a Francisco Soares, que nos ofereceu uma lista de livros que pertenceram a José de Anchieta, abrimos um directório sobre este naturalista (1), o mais importante explorador de Angola no século XIX. Era curiosa a biblioteca de Anchieta, não só por "As mil e uma noites" coabitarem com obras científicas, e entre estas as que se fundam quase exclusivamente no seu trabalho, "Ornithologie d'Angola" e "Herpéthologie d'Angola et du Congo", de J.V. Barboza du Bocage, mas porque as gramáticas e obras afins revelam uma grande preocupação com a língua. Anchieta tem alguns artigos publicados, mas não é isso o que o caracteriza. Para efeitos científicos, não era um naturalista de gabinete, sim um naturalista de campo, um explorador, portanto eram outros os que escreviam, ele apenas lia, não publicava. A linguística, como se nota, era-lhe no entanto necessária, se assim se pode falar da língua das aves. Faltam as revistas que recebia, por também publicarem as listas das espécies que ia descobrindo, muitas delas novas para a ciência, como o Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, da Academia Real das Ciências de Lisboa. Anchieta em Angola e Francisco Newton nas ilhas do Golfo da Guiné (e em todas as outras colónias, exceptuando a Índia e Moçambique) alimentaram durante muitos anos, na área da História Natural, o Jornal da Academia, como lhe chamavam, abreviando o longo título.
Quem foi Anchieta? Não é retórica esta pergunta, eu tive de a formular para entender a personagem Francisco Newton, e ainda não fui capaz de responder de forma a ficar inteiramente esclarecida. Temos duas biografias de Anchieta em linha, a lutuosa de Bocage no Jornal da Academia e a nota da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, e fragmentos de uma terceira, subtraídos a um livro de Gastão Sousa Dias. A mais importante obra sobre o seu trabalho é no entanto a de A.A. Banha de Andrade, de que em cima mostramos parte da capa, "O naturalista José de Anchieta" (Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1985). O leitor pode confrontar a minha pergunta com os dados fornecidos e logo entende a sua razão de ser: todos estão de acordo, pareceu-me, com as datas de nascimento e morte, mas já Bocage, de um dos amigos e de um dos seus homens de confiança (como ministro da Marinha e Negócios do Ultramar) diz que morreu com 66 anos e que tinha nascido em Setúbal, e Gastão Sousa Dias o mitifica, ao chamar-lhe missionário, quimbanda (feiticeiro), apóstolo, não sei se mártir, mas o retrato evoca o mártir, e, recenseando os animais ferozes e mansos com que tinha de se haver, em Angola, menciona, nada mais nada menos, que as raposas e os lobos... Homo homini lupus, deve ser o que transmite o reverso da fábula. Quando recorda o encontro de Anchieta com Capelo, Ivens e Serpa Pinto, considera o grupo constituído por quatro heróis. Linhas abaixo, já o quadrado triangula em menos um. A fama que acompanhava Anchieta era a de médico, embora não tivesse concluído nenhum curso. Gastão Sousa Dias chama-lhe enfermeiro.
Em consequência, só posso dizer que não sei quem foi exactamente José de Anchieta. Em situação normal, aceitaria como verdadeira a história de que ficou sozinho na ilha de Santo Antão (Cabo Verde), depois de todos os habitantes terem fugido ou morrido, na sequência de uma epidemia de febre amarela ou cholera morbus, consoante as fontes. Sozinho passara a epidemia a tratar dos doentes. Acreditaria que, sozinho na ilha, deambulou esfarrapado e faminto pelos montes, para ser recolhido na praia por um navio francês. Acreditaria neste milagre - ah, Gastão Sousa Dias fala dos milagres de Anchieta, esqueci-me em cima de o apontar (2) - mas já fui tão enganada pelos naturalistas que agora mantenho prudente distância das raposas e lobos tropicais com que nos espantam.
Sei que pouco resta em Portugal do que Anchieta enviou: as cartas dele para Bocage, de que se serviu Banha de Andrade, desapareceram, segundo o próprio autor. Por milagre - ainda há alguns, afinal - resta ao menos uma, pelos vistos enviada para o Museu de Lisboa e não para o Ministério da Marinha, que pomos em linha na qualidade de relíquia, já que Anchieta nos foi apresentado como um santo. Os exemplares de animais desapareceram na voragem científica dos museus portugueses. Por serem valiosos? Eis um bom tema para futuros trabalhos de investigação. Meus, não, já me bastam as ilhas, em que a trapalhada é proporcional à sua dimensão. Angola é muito grande, as espécies coligidas por Anchieta elevam-se a milhares, entre animais e plantas, descritas por portugueses e estrangeiros. Pode avaliar pela lista das espécies novas para a ciência classificadas por Bocage, incluídas no novo directório: são só as de Bocage e são só as espécies novas. A percentagem é pequena em relação ao total.
Contra a convicção de zoólogos actuais, as espécies descritas por Bocage não cairam em sinonímia, isto é, não eram espécies já anteriormente conhecidas que Bocage pensava serem novas. Os nomes mudaram e a ordem no sistema também, mas por enquanto permanecem válidas. Simplesmente, grande parte delas já não são consideradas espécies, sim subespécies ou elementos de superespécie. A superespécie é um conceito que abrange os híbridos. Este facto é sobretudo patente nas aves de Angola: quase todas as espécies de Anchieta - não me refiro só às espécies anchietae, sim a todas, mesmo as que não têm o seu nome na designação específica, como Craterops hartlaubi - quase todas as aves de Anchieta, repito, são hoje consideradas elementos de superespécie, isto é, são híbridos. Mais claramente ainda: é convicção minha de que esses híbridos são criação de Anchieta.
Incluímos no directório a colecção de textos de Bocage sobre as aves a que deu o nome de Craterops hartlaubii (Turdoides leucopygia hartlaubii, se ainda mantêm esta designação do século XX). Alguns textos são muito pequenos, duas ou três linhas extraídas das listas de aves, mas estão completos. Aproveitei fotocópias antigas, as palavras estavam sublinhadas com marcador transparente, mas não por todas serem gralhas. O interesse destes textos é o de constituirem um corpus completo para estudo. O último é uma folha com as duas páginas impressas. Não falta nada à reprodução electrónica, o objecto é integralmente ovni, sem autor, sem editor, sem data, sem nenhuma referência que o permita identificar, apesar de ser fácil, mesmo para o leitor, se dedicar alguma atenção ao conjunto, atribuir-lhe a autoria de Bocage. Qualquer outra nos poria face a uma falsificação. É um objecto linguístico excepcional ainda no que diz respeito às gralhas, que em geral só atingem os nomes próprios (sejam de espécie, de pessoa, de lugar ou títulos), a anatomia, a biografia dos autores e a geografia. Neste, a alteração de caracteres recobre todos os aspectos da língua, o ovni é apocalíptico. Dadas as circunstâncias, não admira que nele Anchieta tenha passado a chamar-se Anchietta... |