JACOB KLINTOWITZ
Marcello Grassmann: matéria dos sonhos

Meus caros amigos, 

Dia 21 de junho, às 2h00, morreu Marcello Grassmann. Foi um dos maiores artistas brasileiros. Nos últimos tempos mantivemos intenso diálogo. Marcello era de uma lucidez espantosa e dotado de rara capacidade de indignação. No dia 28 de maio ele recebeu um “Prêmio Homenagem” por sua contribuição à arte e à cultura brasileira da Associação Brasileira de Críticos de Arte, em cerimonia no SESC Vila Mariana, e eu recebi o prêmio em seu nome. Na ocasião contei como ele continuava lúcido, indignado e crítico à frivolidade na arte. Como gostávamos. Eu sempre acompanhei o seu trabalho e escrevi várias sobre ele e o coloquei em muitos dos meus livros e exposições. Quando a cidade São Simão tombou a residência histórica de sua família e criou a Casa Grassmann eu fiz o ensaio crítico no catálogo de inauguração.

Eu fui o Curador da sua última exposição no Espaço Cultural Citi. Neste Espaço eu já havia exposto muito do que de melhor o Brasil produziu: Yutaka Toyota, Claudio Tozzi, Ivald Granato, Odetto Guersoni, Juan Muzzi, Odilla Mestriner, Aldemir Martins, Mary Carmen, Antonio Hélio Cabral, Liana Timm, Takashi Fukushima, Shoko Suzuki, César Romero, Antonio Peticov, Marcello Nitsche, Fernando Pacheco, Cirton Genaro, Isabelle Tchuband, Carola Trimano, Neto Sansone, Luis Martins, Fernando Araújo, Luciana Maas, entre tantos outros.

A mostra de Marcello foi de 5.12.1911 até 3.2.2012. Eu inventei isto, uma exposição em dois anos, porque achei que Marcello Grassmann seria o artista perfeito para fechar um ano e abrir o outro. Era um símbolo. Agora espero que o simbolismo se renove e que a sua morte seja o ponto de partida para uma reflexão sobre o brilho seminal de sua obra.

No último texto que escrevi sobre o Marcello eu pretendi esquecer o que já havia escrito e olhar para a sua obra como se a visse pela primeira vez. Ele gostou muito mas, como era seu hábito e costume, achou que eu exagerei...

Abaixo o último texto sobre o nosso caríssimo Marcelo Grassmann. 

Abraço forte,  

Jacob 

Marcello Grassmann: matéria dos sonhos
Jacob Klintowitz

Talvez nada seja mais belo, poético, revelador, profético e inspirador do que a “Tempestade”, de 1612, a última peça de Shakespeare (1564-1616). E, é provável, que este texto outonal seja o testamento do poeta, a derradeira mensagem, a sua síntese sobre a humanidade e a saga dos homens. Nele, Próspero, a sublime criatura sonhada por William Shakespeare, define a natureza do homem e da vida: “Somos feitos da matéria dos sonhos”.

Ao contemplar as formas criadas por Marcello Grassmann, a extraordinária qualidade do seu desenho, o aprofundamento do tema de maneira tão elevada e com tanta propriedade, resta em nós a convicção de que entramos num universo antes desconhecido e agora revelado pela lucidez do artista. Este mundo que ele nos descobre e do qual sentimos que dele habitava em nós certo reconhecimento, agora recuperado, esta enevoada  e submersa realidade: a estranheza deste lugar de cavalheiros e armaduras, animais míticos, donzelas intangíveis e belas, e no qual o destino paira sobre todos. É o mundo feito da mesma matéria de que se fabricam os sonhos.

Marcello Grassmann elabora com a matéria sutil e a sua revelação é a de uma estrutura metafísica e ideal, densa e soberana, mas, e aqui uma das marcas do artista, construída na atmosfera da energia delicada e inapreensível, aquela feita de mitos e fábulas, que somente se acende quando a consciência adormece. 

Este universo manifesto é fatal e impassível, e só nos contempla como personagens.

Muitos poderão acreditar que se trata do resultado de uma vida inteira de trabalho e do aprimoramento de um artista que, afinal de contas, é hoje, aos 86 anos, um dos nossos decanos, patriarca e santo protetor da arte brasileira. E também teria razão. Ou certa razão, o que é menos do que a razão. Pois Marcello Grassmann desde o seu início sempre se destacou devido a sua originalidade e extrema consciência de sua individualidade. Entretanto, o artista, com o tempo a favor para elaborar a própria identidade artística,  afirmou de maneira esplêndida a singularidade de sua iconografia. Marcello Grassmann, um dos artistas destacados dos séculos XX e XXI, é referência seminal da arte brasileira.

 
 

Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Jornalista, crítico de arte, escritor, editor de arte, designer editorial. É autor de 90 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: jklinto@uol.com.br