MODELOS CRIMINAIS / Os três diabos
Hélio Rôla (pintura) & Floriano Martins (textos)
19-01-2005
www.triplov.org  

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10 OS TRÊS-DIABOS

A vida não deve saber de tudo. Deus não deve saber de tudo. O leitor não deve saber de tudo. A explicação empobrece o texto. Então como separar o cúmplice da vítima? Haverá uma polícia do acaso? Jamais deixar vazar uma identificação. Apagar todas as pistas, antes mesmo que sejam detectadas. Pôr sempre em dúvida todo método, embora ciente de que aqui as cartas se embaralham e nenhum de nós sabe mais do que estamos falando. Não importa. Já ninguém percebe com clareza o que está se passando no mundo. Tampouco há tempo para dedicar-se a uma única incompreensão. É preciso desentender de maneira indiscriminada, um sistema múltiplo de ausência de sentidos. Não se trata mais da droga que velozmente passa de um ponto a outro, do verbo que mingua nas mãos de letristas de canção e poetas, do invisível empilhamento de cadáveres patrocinado pelas campanhas de álcool moderado no trânsito. A estatística finalmente descobriu sua verdadeira natureza: falsear a realidade. Observando o mapa da multidão, como separar profusão de cópia? Deveria haver um trato íntimo da emoção, algo que nos torna incomuns, indistintos entre si. Um perfume, o jeito de pousar a mão no rosto do amante, o esquecimento. Uma questão de estilo - dispara o primeiro diabo recostado na fumaça de seu charuto. Mas que seja inédito - bafeja o outro velejando os vapores de sua bebida. Haverá um terceiro? Que deus é tão estúpido para se parecer com seu mensageiro? Desde o princípio, vítima e cúmplice se distraem em balanços no parque. Quem repassa a droga da alegoria, a metáfora do inferno, a hemorragia figurada? Os poetas merecem o mundo que assimilaram. Quanto mais desfigurado o dilema mais afeito à platéia igualmente adulterada. E todos ficam tão felizes com a maneira aprazível com que tudo funciona como se fosse um carrossel. Não é lindo ver o mundo assim tão unido? – ironiza o diabo do estilo. E, tão iludidas, crianças tão boas, crêem que são lidas – remenda com olhar quase patético o diabo inédito. A quem pode agradar o pesar? Tudo o que sentimos é dor. Não entramos no mundo de outra maneira. Do saber, da aflição, da ignorância – tudo é dor. De surdez fulgurante, não ouve senão a si mesma. Jamais saberemos o que lhe dói. Mesmo cansada, a dor apenas dói. Como posso sentir a dor do outro se não identifico a minha? Quem sabe uma excursão? – sugere aquele que quer manter o estilo. Talvez um concurso de ex-votos – arrisca o outro. Já sabemos que vazou identificação, que nada é como o que se supõe. Haverá um terceiro diabo? Um livrinho de três folhas, uma constelação? Nossa obsessão pelo legível nos levou à cegueira total. O que vemos, antes de tudo, é o que percebemos. A vida nos deve tudo. Deus nos deve tudo. O leitor nos deve tudo. A explicação sempre empobreceu o texto.