MODELOS CRIMINAIS / O diabo da carga Hélio Rôla (pintura) & Floriano Martins (textos) 19-01-2005 www.triplov.org |
8 O DIABO DA CARGA Com que ímpeto fazer com que o outro se encarregue de nós? Tudo é oneroso na pronúncia de uma dádiva. A lâmpada estava ali, ainda na embalagem e já consumindo o tempo, decidida a esclarecer apenas a mesma realidade obscurecida pela falência de uma outra, tão anônima quanto ela, e isto ainda antes de ser trocada, de ser tocada pela função. Somente os distraídos sobrevivem. Quanto mais exigimos de nós, mais nos tornamos irreconhecíveis. O que fazer de nossa bela imagem quando ela se desvanece? Carrego comigo tudo o que fui e o que serei. No aeroporto, tão mecanicamente simpática, a moça sorri para mim e indaga: “O Sr. tem bagagem?” – “Claro, não posso voar sem mim”. Quem viaja comigo - ticket no bolso -, o que extraio do outro enquanto penso em mim como uma bagagem a ser retirada em destino dado como certo, ou um vício de ser, que me sorri e contempla a paisagem vazia em sua boca azul de deus afogado? Quantos sabem, no caminho de um prato para outro da balança, o peso do que levam consigo? O equilíbrio acaso não passa de uma demonstração de nosso fracasso? O equilíbrio deforma? Um prato e outro. Nada se parece tanto com o mar quanto o deserto. Mas onde o obscuro vagabundo tombado delirante em tropeços (que sou) encontra seu peso não é no salto de um repouso a outro, ou algazarra de fronteira. Quando menos, o outro se arrisca a dizer que não dava pela própria sombra esgueirando-se em busca de uma trégua entre o delírio e seu escárnio. Isto não muda nada. O pranto onde geme o um é a mesma noite selvagem que espuma pela boca remontada da argúcia da ave diurna do outro que se julga pregado a si mesmo. A poesia torna o mundo tão distante… Quem desconfia, lendo um poema, que a vida sangra, incomoda, que o mundo não passa do peso acumulado do que imaginamos ser? |