MODELOS CRIMINAIS / O diabo da farsa
Hélio Rôla (pintura) & Floriano Martins (textos)
19-01-2005
www.triplov.org  

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4 O DIABO DA FARSA

O que leva um homem a esconder algo de si para que um dia venha ele mesmo a encontrá-lo? E o que leva a pensar que aquilo que esconde de si é o que de melhor possui? Se não, por que então ocultá-lo, preparando a glória de um dia desvendar-se diante de todos? O que leva um homem a dilacerar-se para que venha a ser o único a resgatá-lo em outra ocasião? Que espécie de crime merece indulgência quando o praticante o constitui como uma anulação transitória de si mesmo? O que torna o corpo de um homem inabitável por ele próprio? O que era uma noite de chuvas, a cidade recolhida em si mesma, um homem deixando o funesto se instalar, conduzindo o carro até um bairro afastado, ali escavando a terra e depositando frações do corpo, um homem com uma pá e se desfazendo de si, guardando-se para que um outro dia, já de sol e não mais às escondidas, fosse palco do reencontro surpreendente com os pedaços extraviados – o que era uma noite dessas? O que levaria um homem a buscar uma afirmação de caráter com base na negação do mesmo? A mesma pergunta sempre? Até que ponto nos iludimos, crendo que elas são distintas? Um homem arrancando-se um braço, um fígado, uma idéia, é possível que esteja disposto a tudo, a ponto de abandonar a noção de sua própria existência? O que faz a vida de um homem importar-lhe a ponto de flagelar-se para provar algo? Daquela noite, o que lemos foi uma nota na imprensa, a notícia de um arqueólogo japonês que foi surpreendido ocultando peças que logo seriam escavadas e descobertas por ele mesmo? O que leva um homem a desesperar-se em sua autoconfiança? Qual roca me fia aqui dentro enquanto improviso cantos da dor humana? Qual desfalecimento nos agarra com tanto afinco? Será ele um criminoso de si mesmo? Por onde estamos deixando de ser? Quais chances temos ainda?