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ORLANDO NEVES
O Manuscrito (1)
Matéria Escrita, Portugal, 2004
 
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Estava em Ciudad Rodrigo no Verão de 1994.

Esta a única época de que dispunha para realizar a breve in vestigação a que me propusera. A fastidiosa profissão de professor universitário impedia-me qualquer deslocação noutras alturas do ano.

Aproveitava, com sacrifício, um fim-de-semana tórrido para a viagem do Porto e uma rápida visita turística à calma cidadezinha espanhola, com uma funda ligação a Portugal, desde que D. Afonso Henriques a quis chamar a si, em disputa perdida com o Rei de Leão.Na segunda-feira procuraria no Ayuntamiento da Plaza Mayor, Don Felipe de Ia Santa Cruz, director do Arquivo Histórico da cidade e apaixonado historiador local. Tinha-me garantido, por carta, que na Biblioteca encontraria documentos sobre o Marquês das Minas e Conde de Prado, D. António Luis de Sousa, que comandava as tropas nacionais, invasoras de Espanha, durante a guerra da Sucessão. Ciudad Rodrigo ficara sob o seu senhorio quase dois anos, até que a aventura

expansionista portuguesa terminou, um tanto desastradamente.Os dados que lá encontrasse, permitir-me-iam esclarecer um período da vida do Marquês das Minas cuja história biográfica me ocupava as horas vagas, desde há cinco anos.

Don Felipe, homem severo e prestável, introduziu-me na sala dos reservados, com acesso livre a todos os arquivos. Não foi difícil localizar a documentação que procurava, dado estar muito bem referenciada.

Mas, por um súbito sentimento de curiosidade dei comigo a compulsar um acervo de outros manuscritos. A maior parte incidia sobre a actividade municipalista de há séculos, descrições pormenorizadas de feiras de gado, especialmente taurino, licenças camarárias, actas, plantas topográficas comentadas, materiais quenão me entusiasmavam, embora, aqui e além, desse conta de ligações fronteiriças provavelmente interessantes para um historiador económico e social.

Entre os papéis, porém, surgiu um pequeno caderno, fechado em duas capas de couro, atadas por um elástico apodrecido. Mas o que, realmente, me despertou a atenção foi o título, escrito numa letra cursiva, bem desenhada, notoriamente legível: NOTAS PARA UM LIVRO PORTUGUEZ.

Retirei o elástico que logo se partiu. Na minha frente tinha algumas folhas soltas, cerca de vinte, como contei, posteriormente. A tinta acastanhada, às vezes delida, a letra larga e irregular, diferente da da capa, o apertado espaçamento das linhas, certas rasuras que não ocultavam totalmente a palavra corrigida, saltaram-me à vista.

Pequenos textos estavam subordinados a uma numeração.

Comecei a ler, em diagonal. Em breve, todavia, voltei atrás, e dispus-me a uma leitura atenta e concentrada, surpreendido pelo que ia descobrindo.

As notas eram escritas em português do Renascimento, havia períodos em castelhano e, muito frequentemente, apareciam palavras ou nomes que me apercebi serem de línguas orientais, hipoteticamente, indianas e chinesas. E nem sempre as frases eram decifráveis, porque riscadas, porque a tinta se aguara ou ainda porque o papel se fragilizara e dera origem a pequenos buracos que cortavam a compreensão.

A leitura demorou pouco mais de duas horas. No dia seguinte, Don Felipe autorizou-me a fotografar todas as páginas.

Sabia que estava perante um documento cujo conteúdo se relacionava com a história portuguesa em determinada época do Século XVI.

Tratava-se de uma exposição de notas a um outro manuscrito de que, na Biblioteca de Ciudad Rodrigo, não havia rasto. O autor devia ter alinhado estas notas pelo menos até ao ano de 1571, última data mencionada.

Era um português que vivera e certamente morrera na cidade, fugido à justiça real por um crime cometido em Coimbra de que as notas não dão completo relato, mas se depreende estar narrado no livro desaparecido.

É, pois, o texto dessas Notas que, a seguir, transcrevo, não na totalidade. De facto, certas apostilas são de carácter vago, ininteligíveis e, aparentemente, desinteressantes, muitas vezes explicativas de datas e percursos pela China, cuja utilidade só se avaliaria pelo conhecimento do texto a que se reportam. Daí, a sua omissão.

Por outro lado, actualizei a ortografia e certos arcaísmos fonéticos, refiz, da melhor maneira, as frases desconexas, traduzi as em espanhol, ignorando os caracteres chineses e uma ou outra palavra em língua que desconheço.

Ficará esse trabalho para quem tenha competência para o fazer e a quem, desde já, coloco à disposição as transcrições fotográficas que possuo.

Estou, porém, em crer que o que se segue é deveras curioso e proporcionará a revisão de algumas ideias feitas sobre vários acontecimentos ou personagens da época em questão.

 
AS NOTAS
 

I) De coisa lasciva e desonesta, que atentava contra os bons costumes do reino, foram meus versos juvenis condenados no Index de 1551, tantos anos passados depois de escritos. Não sei se ainda existem, por certo, ocultos, esses versos, em casa de algum dos meus amigos de então que só esses deles tomaram conhecimento, por minha oferta. Nem eu os tenho, porque perdi toda a livraria nas viagens. Muito pequena seria também esta casa em Ciudad Rodrigo para guardar tais velharias.

Era uma escolha de sonetos, feitos ao estilo italiano, em louvor da minha amada, cujo nome devo omitir, pois grado era o seu lugar na corte e, hoje, ao que sei, vive em Évora, mui bem casada. Creio que foram os que dediquei a seus olhos, a sua boca e ao seu colo de deusa, os causadores da interdição.

Contou-me J.M., um fidalgo frequentador do Paço Real, que aqui veio e me encontrou de imprevisto, supondo-me de visita, que lhe parecera, há bem pouco, ter ouvido, num sarau em Lisboa, um desses sonetos, atribuído a um poeta desconhecido, regressado da fndia, cujo nome não recordava.

Não é já tempo para me enojar por tal desaforo, ao fim de tão longa vida, sempre vivida entre desgostos e infortúnios.

Se algum engenho ou arte tais sonetos tiverem, que deles gozem os leitores que os puderem ler, sem cuidarem de saber do infeliz poeta que, um dia, tomado de puros amores, os escreveu.

 


VII) Com que tristeza me vem à memória Tomar!

Foi cidade da minha infância, a que nunca mais voltei, nem, por certo, voltarei.

Nasci em Montalvo, sendo o meu pai ourives em Tomar. Ainda não completara sete anos quando morreu minha mãe, de mal de peste. Temendo pela minha saúde, meu pai foi para Évora, ao tempo cidade de muito apreço da fidalguia e da corte.

Sua fama de excelente artista do ouro e da prata chegou ao Paço. Veio, porém, a falecer, de repente, quando terminava uma custódia para o poeta e cronista G. de R., seu muito amigo.

Foi G. de R. quem me recolheu em sua casa, no Espinheiro, até que Pedro Damião, meu tio, por parte da minha mãe, me foi lá buscar para me levar para Odemira, onde ele praticava a arte de boticário, embora já muito doente, de tal modo que, quatro anos depois, se finou, nos meus braços e nos de sua mulher. Terei azo de falar de D. de O. pois lhe devo o melhor da minha educação, o saber que, outrora, tive sobre plantas e mezinhas medicinais, além de ter sido quem me aperfeiçoou o latim e me ensinou a mitologia e a história do mundo.

De novo, voltei a Évora a casa de G. de R. Era este muito estimado na corte e por el-rei, em virtude das suas qualidades de poeta e secretário que fora de D. João II. Em boa amizade me teve e muito me influenciou a sua cultura, que era invulgar. Jamais esquecerei os saraus, ouvindo-o cantar e trovar trovas suas e doutros. Foi ele e esses tempos que me trouxeram para a arte de compor versos. Quando chegou o momento da embaixada de el-rei ao papa Leão X, G. de R. foi nomeado secretário e tesoureiro de tão importante viagem. Eu tinha pouco mais de 14 anos, mas G. de R. levou-me como pajem na sua comitiva. Essa memorável estada em Roma não a pude mais esquecer, de tal maneira que voltaria à cidade outras vezes nas minhas peregrinações pelo mundo. Lá vi, durante a permanência da embaixada, grandes coisas, certas, lastimosamente grandes, que me mostraram quanto são ambiciosos e traiçoeiros os homens, sempre a quererem mais do que Deus determinou que pudessem.

 

IX) Suma miséria da alma que tanto se dirigiu para o corpo que, por isso, foi imperfeita, desproporcionada e infeliz!

Pela graça formal da formosura me perdi não sei em que incontáveis paranças da minha vida. Confundi o amor que é desejo do formoso, desejo do deleite, com outra espécie do desejo a que os filósofos morais chamam o apetite carnal. E se o desejo de deleite é sempre elevado e nos torna felizes, bem desventurados nos faz o desejo que é apetite. Como disse Platão, pela maior parte foi o meu amor excessivo das coisas corpóreas, o amor bestial, não temperado com o honesto, nem medido com a direita razão, sobretudo quanto aos deleites carnais, o que prevaleceu sobre o que o filósofo chamou o amor humano, aquele que é temperado pelas virtudes morais, ainda que na sensualidade.

Mas em algo mais me excedi e essa foi a vez em que o amor-apetite cedeu à formosura divina da alma, claridade e grandeza e por ser por Deus inspirado esteve para além do meu entendimento. Tão alto meus olhos pousaram que os homens me expulsaram desse curso de altura. Era a minha amada tão longe de mim e tanto a louvei com o mais espiritual amor que me obrigaram a desterrar da pátria, assim tendo começado a minha má fortuna e desgoverno.

Esse amor que foi ardente e diáfano me fez sair de Lisboa para Itália com vinte e oito anos e daí para as terras da fndia e da China, embarcado em nau que fundeou em Lisboa, mas donde não pude sair por me ser interdito vir ao chão pátrio. Cedo compreendi que a maravilha da viagem com G. de R. não se repetiria.

Deixado de Deus, jamais pude sarar tormentos, dores e traições.

 

X) Conheci L. de C. na nau de S. Bento que partiu de Cochim, em 1554. Como se sabe, essa nau, capitaneada por Fernão d' Alvares Cabral, naufragou nos mares do Cabo e grande foi a perdição de homens e mercadorias. Andámos por florestas, matos e desertos, com cópia tal de desventuras que apenas nos salvámos 23 dos 322 que éramos à partida. L. de C. e eu estávamos entre os que suportaram todas as privações. Fiz com ele amizade na nau e muito nos ajudámos na peregrinação de salvamento, até chegarmos a Lourenço Marques.

Era ele um moço muito novo, de cabelos claros ondeados, olhos cinzentos e vivos, ora fitos, ora hesitantes. De aspecto franzino, veio a revelar-se de grande resistência aos sofrimentos, embora fosse de estatura mediana. Usava barba e bigode amarelados, os dentes eram escuros e irregulares, a boca sensível e resoluta, tremia-Ihe a pálpebra direita.

Tinha propensão para versejar, mas fazia-o sem golpe. Perdera-se de amores por uma judia que veio a fugir para a Holanda. O desgosto fê-Io embarcar para a fndia onde foi ferido várias vezes. Regressava a Lisboa, sem fortuna, disposto a tentar um emprego na corte. Ouvia-me com extraordinária atenção quando eu, nos mais dificultosos trabalhos, soltava aos ares os meus versos para melhor suportar as impossibilidades terríveis que nos surgiam nas jornadas. A memória de L. de C. era prodigiosa, a ponto de, não raro, me surpreender dizendo sem erros de maior os versos que eu antes gritara, entre os quais os de um longuíssimo canto no qual ainda trabalhava. Creio que jamais os esqueceu.

Porém, L. de C., em Lourenço Marques, determinou-se a voltar à fndia, pesaroso da miséria em que se apresentaria na pátria e demasiado orgulhoso para surgir entre os amigos em tal penúria.

Eu fui para Coimbra onde me sucedeu a desgraça maior da minha vida que me levou a este degredo, depois de uma derrota inquieta por terras de Itália e Alemanha, fugido à justiça de el-rei que, por certo, me cominaria pesada e dolorosa pena.

Mas desse infortúnio vos falarei laudas adiante.