|
ORLANDO NEVES |
O Manuscrito (2) |
|
XV) Bem venturosos foram os anos que passei em Odemira,
com o meu tio D., embora a enfermidade de que sofria e para a
qual nem ele, sábio boticário, encontrou panaceia, se fosse
agravando, também por mor da sua idade e pela inconsolável
tristeza de nunca lhe terem dado o reconhecimento a que, mais
que muitos outros, tinha direito.
Mesmo após ter escrito um tratado sobre o xadrez que, pela
Europa fora, foi mil vezes copiado e de ter lançado as bases de
uma medicina natural (outros, conhecedores de novas plantas,
muito dos seus conhecimentos aproveitaram para glória própria),
apenas de G. de R. colhia homenagens que, apesar dos esforços
do poeta e cronista, nunca foram reconhecidas por el-rei.
Notável homem era meu tio, sempre, embora a amargura, de
semblante benévolo e alegre. Com bom rosto recebia os que o
visitavam, não muitos pois Odemira não ficava nas rotas das
viagens dos cortesãos.
De um desses visitantes me recordo bem. Veio, de resto,
morar em Odemira por um ano. Ali estaria, desterrado de Lisboa
pela corte, pois, dizia-se, houvera ofendido em uma das suas
peças, uma velha infanta, tia de el-rei. Era G. V., poeta popular,
muito admirado na capital, por ser autor de autos, farsas e
comédias que divertiam a corte.
Sendo homem pequeno, de rosto carregado e sombrio,
sobrancelhas caídas, queimado e um tanto grosseiro, tinha tal
alegria no coração e no espírito, de natural mordaz e certeiro
crítico, com palavra tão pronta e feri na que conseguia fazer sorrir
D. de O. mesmo nas suas piores crises.
Propôs-se meu tio, nas tardes calmosas, sob o beiral do
telhado, ensinar-Ihe os mistérios do jogo de xadrez. G. V. aceitara
aprender, mais por desfastio do tempo inútil que ali passava até
chegar o termo do desterro, do que por verdadeiro e real interesse. Apesar, muito gracejava sobre a movimentação das peças do jogo que a ele lhe pareciam os passos, os saltos, as voltas e
contravoltas dos seus actores quando os dispunha nos tablados
dos salões.
Já eu estava em Goa quando me chegou notícia da sua
morte, o que muito me entristeceu. G. V. falou-me tantas vezes
da sua arte de representar que o vim a querer imitar, como autor,
em autos e comédias, cujo paradeiro desconheço, pois os perdi,
bem como os versos, nas selvas do Cabo, aquando do naufrágio
da nau de S. Bento, de que já falei.
|
... |
XVI) Escuso-me, nesta relação, a narrar histórias sem conto
por delas ser apenas testemunho de ouvida. Mas, além do facto
que assinalo, passado com o nautaquim do Japão por tão
pasmado ter ficado com a espingarda de Diogo Zeimoto, muito
poderia dizer ainda destes japões, gente muito bem inclinada e
conversável, à qual se deve de louvar o bom governo. A nós,
portugueses, a quem chamavam chenchicogins, por virmos da
fndia, deslumbrava-nos tais atitudes de seriedade que, de resto, já
nos tinham admirado quando vivíamos entre os chins. Nesta
altura, idos tantos anos, não me certifico, com clareza, onde ouvi
a história que escrevi de um rei cego, grandissimamente amado
do seu povo, pela sua brandura e preocupação com os que
padeciam necessidades. De tal forma, ordenou que, para remédio da gente pobre, houvesse, em todas as cidades do reino,
celeiros de trigo e arroz para que, nos anos de esterilidade da
terra, tivessem as gentes mantimento de que se sustentassem e os
pobres não morressem à míngua. E, quando assinou, com um
sinete de ouro, tal padrão ou diploma, logo Deus lhe deu vista
perfeita que lhe durou até ao fim da vida.
Entre muitas e belas coisas que vi nestas terras, não é isto
coisa menor, se comparada com o desprezo dos nossos reis e
príncipes pela gente miúda das cidades e dos campos que de tudo
morrem e mais da fome e da miséria.
|
|
XVIII) Tento aqui o rigoroso caminho da verdade, que outra
causa não me move. Mas forçoso me é dizer que reconstruo, pela memória, meus passos, fortunas e desfortunas por terras da China
pois bem escassos são os papéis que salvei.
Como digo no livro a que se referem estas Notas, estava
preso no Pequim, acusado de desonesto comércio, mas sabe Deus
Nosso Senhor que tal não era certo, pois em que andasse na armada do cossairo Quiai Panjão, que muito estimava os portugueses, o meu mister era o de marinheiro de vela.
Que maior vingança da sorte foi esta, nas masmorras
açoutado a todas as horas e condenado a que me cortassem os
dedos das mãos, não fora mais tarde, por intervenção do provedor
dos pobres, o tribunal me ter abrandado a pena para prisão
perpétua que só o não foi porque, uma noite, com um guarda que
se queria passar para a armada do cossairo, fugimos todos os
portugueses presos.
Mas estavam na mesma prisão outros portugueses que, tendo
escapado a um tufão, deram em uma praia onde os apanharam
como vadios.
Eram seis, um deles A. F., outro C. B. e outro ainda F. M. P.
Com eles falei longas horas pois me pareceram gente aventurosa
como eu, que muito sofrera na ânsia de enriquecer e tornar a
Lisboa com larga fazenda.
F. M. P. era homem com grande tristeza no rosto,
semelhando moço rústico dos matos, de cabelo espesso e pele
agreste, mui calado e manso, com gestos corteses, mas
desajeitados devido a ter mãos enormes. Contou-me que se queria
ir ao Japão, levando fixa no pensamento a ideia de se fazer da
Companhia de Jesus onde conhecia o padre-mestre espanhol
Francisco Xavier. Por ser minha ideia também ir para o Japão lhe
entreguei um saco que sempre trazia aconchegado ao peito e
onde guardava muitas folhas de notas sobre a minha passagem
pela fndia e pela China. Nessa altura ainda não sabia que, em
breve, se daria a minha fuga.
Melhor me fora chorar que lembrar. Não voltei a ver F. M.
P. e disseram-me, em Malaca, quando eu retornava à fndia, que
ele por ali passara, mas fora morto no reino do Sião.
Hoje não sei se a minha memória segue o rigoroso caminho da verdade, pois esse estava nos papéis que, com F. M. P., se
perderam.
|
|
XXI) Não é este o azado momento para muito avançar na
história da minha vida, pois se Deus Nosso Senhor me der forças
e serena razão, em outra oportunidade o farei. Certo é que neste
já longo relato falo do que passei por terras da Índia, China e
Japão, mais do que vi e aprendi, do que senti ou sonhei.
Aponto, todavia, em curtas palavras, o que me aconteceu
depois da morte de D. de O.
G. de R. tomou-me a seu cargo até aós dezassete anos, idade
em que fui para Lisboa, por ele recomendado para secretário
privado de Dom A. de N. Pouco tempo me demorei nesse
trabalho, dado que Dom A. de N. considerou que lhe seria mais
útil na Casa da Índia onde ele fora incumbido por el-rei de zelar
pelo comércio da pimenta.
Ocupava meus ócios, que eram bastantes, gastando-me na
estúrdia em Alfama, o que me deu possibilidade de conhecer
muitos nobres que, por terras de Ceuta e Goa tinham amealhado
com que esbanjarem e muitas vezes me ajudaram a perder-me,
em gozos e vícios. Morava em casa de meu primo C. de L.,
comerciante de brocados junto ao Cais da Ribeira. Porque muito
me endividei, foi esse meu primo quem me salvou de algumas
mores aflições, sem que do destino de boémio me pudesse livrar.
Ousava eu longe e alto. Mas meus versos me deram fama
de vate entre as mulheres e os fidalgos, os quais por demais me
levavam a seus palácios para os divertir em folguedos e saraus.
Foi vida digna de ser lamentada quando tomei senso dos
erros e enganos que cometi deixando-me guiar por quem mais
podia do que eu.
O maior dos males foi esse amor que dediquei a uma
parenta de Dom A. de N., que vivia na corte, por cujos olhos,
formosura e pureza padeci, tendo dela grandes esperanças para
a minha vida mudar, pois que, até aí só de mulheres de fácil
apreço me tinha aproximado.
Veio Dom A. de N. a saber e me despediu da Casa da fndia, deixando-me sem posses e sem nome. Como meu primo não
pudesse sustentar-me mais tempo, de novo G. de R., se condoeu
da minha sorte e me aconselhou a que saísse de Portugal, até
tudo se esquecer.
O que fiz, indo para Itália a servir na casa do cardeal M. T.
della F., em Roma.
|
|
XXVI) Estas são palavras que retiro da memória, as quais
escrevi em Goa a pedido de G. de O.
Entre muitas coisas em que era sábio, G. de O. dedicava-se
ao estudo e cultivo de plantas novas que os mais doutos não
conheciam e, mal lembro, descobrindo segredos certos, a todos
os antigos encobertos.
Vinha eu da alfândega de Diu para a de Goa quando o
encontrei pela primeira vez. Julguei que fosse, tão-só, um
comerciante de especiarias, pois nessa qualidade me procurou.
Mas porque, em razão disso, o visitei em sua casa, vezes várias
e também na casa de uma jovem nativa onde ele pernoitava,
soube que era médico tido em muita nomeada pois fora físico do
capitão-mor do Mar das Índias, Martim Afonso de Sousa e, mais
tarde, do Grande Hospital de EI-Rei, em Goa.
Desde muito se dedicava ao estudo das plantas da Índia que
cultivava num horto em sua casa, ao mesmo tempo o local onde
fazia observações e experiências e onde armazenava as plantas
para depois as vender.
Era homem duro e amargo, nervoso e irritável, de pequeno
porte, mas de compleição larga que, pelo murmurado, fora muito
infeliz no casamento. Punha grande porfia no seu labor de
botânico e médico. Era homem assaz rico, dado a uma vida sem
peias, gostando de frequentar a nobreza, os capitães-mores, os
comerciantes graúdos e os dignitários indígenas.
Por algum tempo fiz com ele amizade, pois me lembrava de
meu tio D. de O. e do seu amor pelas plantas, todavia só pelas
que tinham virtudes medicinais, o que não era o caso de G. de O., tão grande sábio quanto próspero negociante.
Lembro-me que se dizia em Goa ser G. de O. filho de judeus e herético, o que nunca confirmei pois sempre o vi
cumprir, fielmente, os preceitos da Igreja Romana, certas vezes na
minha companhia.
Chamavam-Ihe em Goa, na época, o Ervas.
Há pouco tempo deram-me notícias sobre o livro que
publicou, grande tratado acerca de plantas e drogas. Dele devem
constar os versos que escrevi em seu louvor, dos quais não tenho
cópia e só recordo alguns, tais os que transcrevo no livro.
|
|
XXXI) Quanto mais conhecia os trabalhos da vida, tanto mais
Ihes temia os perigos, pelo que nesse tempo me não aventurava
a empresas que ignorava e disso é exemplo o caso narrado.
Durante os muitos anos em que fui estouvado e desvirtuoso,
sempre me julguei protegido pela alma da minha amada e é bem
verdade que o seria, pois todas as desgraças que sofri, as paixões
e os martírios, não me deram a morte que um dia virá. Há muito
a mesa está posta e, se não vier ao jantar, virá à ceia, tão certa
é, como incerta a sua hora.
Mas, no amor, cada um é ele mesmo e aquele que ama. A
alma do amador é o ser amado. Comigo andou essa alma pura
e tão cheia de virtudes, até ao dia em que a senti abandonar-me.
A hora está prestes. Vou-a experimentando no corpo, em este ano
de 1571, temeroso já que não me baste o tempo para completar
esta obra, a única que de mim ficará, perdidos todos os meus
versos e a crónica da China e do Japão.
Narro o facto, mais o pavor tido por o enfrentar e como foi
a minha fuga da ilha de Tanixumá para Malaca e Índia e como
embarquei na nau de S. Bento.
Poucos foram os meses vividos em Coimbra onde era copista
no Colégio de Jesus. Um terrível encontro com um fidalgo de
Lisboa, a quem devia honra desde os meus dias na Casa da Índia,
levou-me a um duelo de que vim ferido e ele morto.
Na mesma noite me conduziram à Guarda mas de lá fugi
para Espanha e depois para Itália. Foi dolorosa a viagem a Roma
onde ninguém me conhecia e fui tratado como lacaio em casa do
cardeal. Até que vim para esta cidade, sob outro nome, suportando a miséria, ocupado em escrever os meus infortúnios,
sem curar de mais, por nenhuma esperança pôr em voltar à pátria.
Antes de escolher esta derradeira morada, fui-me à Índia, na
companhia de um clérigo espanhol, ali mandado à Companhia de
Jesus, pelo cardeal.
Mal chegado, porém, me afastei dele por ter encontrado em
Diu um fidalgo do tempo vicioso de Lisboa (sempre a amizade
dos viciosos desacredita e põe mácula). Na alfândega, por sua
influência, cometi desmandos que me levaram a Goa, no mesmo
ofício.
Um ano, não mais, lá estive. Mas os maus colóquios
corrompem e perdi-me, outra vez, na vida dissoluta pelos bairros
da cidade. Fui coveiro, jogador, escriba de cartas, negociante de
panos e ervas más.
Um dia, embarquei para a China num barco cossairo e
aventurei-me por suas terras e do Japão, como escrevo neste livro.
Até ao regresso em 1554. Vinte e seis anos tinham passado desde
que saíra de Lisboa. Cheguei tão pobre quanto fora, sem os meus
bens que eram os meus versos e os papéis que deixei a F. M. P.
Um dos enganos em que se atola o género humano é o de
julgar que as coisas do mundo são firmes e estáveis. Enfim,
reconheci como era falso tal pensamento. Tudo passa, nenhuma
coisa está. E se alguma nos fica firme na alma ou no corpo é a
dor, o desengano, a traição.
Não soube que a verdadeira ciência e a verdadeira bem-aventurança não se podem apartar da virtude que em mim foi
pouca por ter recusado que a vontade se submetesse ao império
da razão. Certo é que, em meus versos, sonhava e cantava o amor
como refrigério da vida separada que vivia e exaltava a minha
Pátria como farol do mundo. Não me restam, porém, forças e
tardo e boto é, agora, o engenho para a eles voltar. Quantas vezes
caí, quantas vezes tropecei, quantas vezes errei, quantas vezes a
fortuna me desfavoreceu, quantos versos escrevi em que chorava
a minha tristeza e o meu arrependimento, no propósito de não
voltar a cair. Todavia, me deixei sempre vencer pelas paixões
indignas da alma e das coisas corpóreas.
Muitas foram as pausas de meditação para que de tal
caminho me afastasse. Mas só Deus é o mestre da veríssima
sabedoria e o que via à minha volta era o menos preço que se
dava à virtude, a troça à honestidade, o nojo à pobreza e, acima
de tudo, se dulcificavam e idolatravam a riqueza e a ostentação,
o vilipêndio e a calúnia, a traição e a fama, a glória vã e a oca
vaidade.
Nunca sofri do erro da impiedade, porém frágil foi a minha
vontade, como se as coisas ideais se mostrassem mui fracas
perante o desconcerto e a mudança do mundo.
A paixão da juventude feneceu com os anos corridos e
jamais, na carreira da vida, encontrei o que a substituísse, salvo
o amor do verso para que de mim ficasse memória tão cheia de
benignidade que se pudesse esquecer o que fui e os males que
me quebrantaram a virtude.
Agora, vindo próximo o termo da vida, acho meu discurso
vão e inútil. Só na aparência as coisas mudam ou mudarão e
sempre assim serão os homens.
Por Isaías, disse Deus que havia de criar um novo céu e uma
nova terra. Que naquele Ele me receba, em sua infinita mansidão,
eis o que ainda desejo, na hora em que do meu catre, neste calor
sufocante de Agosto, diviso as altas serras do Portugal, a que tanto
quis servir e que, por seus homens, tantos obstáculos me levantou
e com ferida de morte me trespassou ao longo dos anos do século
em que vivi e vivo.
E pois que, por enquanto, vivo, forçoso me é que continui
este livro, até que meu aflito ânimo se extinga.
Em nota adiante vos falarei de D. do C., o cronista, que foi
meu amigo quando do Japão regressei a Goa no ano de 1553,
sendo vice-rei...
|
|
|