- pois toda carta em si já contém um pouco de piedade:
franz kafka -
hoje é quarta-feira, na sexta receberei correspondência de tia nancy - era o que pensava piá quando se pôs a escrever. meu querido jovem, diria a carta. tia nancy sofria de saudades fortes e clamava por notícias, embora soubesse que o sobrinho tinha uma vida social intensa que lhe tomava os momentos de ócio. ela também perguntava pelas mulheres de piá: já decidira casar? é claro que pretendentes não faltavam (tia nancy mencionava aquela atriz de televisão que quase enlouquecera por seu sobrinho), não seria hora de escolher uma esposa? e quando ele finalmente teria uma folga qualquer na cidade e iria visitar seus velhos parentes? tio edward continuava forte como elefantes, apesar da idade, e seguia cultivando suas flores, mandava lembranças. o restante da carta vinha com as recordações da infância de piá. um tanto aborrecido, ele pensava, mas tia nancy se apegava muito ao passado: lembrava do tempo em que piá vivia com ela e o tio, e como todas as manhãs o garoto saía sorridente rumo à escola, mas sempre esquecia alguma coisa - um lápis, um caderno, o lanche - e ela tinha de ir atrás para alcançá-lo antes que ele entrasse na kombi. tia nancy tentava se lembrar do nome da freira que conduzia a kombi repleta de crianças alegres. como era mesmo? aquela senhora com cara de brava que vivia atormentando a imaginação dos alunos? ah, claro, irmã angelina, como poderia esquecer da irmã angelina? estaria ainda viva? já era bastante idosa àquele tempo, piá se lembrava da irmã angelina? piá se lembrava, é claro, mas certamente preferia esquecer a infância pois tinha assuntos importantes nos quais pensar agora: o novo trabalho, os amigos, as namoradas, as noites de festa na cidade grande. como tia nancy escrevia todas as semanas, as cartas tinham de ser curtas, não acontecia muita coisa em rosário - a pacata vidinha no interior. apesar disso, piá as respondia com muito carinho e paciência, mesmo que para tanto precisasse chegar um pouco mais tarde às reuniões de amigos e aos compromissos que tinha quase diariamente. pobre tia nancy: ela e tio edward deviam sofrer um bocado com a solidão de rosário. foi por isso que piá decidira sair de lá e agora desfrutava da intensa vida na metrópole. está evidente que jamais se arrependera. afinal, aqui ele convivia com pessoas de todos os padrões e cultivava as mais variadas amizades. é claro que sentia saudades dos tios - e sempre frisava o fato nas cartas que lhes escrevia - mas nada no mundo o faria voltar para uma cidadezinha tão vazia. aqui sim, ele ia a um lugar diferente a cada noite: um cinema, um bar, uma exposição de arte, uma festa na casa de algum de seus inumeráveis conhecidos. piá sempre terminava suas cartas dando vivas ao mundo solidário, variado e rico da metrópole. dessa vez não seria diferente. ele já pensava em todas as respostas que daria à tia nancy, perguntaria como vai o jardim do velho, se não estão necessitando de alguma ajuda, etcétera. a velhinha terminava a carta com o seu já tradicional “com imenso afeto, teus eternos companheiros que te estimam como ninguém”, e assinava com a letra redonda e trêmula de solidão. m pôs a carta no envelope, o nome piá como destino, selou - guardava um estoque de selos - e saiu pelas ruas monótonas da grande cidade. sexta receberia carta dos tios. esperaria por ela, ansioso, durante dois dias, e na resposta pensava agora em fazer uma pergunta que há muito não o deixava: tio edward ainda cultivaria aqueles belos botões-de-rosa no portão da casa?
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marcelo brum-lemos é professor de literatura e compositor (músico da banda ZAIUS e autor do CD “res”), recentemente premiado no Concurso Nacional de Mini-contos promovodo pela SEEC-PR