Sou astrónomo, contador de estrelas. Espreito lá para cima, para o infinito. Os meus pés desprendem-se da Terra, caminho pela via láctea, deslizo pelo Universo, converso com as estrelas. As estrelas são aquilo que nos transcende, um oculto distante que nos é ininteligível. São repercussão candente, brilho e sonho. Mas, por trás da luz, esconde-se fogo, por trás da ilusão, a matéria banal. O silêncio da noite acompanha aquelas que, com atraso, nos falam de vidas que há muito podem ter perdido. Na procura e no erro nós nos fazemos estrelas, nos iluminamos, nos perdemos e, no final da luz, nos agregamos à galáxia infinita das estrelas mortas. Porque nos perdemos, porque somos fracos em memória colectiva, tememos o fim e não pensamos no princípio. O que nos transcende é o que nos remete para a nossa pequenez. Formigueiro tão insignificante, não sabemos que o gigante nos esmaga, que as estrelas nos dominam. Mas se o que nos guia, ilumina, dá alento e motivação cai a escassos passos da mentira, que a verdade seja o sonho por conquistar e a realidade uma mentira.
Fecho o telescópio, respiro fundo, dispo a bata e visto o casaco. Despeço-me do segurança e entro no escuro da noite. Caminho sem direcção.
As estrelas trazem-me música, pensamentos sobre a origem e a finalidade da vida terrena. Distanciam-me do banal, do dia-a-dia, da rotina. Flashes de luz iluminam o meu caminho de regresso a casa. São a poeira das estrelas que guardo na minha memória. Como é a vida cá fora, longe da infinita e esmagadora realidade donde saio? É sempre difícil voltar das estrelas.
Naquela noite, estava com o Raul Seixas na cabeça. Parei junto à mulher gorda, na paragem de autocarro. Ao fundo da estrada surgiram duas enormes estrelas. Era o autocarro. Fiz sinal e ele parou. Deixei a mulher gorda passar, depois eu, depois um sorriso para o carão do motorista que conduzia há horas e nos amaldiçoava por lhe darmos mais trabalho.
Sentei-me lá atrás ao pé da janela. O autocarro ia vazio. O movimento rápido e silencioso do transporte através das ruas desertas de gente transmitia-me tranquilidade. O céu estava limpo e as estrelas viam-se com nitidez. Eram biliões de pontinhos piscando no escuro.
Conjunto de gases incandescentes que irradiam luz. Explicação que nada explica. As estrelas enquadram-se num contexto muito maior, o universo. São microcosmos dentro de galáxias. Cada estrela tem planetas com satélites e muita poeira. Podem ser mundos, civilizações e respostas que ainda não possuímos.
O autocarro parou, entrou um cigano. Era um homem barbudo, de rosto duro, pele escura, cabelos mais negros que qualquer buraco do Universo. Vestia um fato preto. Ao olhá-lo, a primeira impressão era de banalidade. Tinha o aspecto vulgar dos ciganos que permite a sua identificação intuitiva pelas outras gentes.
Pediu um bilhete. O motorista entregou-lho. No rosto e no gesto havia desprezo, um desprezo que o mau humor agravava. O cigano meteu a mão no bolso do casaco preto. Tirou uma pistola. Disparou sem pestanejar sobre a cabeça do motorista.
Dizem que no espaço, sem gravidade, podemos ver as balas a deslocarem-se até ao objectivo. O que é uma bala contra uma estrela?
O motorista caiu sobre o volante. Da sua cabeça saltou um jacto de sangue que encharcou o casaco negro do cigano que se inclinou e desligou a ignição. O autocarro guinou, atravessou a rua e subiu o passeio do outro lado, estacando com fragor.
A mulher gorda gritava. Eu estava calmo como os gelos do pólo e só pensava que nada, nem as estrelas vivem para sempre.
A mulher gorda saiu do lugar a correr e a gritar por socorro. Imóvel, o cigano disparou de novo. A bala perfurou o peito da mulher, passou a escassos centímetros de mim e saiu pela janela.
A via láctea é a galáxia onde nos encontramos. Tem esse nome porque é branca como o leite. O sol não é a sua maior estrela nem sequer uma das maiores. Há muitas mais gigantescas, mas o sol tem realidades e sítios com que nós nem sequer sonhamos. Mas, como nos sentimos incompletos com essa solitária estrela que nos ilumina, queremos conhecer as outras.
O cigano começou então a caminhar na minha direcção. Podia vê-lo face a face. Tinha dois olhos verdes que pareciam diamantes embebidos em água e um olhar perfurante. O braço dele esticado com a pistola no fim como um apêndice. Estava calmo, quase feliz. Pisou o corpo da mulher gorda, como se fosse o próprio chão. Uma lágrima escorria-lhe pelo rosto. Estacou junto de mim.
Os problemas terrenos ultrapassam-nos tal como nos ultrapassa a explicação do Universo. As estrelas tornam-se herméticas quando as tentamos ler. São como armas apontadas à nossa pequenez. Como esta pistola brilhante que é fogo mortal.
O cano frio encostou-se à minha cabeça. Eu estava mais calmo do que o homem e, ao fechar os olhos, previa o meu destino. "Tu não sabes..." disse o cigano "...não sabes o que é ser cigano.". Continuei com os olhos fechados.
E enquanto ele falava com uma voz lenta e destroçada, o meu pensamento deslizava rápido como uma estrela cadente que cruzasse a atmosfera terrestre antes de se desintegrar em poeira. Agora, que estava quase a atingir a última paragem, se a conseguisse alcançar, deveria ou não revelar aos outros a minha descoberta? A descoberta de nove anos de pesquisa, a da estrela mais potente da via láctea, com a nuvem de poeira que a circunda, com os seus planetas onde poderá existir vida. E qual a importância dessa descoberta que, cinco minutos antes me enchia de orgulho e, agora, me parecia ridícula e descabida? Para quê revelar que tinha descoberto uma nova estrela, um novo sistema solar? Um sistema com planetas, um dos quais talvez semelhante ao nosso. E que interesse haveria em conhecermos outra "Terra" e em duplicar o número de seres que não compreendemos?
"Eles mataram a minha filha!". O cigano era um homem sem universo, sem estrelas, sem a estrela que lhe iluminara a vida. Com uma razão para matar, sem uma solução para deixar viver. Estava ali como eu por causa duma estrela. O cigano chegou o indicador ao gatilho. Esperei uma eternidade pelo meu fim. Abri os olhos. O cigano tinha baixado o braço. Estava todo manchado de sangue e o seu rosto era como o céu negro salpicado de estrelas. Olhava através da janela, para fora, para o alto como se procurasse na infinita cúpula uma resposta para a sua perplexidade, um auxílio para a sua dor absurda.
"Sabes, disse-lhe eu seguindo o seu olhar, talvez haja sítios bem longe daqui, a galáxias de distância, onde não acontece a dor, onde não existe o sofrimento. Talvez haja outros mundos melhores do que o nosso. Viver a vida com os pés no chão é insuportável."
Ele ouvia-me sem escutar porque eu falava de coisas que estavam longe da sua dor presente. Sentou-se na minha frente e começou a chorar em silêncio. Calei-me. Olhava-o, apenas, com o mesmo deslumbramento e incompreensão com que contemplara a estrela mais brilhante da nossa galáxia. A noite parecia ter parado no seu curso, e um grande silêncio isolara o autocarro abandonado, do resto do universo. Só o choro, macio, persistente e dorido do cigano. Um choro infinito como a sua dor, como o universo.
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