Descobri a estrela mais brilhante da nossa galáxia, no dia em que o meu pai morreu. Eu estava num observatório, no trópico de Capricórnio, lá no outro lado do mundo. Era o observatório de Capricórnio, que fica perto da cidade de Campinas, no Brasil. Gosto de mudar, de tempos a tempos, de hemisfério e de observar a outra metade do universo. O céu ali parece ainda mais límpido e profundo. Uma grande quietude invade-nos a alma. Recebi a notícia ao fim da tarde. Senti um misto de revolta e de tristeza. Usei o grande telescópio do observatório toda a noite. Precisava de trabalhar, precisava de deixar a Terra. A noite estava claríssima. As estrelas pareciam estar ao alcance da minha mão, do outro lado da lente. Naquela nuvem de poeira havia uma estrela. No entanto, eu só descobri que era uma estrela no momento em que comecei a chorar. Os meus olhos pareciam um caleidoscópio e reparei que havia uma grande luz naquela nuvem de poeira pela qual já tinha passado tantas vezes. Era uma estrela magnífica, potente, que irradiava luz para toda a via láctea mas que nunca ninguém tinha visto. Quis dar-lhe o nome do meu pai, mas chamei-lhe Pistola. Tinha tanta luz que disparou para o caleidoscópio das minhas lágrimas como uma arma. Era uma enorme descoberta científica, mas tinha sido fruto de uma casualidade trágica. Eu estava à procura de uma estrela que fosse companheira da minha dor. Não revelei a minha descoberta porque falar dela era como expor uma ferida muito fresca e viva. Deixei passar o tempo. Guardei-a para mim.
O cigano continuava a chorar, com a mão e a pistola pousadas sobre o joelho. O silêncio. E que silêncio! O corpo da mulher gorda estava no chão, a boca aberta, a retina conservava o pânico dos últimos segundos. Lá mais à frente, o corpo do motorista inclinado sobre o volante, guardava o bilhete apertado entre os dedos.
O cigano virou a cabeça e olhou também o local onde se encontrava como se o visse pela primeira vez. "O que é que eu fui fazer? O que é eu fui fazer?!" Tinha a mão esquerda fechada com os dedos cerrados como num espasmo. Apontou-me de novo a arma. Há quem diga que antes de morrer revemos a nossa vida como num filme. Mas eu não via filme nenhum, apenas um homem que, como eu, procurava uma estrela. Eu tinha-a encontrado, ele tinha-a perdido, por isso ele ia matar-me. A humanidade ficaria privada durante mais uns anos do conhecimento da estrela mais potente da via láctea e quem sabe de formas de vida que se podem esconder atrás da poeira cósmica.
Ouvi um disparo e voei até ao trópico de Capricórnio, naquela noite em que o meu pai morrera. Tinha os meus olhos cheios de água procurava chegar ao telescópio sem o sujar. O caderno de apontamentos estava rascunhado e não conseguia escrever mais. Doía-me o peito. O meu olho esquerdo estava colado ao telescópio. Estava a ver poeira cósmica há horas. A via láctea está cheia de poeira. Não havia grande coisa ali. De repente, do outro lado do cano a estrela. Um raio atingira o meu olho. Era como uma cornucópia de cores. Algo de poderoso entrara em comunicação comigo.
Abri os olhos, o braço do cigano, como em câmara lenta, deixava cair a pistola da boca. O seu corpo desfazia-se como um saco sobre os assentos do autocarro, espargindo sangue. Fiquei imóvel muito tempo. Uma eternidade. No rosto do cigano rasgado pela bala distinguia, por entre o sangue, os olhos muito abertos que pareciam dirigir-me a última pergunta: "Porquê?".
Eu também não sabia a resposta. Mas o meu mundo era mais caridoso do que o dele. Eu tinha a minha estrela, o meu universo para examinar. Eu podia tirar os pés da Terra e procurar refúgio no alto.
Passaram talvez cinco minutos naquela contemplação, naquele diálogo mudo. Mas havia algo que eu precisava de dizer ao cigano antes que alguém chegasse. E então falei-lhe baixinho, junto ao ouvido ensanguentado. "A estrela que eu descobri, a minha estrela, é tua. Ofereço-ta. É a mais brilhante da via láctea. Dez milhões de vezes mais potente do que o Sol. É fantástico. Poderemos algum dia compreender este poder? Poderemos algum dia compreender-nos uns aos outros. Chamei-lhe estrela Pistola, porque ela disparou sobre mim. Agora disparou sobre ti. Guarda-a. Pertence-te."
Esta é a razão pela qual os homens continuam a ignorar que na via láctea existe uma estrela descomunal, uma mega-estrela, infinitamente mais poderosa do que o Sol. Mas as estrelas são aquilo que nos transcende, um oculto distante que nos é ininteligível. São repercussão candente, brilho e sonho. Mas, por detrás da luz esconde-se fogo, por detrás da ilusão, a matéria banal. E se o que nos guia, ilumina, dá alento e motivação cai a escassos passos da mentira, que a verdade seja o sonho por conquistar e a realidade uma mentira.
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