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ALEXANDRE HERCULANO
O Bispo Negro (1130)
 

VI

Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.

Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcáter real.

O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar.

O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.

- Dom cardeal - começou o príncipe -, que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar-vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.

No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.

- Não a trazer-vos riquezas - atalhou ele -, mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas...

- Calai-vos, dom cardeal - gritou Afonso Henriques - que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé? Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada.

E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furror. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.

 
 

O Bispo Negro