NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA:
A POESIA DE LUIS DE GÓNGORA

Rodrigo Petronio

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A despeito desses caminhos e descaminhos que a crítica ao cânone tomou, e, paradoxalmente, tendo em vista a urgência de se questionar alguns pontos cruciais do mesmo, creio que seja interessante evitar essas polaridades descritas acima. Para tanto, é muito elucidativo o trabalho da pesquisadora francesa Pascale Casanova, e me basearei em boa parte de suas idéias para ambientar a obra do poeta cordobês dentro de seu tempo e para descrever a sua subseqüente recepção. Partindo do princípio, colhido em Paul Valéry e Pierre Bordieu, de que a literatura está inserida dentro de uma engrenagem maior de trocas simbólicas, que obedece a regras, segue preceitos e, mais do que meramente veicular as obras, as conforma e as constitui, Pascale conseguiu tornar evidente um aspecto nuclear dessa economia sui generis e definiu-o em um conceito-chave de sua pesquisa: a coerção. Para ela, a literatura, não entendida em acepções específicas, mas tomada como uma república mundial das letras, é uma complexa teia de coerções e de poderes, da qual não estão ausentes nem os lados ideológicos, econômicos, políticos, sociais, culturais e estruturais que envolvem essas trocas, nem os seus aspectos menos visíveis, que seriam as relações de influência, apropriação, emulação, rivalidade, tradução e absorção de um autor pelo outro. Presidindo essas trocas conflituosas, teríamos a relação problemática com o mercado de livros e todas as formas de difusão e publicação das obras literárias, e seu constante litígio com as forças que mobilizam o capital simbólico no nosso mundo: os meios de comunicação. Assim, a autora vai tecendo toda a história da literatura a partir, não de premissas identitárias, como língua e nacionalidade, nem sob a ótica dos estilos ou dos movimentos, muito menos sob o critério expressivo do escritor genial, mas sim imiscuída nessa rede de coações e de limites que são o horizonte último dentro do qual as próprias criações são possíveis. O estudo da importância que os suportes materiais de prensagem desempenham na repercussão, alcance e validação das obras, o poder das editoras e da imprensa, a questão das culturas e do transculturalismo, o bilingüismo, as línguas vernáculas e as veiculares, as literaturas periféricas e as centrais, os modelos e os epígonos, o hábito e as formas de leitura, as bibliotecas e as livrarias, os mestres e os discípulos, e, por fim, o papel capital da tradução, onde os autores de literaturas dominantes são difundidos em países de literatura subsidiária, dando ensejo à imitação e à emulação por parte dos escritores que os consomem, entre tantos e tantos pontos interessantes. Em tudo isso, Pascale procura mostrar como o cânone não é uma entidade monolítica, como seus defensores e detratores imaginam que seja, mas sim um movimento policêntrico dos mais complexos, onde valores estão em jogo e, ao mesmo tempo, sendo enformados por tensões totalmente casuais e por causas das mais triviais, e vai narrando a longa e difícil saga dos escritores com essa instituição, que funciona quase como uma co-autora dessa mis en scène de coerções chamada Literatura. São esses elementos que põem em cena uma dramatização de conceitos bem mais complexos, que são os agentes invisíveis dessa peça. E como a autora nos faz questão de mostrar, explicar, historiar e discriminar, é por meio da interação dessa série de interfaces que nascem conceitos como universal, nacional, local, regional e autóctone, no campo da discussão política, e de tradução, imitação, exportação, importação, autoria, propriedade e plágio, no que diz respeito à confecção das obras e à esfera poética, entre outros. No mesmo sentido, lança as balizes para a compreendermos as diferenças radicais entre global, internacional e universal, e, de quebra, entre os conceitos de nacional, local, particular e regional. E mostra-nos que a idéia de literatura, modernamente entendida, e, conseqüentemente, de cânone, como expus até aqui, só se dá com o advento e a conquista da dignidade das línguas vulgares, processo que começa com Dante, tendo suas pedras-de-toque na Commedia e no De Vulgari Eloquentia . Porém, essa dignidade só será efetiva com a obra de Joachim du Bellay, Ilustração e Defesa da Língua Francesa , de 1549, momento decisivo que porá em cheque a primazia indiscutível do latim como língua literária e de conhecimento, e que abrirá as fronteiras para a grande floração de obras vernáculas, sendo este um fenômeno que pode muito bem ser tido como um dos alicerces da modernidade, entendida tanto no campo do pensamento quanto no campo da política e das artes (1).

Enfim, tendo em vista esse estudo notável de Pascale Casanova, podemos retornar à nossa questão. Todas estas considerações extemporâneas tiveram o intuito de servir de breve apanhado da questão canônica. Não por acaso, já que ela é um ponto central no que se refere ao estudo da obra de Luis de Góngora, que passou a ser incluído na ortodoxia do cânone apenas no final do século XIX. Esse movimento só foi consumado com a Geração de 1927, e levado a termo pelo trabalho monumental de Dámaso Alonso. Fato que tampouco é ocasional, a sua valorização coincide com a emergência das vanguardas e dos modernismos e, com eles, de um aparato teórico e crítico apto a reavaliar o que no poeta cordobês havia sido negligenciado e iluminar o que em sua obra tinha se mantido tacitamente ignorado ou mal-compreendido. Em vetor inverso, depois de reabsorvido, será o cordobês que fornecerá padrões agudos de imagens e de metáforas para a poesia que essa geração estava ansiosa por fazer. Foi preciso um novo paradigma de leitura e novos valores literários para que um grande poeta fosse reconsiderado e aderisse ao paradigma da arte ocidental, tal como ele foi produzido e mantido pela história dos estilos e pela historiografia descritiva dos grandes períodos artísticos e históricos. Esse acontecimento nos faz atentar para a volatilidade dos valores e dos juízos críticos, bem como nos leva a refletir sobre a hipotética inflexibilidade do cânone, tal como tantos críticos o entendem. No seio dessas interações e no centro da formação dessa república mundial das letras é que este trabalho pretende analisar a situação conflituosa da obra de Góngora, tanto em seu tempo, dadas as farpas e verdadeiras brigas travadas em torno de suas obras mais difíceis, quanto na sua recepção pela posteridade, que tratou de manter os conceitos e os preconceitos produzidos anteriormente, perpetuá-los e repeti-los de maneira acrítica ao longo de séculos, querendo com isso apenas e tão-somente suplantar e enterrar de vez todos os fantasmas do Antigo Regime e das relações patrimonialistas e nobiliárquicas que ele representava, ou seja, vitimizá-la sob um pretexto exclusivamente político, ou, quando poético, sempre acidental, com base no gosto, não no juízo. Cioso de um pouco mais de empirismo conceitual, e mais afeito às poéticas e práticas dos preceptistas e artistas do que à teoria dos teóricos, preferi cavar uma saída para fugir dessas superestruturas a qualquer custo.

Jean-Paul Sartre, logo na abertura de O Ser e o Nada , ressalta o passo decisivo nos estudos filosóficos que foi a concepção do mundo como um conjunto de fenômenos. As implicações que essa visão acarreta na estruturação de nossa consciência e no próprio processo de conhecimento, espécie de revolução copernicana, podem fazê-la regredir até Descartes. Mas creio que seria melhor pensá-la como derivativa do fenomenismo, modernamente conceituado por Kant, e depois consumado por Husserl com a famosa redução fenomenológica, a partir da qual nos seria vedada a compreensão cognitiva do nomenos e da coisa em si a não ser como integrantes de um epifenômeno aparente. Por outro lado, a investigação do ser está sempre candente e subentendida nessa redução e, pode-se dizer, é o seu dado nuclear e fundador. O ser é. O ser é em si. O ser é aquilo que é. Eis as características básicas desse desiderato ontológico de difícil abordagem. É justamente o caráter circular incontornável desses enunciados apofânticos a causa do silêncio secular da filosofia sobre esse ponto crucial de todo o conhecimento. Para falar com Husserl, na Sexta Investigação Lógica , o ser não é aderente nem inerente ao fenômeno: ele é a condição previa para que o fenômeno exista. Será esse o leque conceitual que as filosofias existenciais ulteriores irão abrir a partir do projeto da analítica do Dasein de Martin Heidegger, e será sobre a obra de Husserl que a filosofia moderna começará a deslocar o valor dos conceitos e os seus valores de verdade para a condição de subsidiários às regras imanentes da enunciação. O desvelamento do ser-aí, emerso de um horizonte transcendental descortinado pela Presença, estará sempre em razão proporcional ao grau de abertura (Offenheit ) do ente dentro dessa capacidade desocultante dos fenômenos. Não é à toa que Heidegger vai buscar no sentido eleático da palavra alethéia , durante tantos séculos lida como sinônimo de verdade, um sentido primitivo originário, segundo o qual ela participa de um mesmo campo de conceitos de logos, e pode ser também traduzida como: aquilo que aparece no discurso. Da mesma maneira, a ruptura com a clássica visão entitativa do ser e a sobreposição da categoria tempo à categoria substância, que deteve primazia no decálogo aristotélico das categorias ao longo de toda a história da filosofia, bem como as investigações de Henri Bergson no tocante à estrutura da nossa percepção temporal, que é por ele substancializada e concretizada como produto da duração, convidam-nos a uma reflexão interessante sobre as questões mesmas que ensejam o discurso historiográfico e lhe fornecem balize: a temporalidade e a linguagem. No rastro desse núcleo de reflexões vem se desenvolvendo boa parte da filosofia e da crítica contemporâneas, em torno de nomes como Umberto Eco, Tzvetan Todorov, Gilles Deleuze, Maurice Blanchot, Roland Barthes, Emmanuel Lévinas, Jacques Derrida, Alain Badiou, entre outros, com tônicas e diretrizes diversas, mas todas mantendo algum débito, seja crítico ou reivindicatório, para com a herança fenomenológica, em primeiro lugar e em maior grau, e existencial, em segundo e em menor grau.

Não quero me estender aqui em digressões sobre as implicações ontológicas e a cisão metafísica que permeiam essa discussão. O que podemos conjeturar é a possibilidade de tomar essa redução da fenomenologia e o seu imperativo de retorno radical às coisas nelas mesmas como máquina de guerra, para usar uma expressão cara a Deleuze, contra todas as abordagens sistêmicas e contra as superestruturas. Porque se o nomenos ainda é o horizonte inexcedível e a exterioridade da qual se ocupa a historiografia, venha ele enunciado sob a rubrica da subjetividade, da nacionalidade, da sociedade, da economia e afins, talvez inseri-lo nessa chave lógica e metodológica de Husserl possa ser um primeiro passo para evitar alguns caminhos que em breve serão becos-sem-saída. Aliás, para os traços também biográficos das feições de dom Luis de Góngora y Argote que este trabalho pretende pintar, a analítica complexa da consciência que encontramos na obra de Husserl pode nos levar a uma compreensão radicalmente diferente do que se entende há tempos por conceitos como subjetividade, expressão e autoria, por exemplo. Ao criticar tanto o naturalismo quanto o psicologismo, o mestre de Friburg assinou o atestado de óbito dessas duas tendências evidenciando seus paradoxos. Se a primeira é insuficiente porque postula a união entre sujeito e objeto com base em seu apagamento formal, e em benefício de uma região transcendental chamada Natureza no qual eles se plasmariam, crença básica de boa parte da arte e da filosofia românticas, todas as suas aferições carecerão de valor apodítico, ou seja, de universalidade, já que todas estarão pautadas por métodos científicos (limitantes) de investigação natural e prerrogativas físicas (limitadas) de especulação filosófica, ambos, métodos e investigação, apreendidos dentro de uma estrutura empírica frágil. Não é possível recortar de um horizonte estreito como este a produtividade complexa dos atos de conhecimento. Por seu turno, o psicologismo, ao arbitrar sobre bases biológicas e ao recorrer às idéias inatas, tenta assentar sobre elas a razão eidética do sujeito, no que incorre no equívoco de transformar o noema (objeto conhecido) em uma mera exterioridade da consciência no processo noético, cabendo a ela simplesmente reconhecer o que já tem em si pressuposto. Contra essas duas visões, pensar o sujeito como um dado vazio que se constitui no momento mesmo em que a atividade noética se instaura por meio da intencionalidade, a famosa intentio que já aparece em Santo Agostinho, embora com valor diverso, conceber que o pensamento é sempre e irremediavelmente pensamento de alguma coisa, é algo que nos abre para uma revisão drástica dos limites mesmos deste sujeito e de sua composição primária: não mais o autor que escreve o poema a partir de sua subjetividade, mas uma conjunção cambiante de forças e de volições que permitem que o poema se gere a si mesmo por meio do autor. Sob esse ângulo, podemos encarar todas as dimensões de leitura do poema como agenciamentos convergentes e coativos decisivos na confecção de seu sentido. Dentre essas dimensões entram as dimensões de conteúdo histórico, social, factual, teológico, formal, entre outras, não mais como autoridades, mas como revelações de sentido.

Se toda visão positiva aspira à exterioridade dos modelos analisados, querendo referi-los e referendá-los a partir de uma adequação essencial que hipoteticamente os vinculasse, romper com esse cordão umbilical pode nos conduzir a duas conseqüências possíveis. Em primeiro lugar, passaremos a ver a arte como prática pura de artifícios antes de remetê-la à dimensão transcendental dentro da qual ela se movimenta, seja ela qual for. Dentro de um regime clássico de causalidades, a esgotaremos enquanto causa eficiente e final, causa efficiens e finalis , antes de nos remontarmos às suas causas materiais e formais. Isso pode nos preservar de alguns inconvenientes, como o de produzir interpretações que ampliem o significado das partes de um todo discursivo, no caso, poético, lendo-as como índices de uma presença exógena e gerando assim uma superinterpretação. Porém, não há aqui sequer o mínimo vestígio de estrutura ou de pensamento estruturalista. Não se prega aqui nenhuma autonomia da linguagem, entendida positivamente, ou imanência absoluta do discurso e de suas regras, mas sim a precedência de seu caráter ficto e manifesto, tomado como epifenômeno material de uma cadeia de sentido, da qual a invenção, ou seja, o motivo ou o objeto por ventura representado, é a matéria hilética ( hylé ), para falar com os fenomenólogos, a ser transcendida e incorporada dentro da prática imitativa. Em segundo lugar, essa visão consiste na crítica das zonas de neutralidade interpretativa. Não me refiro aqui àquela saudável neutralidade à qual sempre aspirou Roland Barthes, querendo devolver à literatura e à linguagem a leveza que delas se exilou por causa do espírito de gravidade que o peso dos mitos, das mistificações e das ideologias lhes haviam impingido. Mas sim à neutralidade tomada como possibilidade mesma de uma exterioridade discursiva: o letrado que olha o funcionamento das letras que se movem à sua revelia. Desse modo, o processo de erosão de conceitos criados para descrever um objeto do passado não pode deixar de se voltar contra si mesmo, caso contrário invalidaria seus postulados. Em outras palavras, é impossível demolir uma série de elementos positivos a partir de uma negatividade ativa sem que essa negatividade se volte e se questione a si mesma como portadora de sentido, já que se alimenta de uma negatividade infinita, símil do espírito demoníaco que conforma a essência mesma do livre-pensamento. Nesse caso, torna-se difícil empreender uma crítica da positivação no interior de uma crítica do anacronismo histórico que ela gera, já que este se tornaria, a partir de então, uma precondição para a existência daquela e não o contrário, o que é mais razoável. Em outras palavras: toda tentativa de recuperar a história de maneira arqueológica e recompor suas peças a partir dos códigos e valores de sua época de origem, anulando o anacronismo da recepção que lhe faculta livres interpretações, pode ser visto como uma busca de neutralidade, lida e concebida, em se tratando de um trabalho universitário, por exemplo, como uma positividade institucional impessoal, que se propõe isenta da superfluidade de leituras correntes em outros âmbitos da sociedade. Isso não lhe confere mais autenticidade, mas apenas opera no sentido de marcar o discurso com um carimbo singular de otimismo. A demolição das nesgas de positivismo presente nos discursos sobre arte da tradição intelectual brasileira tem de ter como fim a demolição da razão institucional que legitima socialmente esse mesmo discurso demolidor, ainda que não se possam negar os méritos de estar pleno de dispositivos teóricos e práticos capazes de anular a presença indesejável de distorções históricas oriundas de leituras vulgares, cristalizadas ou tendenciosas. Mas essa está longe de ser uma saída, se é possível falar nesses termos, para uma questão mais grave e estrutural. Nesse sentido, a título de ilustração, João Adolfo Hansen já sinalizou que o barroco, como positividade histórica, é um anacronismo criado pela recepção crítica a partir do século XIX, tendo os Conceitos Fundamentais de História da Arte de Henrich Wölfflin e a Antropologia de Kant, de 1798, como diretrizes, mas que a neutralidade advinda do desmonte deste sistema não deixa de conter indícios positivos institucionais, no caso, de uma instituição devastada, como a universidade brasileira, e ser, também ela, uma ruína em meio a ruínas (2).

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(1) CASANOVA, Pascale. República Mundial das Letras . São Paulo, Estação Liberdade, 2002.

(2) HANSEN, João Adolfo. "Barroco, Neobarroco e Outras Ruínas". Revista Teresa, Nº 2, agosto/2002.

 
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