NATURAL?! O QUE É ISSO? ABERTO O COLÓQUIO De 2.11.2003 a 21.05 2004 INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL "NATURALISMO E CONHECIMENTO DA HERPETOLOGIA INSULAR" Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa) |
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NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA: |
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Rodrigo Petronio |
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Um bom começo para a crítica dessa história dos estilos seria partir de uma revisão epistemológica, ou seja, tecer uma breve história da história da arte. O crítico inglês Paul Johnson resolveu aceitar o desafio, e recentemente, não sem polêmica, retificou a hegemonia do cânone modernista e reviu muitos conceitos engessados da história da arte, o que é uma atitude louvável que já tardava. Essa desmontagem não só é curiosa como pode nos mostrar com mais nitidez o quanto esse tipo de abordagem artística é recente, ou seja, a insignificância histórica desse gênero de discurso, por mais que, na prática, ele goze de tanto prestígio. Em busca da primeira história de arte, segundo Johnson, poderíamos retroagir com segurança até a História da Arte Antiga , de 1764, escrita por Joachin Winckelmann, amigo de Goethe. Nela dir-se-ia que se delineia o protótipo inaugural desse gênero de abordagem de cunho etapista e histórico. Coincidentemente ou não, é nessa mesma época que começa a viger a idéia de que a arte é um objeto autônomo, de fruição desinteressada, como lemos na Crítica do Juízo de Kant. Também é dessa época a criação do conceito de estética, como algo desvinculado das práticas sociais às quais a arte sempre se manteve atrelada, tal como o lemos nas obras de Alexander Baumgarten e na investigação de Edmund Burke sobre a origem do belo e do sublime. Pela primeira vez também, e isso podemos inferir de textos esparsos de Denis Diderot sobre teatro, aparece uma esfera que até então não existia na história da arte: o público. Não aquele público entendido como platéia, que existia e sempre existiu, ou seja, como um conjunto de pessoas que prestigiam um espetáculo, lêem um poema e apreciam um concerto, mas sim como um contingente da população que compra, mantém, patrocina, organiza, delibera e, finalmente, paga e frui da produção artística livremente concebida e oferecida a seu beneplácito. Trata-se do nascimento do espaço público burguês, analisado por Michel Foucault em As Palavras e as Coisas , regido por normas liberais de gosto e de crítica, de aceitação e de debate, de divulgação e de recepção pela imprensa (outra instituição muitíssimo recente), encabeçadas por cidadãos equânimes perante o Estado e as leis. Enfim, tem início uma sociedade regida por uma série de pressupostos econômicos e estruturais praticamente inexistentes nas sociedades aristocráticas, onde a arte estava a serviço da ilustração e manutenção da nobreza e das prescrições de corte, além, é claro, de ser ótimo mecanismo de propaganda religiosa e de corroboração teológica. Sob todos os pontos de vista, tanto formal quanto social, tanto legal quanto prático, pela primeira vez a arte passa a incorporar um conceito que será a chave de toda a modernidade: autonomia. Autonomia da linguagem que passa a se mover à revelia do tema, do valor que passa a valer à revelia da função e da forma, que passa a ser pensada e concebida independente de prescrições de gênero, de preceptivas e de doutrinas. Mais: geralmente em oposição a estes valores estatuídos. Por fim, do ponto de vista social, temos o artista que começa a criar não com finalidade encomiástica, mas sim visando o consumo de sua obra, em mundo agora regulado pelo dinheiro, a concorrência e a livre iniciativa. A arte moderna talvez seja um dos períodos mais férteis e complexos da história da arte mundial, e boa parte dela devemos a essa mudança conceitual, quase antropológica, ocorrida em nossa concepção de arte, graças a esses autores. Mas o mesmo discurso que deu vazão às práticas ulteriores criou problemas graves no que diz respeito a estas mesmas práticas, quando começou a ser transferido e aplicado mecanicamente às obras do passado. Esse tipo de historiografia é inexistente nos antigos, e não há sequer um único lastro dela ao longo dos séculos e séculos que compõe essa abstração inútil chamada Idade Média. Será apenas com esses procedimentos retroativos, de aplicação de paradigmas modernos às obras do passado, que nascerá a história dos estilos, no século XIX, junto com essa ambientação intelectual. Seria temeroso recuar mais, e tentar buscar o início dessa genealogia nas Vidas de Giorgio Vasari, por exemplo, ou em obras semelhantes, já que se trata de preceptiva do gênero biográfico, e não de história da arte no sentido em que se subentende uma evolução de estilos homogêneos e historicamente deduzidos. Porém, esse tipo de história só será universalizado e virará método pelas mãos de Wölfflin, e este por sua vez a legará a uma longa tradição de scholars que conferirão autoridade a essa maneira de dispor a matéria artística: Riegl, Panofsky, Gombrich, Argan, Warburg, Greenberg, entre tantos e tantos outros (1). Para estes, há os correlatos literários: Marcelino Menéndez Pelayo, Benedetto Croce, Otto Maria Carpeaux, Arnold Hauser, e uma longa lista de nomes e um número quase infinito de manuais que seguem esse modelo etapista de abordagem. Porém, mais do que fazer o sentido da palavra barroco regredir até à aerruca , a pérola disforme que encontramos na História Natural do velho Plínio ou referendarmos o desmonte da superestrutura mental erigida por essa tradição historiográfica, e mantida ao longo dos últimos dois séculos, mais do que nos contentarmos com aparentes soluções, se é que há esse termo no ofício da especulação, sejam elas de ordem retórica e poética ou filosófica, o fato é que ainda assim estamos girando em torno do âmbito metodológico. Nele, possivelmente, na pior das hipóteses, daqui meio século a idéia de uma arte barroca estará definitiva (e felizmente) soterrada e morta do ponto de vista da vitalidade intelectual. Restará ainda intacta essa questão: como pensar o passado em sua integridade sem prendê-lo em uma cadeia de descontinuidades históricas submetidas a um olhar que se quer mais neutro, o que serviria apenas para afirmar a sua condição de ruína e reafirmar a ruína institucional que o lê ilhada em um mundo de superfluidade de comunicação e de valores descartáveis, nem dissolvê-lo em conceitos amorfos e impressionistas do status quo intelectual que vige no presente dentro do qual ele é lido e recuperado? Mais uma vez, temos a compreensão vedada devido à importância excessiva dada aos métodos, sendo que a essência da questão é de ordem transcendental e continua adormecida. De tudo a história vem se ocupando e tudo pode integrar a sua colcha de retalhos, mas poucos meditam sobre o que é a água desse rio que nos conduz em seu bojo, ao passado, ao presente e ao futuro. Esse trabalho se preocupa bastante com essa dimensão, que acredito não possa ser facilmente alijada do debate, ainda que suas dificuldades teóricas talvez exorbitem a minha capacidade de investigação. Mas é um fato, e assim deve ser encarado, já que a literatura, antes de ser um algo do domínio da investigação teórica, é, sobretudo, uma existência pré-categórica, não redutível a conceituações de quaisquer ordens, embora vivida sob a maior gama possível de possibilidades não-enunciadas que, por isso mesmo, guardam em si uma potencialidade de sentidos muito maior do que todas as leituras possíveis feitas ou passíveis de o serem. |
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(1) JOHNSON, Paul. Art: A New History . London, Weidenfeld & Nicolson, 2003. | ||
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