NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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NATUREZA E ARTIFÍCIO NA HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA:
A POESIA DE LUIS DE GÓNGORA

Rodrigo Petronio

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Talvez possamos dizer que a revisão do cânone operada desde o final do século XIX, e que se intensificou no decorrer do século XX, foi um dos acontecimentos mais interessantes da história das idéias nos últimos séculos. Houve abalo profundo dos próprios paradigmas artísticos que davam sustentação ao complexo valorativo das obras e autores. A dimensão teórica reinvestia de sentido o desbravamento prático: a exploração de territórios excêntricos aos critérios homogêneos que há séculos regulavam a produção artística teve seu contraponto na criação de novas chaves de leitura para as obras e concepções igualmente excêntricas então nascentes. Há algo além de simples coincidência entre a valorização da arte dita primitiva, advinda das descobertas arqueológicas levadas a termo durante o século XIX e das Exposições Internacionais de Paris, sobretudo a de 1848, bem como o crescente interesse que as aberrações artísticas e a técnica da anamorfose despertaram em intelectuais do nível de Jurgis Baltrusaitis, e a eclosão de uma figuração que retoma a bidimensionalidade e rompe com a perspectiva, vigente durante mais de cinco séculos, e que vemos tão fartamente nos melhores artistas modernos, como Paul Gaugin, Paul Cézanne e Van Gogh, entre dezenas de outros, que seria impossível arrolar aqui. Flagramos um duplo movimento: o neocolonialismo europeu que vai sendo implementado ao longo do novecentos em âmbito político têm sua contrapartida poética em um paulatino processo de contracolonização do imaginário ocidental, que passa a incorporar em suas práticas e discursos elementos alheios à perspectiva eurocêntrica mediante a qual as obras sempre foram julgadas e reverenciadas. A discussão é muitíssimo delicada e controversa, já que nela esbarramos tanto em nítidos obstáculos políticos e ideológicos, notadamente tendo em vista que o cânone é na maioria das vezes uma construção feita a partir da visão de classes, línguas e países hegemônicos, quanto em aspectos mais pontuais relativos à forma e às maneiras de transmissão de determinadas artes, nas quais vêm implicados seus valores, chegando até às raias de revisões antropológicas, no tocante a aventuras intelectuais que fogem completamente à expectativa da recepção e aos enquadramentos prévios de seus paradigmas. Essa crítica ao cânone se deu em diretrizes diversas, e seria necessário um livro para mapeá-las. O que me interessa aqui especificamente, no entanto, é entender em que sentido essa ortodoxia obstou a incorporação de uma poesia como a de Góngora, em primeiro lugar, e, conseqüentemente, como o próprio cânone se estrutura e quais as reivindicações daqueles que o criticam. No entanto, a meu ver a crítica ao cânone perdeu aos poucos sua força iconoclasta saudável e o sopro vital que a manteve durante os primeiros decênios do século XX, em âmbito criativo, dando ensejo a um dos períodos que provavelmente ainda vai ser tido como um dos mais ricos da história da arte, e acabou se convertendo, nos dias de hoje e em âmbito teórico, em uma série de posicionamentos equivocados. Esses posicionamentos acabam gerando o seu antídoto e os seus opostos simétricos: aqueles que não concebem nenhuma reflexão fora da autoridade canônica. Comecemos pelos mais evidentes.

Tomando como premissa que todo cânone é necessariamente e em primeiro lugar uma construção ideológica, vige atualmente uma modalidade de leitura que o concebe como uma instância a serviço dos valores dos seus grupos mantenedores. Assim, a nossa leitura de Shakespeare estaria de antemão contaminada por sua circunscrição crítica, ou seja, pelos aspectos de Shakespeare que são sempre valorizados por aquela parcela letrada da população que os estipula e que o canoniza. No âmbito da leitura do poeta inglês, portanto, estaríamos, em primeiro lugar, sendo vítimas de uma relação de poder, que filtra a possibilidade infinita de suas leituras e a reduz, à custa de critérios interessados, às leituras dominantes da mesma elite que o edita, analisa e divulga. Se não há leitura mais ou menos certa, mas apenas apropriação mais ou menos hegemônica, cabe a cada grupo e a cada indivíduo intelectualmente interessado abordar a obra sob o prisma que melhor lhe convenha, fazendo falar sua situação histórica concreta e seus interesses políticos por meio da obra, negando qualquer componente essencial e irredutível a esta. Nasce então uma fresta, onde os estudos culturais vão entrar com toda a força. E com eles nasce a gama de estudos que se espalham pelas universidades do mundo afora, que tem por intuito negar a autonomia do texto, longa e suada conquista da modernidade, para nele projetar os conflitos prementes em suas zonas de recepção, sejam eles da ordem sexual, com respaldo principalmente nas causas dos homossexuais, racial, onde entram em cena as minorias étnicas, econômica, de onde emerge o lumpemproletariat , outrora simplesmente proletariado, figurado naquelas tristes caricaturas artísticas stalinistas, social, na qual se legitimam as classes desprivilegiadas, e, finalmente, estética, onde se confere valor às obras até então desconsideradas ou subestimadas pela crítica ortodoxa. Não há que se questionar que a economia simbólica, como já demonstrou Pierre Bordieu, sofra dos mesmos mecanismos de cerceamento e das mesmas relações de poder que regulam a economia material. Nem que há interesses de todos tipos enovelados na confecção e na recepção dos objetos de cultura, podendo-se, no limite, dizer que os signos produzem o que chamamos de real e instauram os limites da própria realidade e da própria infro-estrutura econômica, para lembrar Jean Baudrillard. Esses são pontos pacíficos. O problema é que essas crenças concebem o cânone como uma estrutura piramidal: grupos e elites letradas que produzem sua versão interessada dos autores da literatura para o consumo passivo e amorfo das massas de leitores que são seu mero receptáculo. Seus proponentes desconsideram o fato óbvio de que esse movimento é de mão dupla. Aliás: tem muitas mãos. Para que um clássico venha a ser tido como clássico, foi preciso uma interação ativa por parte de uma comunidade de leitores cuja gradação de nível intelectual, escolaridade, ofícios, classe, poder econômico, origem, nacionalidade, raça e toda uma longa lista, são infinitas e não decisivas no resultado eletivo último. Também as relações que mantêm com a obra tiveram que ser das mais diversas, polissêmicas e díspares possível. Essa relação, por sua vez, não é apenas laudatória, mas é também e, sobretudo, polêmica e agonística. Não se mantém apenas no âmbito da fruição, mas também da reprovação, da censura, da crítica e da maledicência. A pulverização dos centros de poder, a introjeção de uma negatividade no bojo da recepção e a quebra dessa estrutura piramidal pela qual os teóricos ainda descrevem a construção do cânone, visto como uma mera concretização ideológica, confere-lhe uma complexidade inaudita, e impede que prossigamos alimentando essa visão simplista. Por outro lado, e como conseqüência dessa operação, torna-se praticamente impossível reduzir as obras e seus valores aos seus usos políticos, na medida em que isso nos distancia do núcleo gerador de sentido destas mesmas obras, ou seja, daquele componente que faz com que um livro seja lido das mais variadas maneiras e sob os pontos de vista mais contrastivos sem que ele deixe de ser ele mesmo. É essa instância projetiva, poderíamos dizer, a responsável pelo seu feixe de possibilidades atuais e virtuais, e é essa razão transcendental que faz as obras diferirem qualitativamente, pois é ela que confere a abertura necessária para a maior gama possível de leituras acidentais. Independente de saber se o dom Quixote é um idealista que sonha com a reposição de uma idade dourada, um defensor das classes oprimidas, a síntese do atraso político espanhol, a elevação dos loucos e excluídos ao estatuto de heróis, um mero idiota que tem por fim apenas gerar o riso ou, na pior e mais alucinada das hipóteses, o protótipo de uma sublimação homossexual no ideal cavalheiresco da fraternidade amorosa entre os homens, o Quixote é a base da qual dimanam todas essas possibilidades e um eixo de virtualidades, capaz de ser atualizado em qualquer época e sob quaisquer circunstâncias. Quanto mais nos ativermos a essas leituras fechadas, tanto mais nos afastaremos do coração que as produz, como a raiz que, de tão distante, não se lembra mais do caule e do troco. E aqui estamos às voltas de novo com o debate sem fim sobre o que seria a especificidade que faz a literatura ser literatura. Questão que merece uma análise à parte e no lugar oportuno.

Esse tipo de crítica, embora seja em sua maioria um subproduto marxista de quinta categoria, e goze de grande prestígio em diversas partes do mundo sob o influxo da moda dos estudos culturais, que ganharam força com as questões de interculturalidade emergentes da globalização, felizmente já está sendo superada por muitos intelectuais de prestígio. No Brasil, Leyla Perrone-Moisés, que outrora partilhou de um ideário afim a essas propostas e creu na própria ruína iminente da crítica literária, acabou revendo seus princípios de base, e nos últimos tempos vem rechaçando-a duramente, com argumentos consistentes e meditados. A contraproposta dessas tendências pode ser entrevista na obra de Harold Bloom. E temos nele um osso duro de roer, para usar o jargão popular. Ninguém questiona o valor das obras que Bloom elege em seu panteão. Chega a ser desnecessário e até ocioso demonstrar as virtudes literárias da prosa de um Montaigne ou da poesia de um Dante e um Milton. E é justamente nesse ponto que repousa a sua fragilidade. A questão é que Bloom atualiza esses autores sem polêmica, ou seja, na mais cândida e inofensiva restrospecção de autoridades que, não tendo como serem refutadas, não há o que se refutar. Nesse sentido, o trabalho do professor norte-americano é da maior importância, porque fixa um eixo gravitacional da grande literatura ocidental que, feitas alterações de importância mínima de tempos em tempos, sempre será uma das melhores súmulas dos autores que transcendem o caráter circunstancial das épocas, em outras palavras, que sobrepairam o Zeitgeist . Mas pode ser, com o perdão da franqueza, emburrecedor, na medida em que o faz sem a mínima dose de risco crítico e fora da dimensão erística que constitui toda a literatura. Nietzsche detratou Platão e chamou Dante de hiena que verseja entre túmulos. Voltaire desprezou Shakespeare, chamando-o de bárbaro. Baltasar Gracián disse que o Quixote , ao repropor a loucura dos livros de cavalaria, incorria em dupla loucura, e, por isso, deveria ser duplamente evitado. Aliás, para ficar nesse autor, Lope de Vega chegou a definir Cervantes como o pior poeta da Espanha. Schopenhauer referia-se a Hegel com epítetos como falsário e patife, Silvio Romero criticou Machado de Assis e Henry James definiu a obra de Marcel Proust como o devaneio de um perverso polimorfo. A meu ver isso tem um sentido translúcido: os autores que entraram para o cânone não mantinham nenhum respeito para com ele. Mais: mal sabiam o que vinha a ser a gloriosa lista de nomes arrolada em O Cânone Ocidental . Estavam sim é em uma relação dialógica, agonística e conflituosa com seus contemporâneos e com a tradição. Em tudo isso, além da polêmica, que é apenas o tempero mais picante e a exterioridade mais superficial das críticas, dignas de fazer enrubescer apenas a letrados filisteus, há um dado que creio essencial à compreensão de qualquer obra do espírito: a importância de um autor não se manifesta tanto na leveza daquilo que ele criou, mas na gravidade daquilo que criticou. Boa parte de uma obra, dir-se-ia que praticamente metade do que ela é, está em suas recusas, e não há nenhuma dissociação entre a criação e a crítica, na medida em que ambas são pontos convergentes de dois movimentos distintos da inteligência, mas que se completam no momento de concreção da obra. Nossas escolhas estão todas implicadas no nosso repertório, e este, por sua vez, mais do que a soma indistinta do que retivemos, é o repasto incólume do que não recusamos. Toda obra é uma crítica de seu tempo e, pode-se dizer, até dos próprios valores literários que nele vigem, e todo autor, o seu crítico, ainda que não tenha emitido uma única palavra ou escrito uma única linha formalmente endereçada ao assunto. Em contraposição à lição preciosa destes clássicos e destes mestres, o mestre Harold Bloom erige uma espécie de panegírico grandiloqüente da tradição, um castelo sustentado sobre os alicerces da qualidade absoluta, e lança os critérios para a verificação e aprovação de um consumo das letras com a taxa mínima de contra-indicações. Sua obra, assim, tem uma função reguladora, e inserida em uma sociedade de consumo desbragado, oferece à massa dos leitores descontentes com a vida o prêmio do reconforto adquirido em quanto criou a nata dos gênios da humanidade, sem qualquer intervenção disfórica inoportuna nesse cauteloso processo. Os gênios se recusam a ser gênios e os grandes autores deixam de ser os grandes autores que de fato são para assumir a função profilática e sedativa de antídotos contra a superficialidade do mundo, transformam-se em pequenas medalhas escolhidas sob a mais respeitada lógica empresarial, que prima pelo alto nível dos produtos que discrimina para seus clientes. Na ausência de igrejas exclusivas para intelectuais e de uma religião a eles adaptada que não seja o marxismo, temos a Meca do saber humano erigida por um professor. Harold Bloom é uma fábrica de profundidade espiritual e de sabedoria com padrão Yale de qualidade.

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