NATURAL?! O QUE É ISSO? ABERTO O COLÓQUIO De 2.11.2003 a 21.05 2004 INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL "NATURALISMO E CONHECIMENTO DA HERPETOLOGIA INSULAR" Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa) |
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O NATURAL E O CULTURAL |
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Maria Joana Christina Krom |
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Epistemologia do cultural e do natural nos saberes - fazeres, trabalhos e nos dias tradicionais |
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Assim sendo, justifica-se que se passem a situar estes dois modos paralelos de aquisição de conhecimento, dentro de uma perspectiva epistemológica. Efectivamente, na sua generalidade, a prática dos saberes e dos fazeres tradicionais está ligada a concepções do mundo e a medidas de espaço e de tempo que se mantêm ao arrepio das formas de viver, das formas de fazer e das formas de saber, que emergiram com a Modernidade e que se tornaram dominantes nas sociedades industrializadas actuais. Além disso, usando a terminologia de Michel Foucault, a arqueologia - genealogia desta configuração permite descobrir como as cisuras entre estes dois mundos nem sempre resultaram de grandes transformações introduzidas e acumuladas. É evidente que não bastam mudanças para introduzir fissuras, sendo necessário que ocorram diferenças ou assimetrias. Assimetrias na criação, no acesso e na permeabilidade às inovações para o que contribuem diferentes condições geográficas, económicas, sócio-culturais e religiosas. As inovações, sejam elas conceptuais ou tecnológicas, sempre se deparam com diferentes resistências, havendo a destacar a oposição oferecida por duas concepções fundadoras: o mito da harmonia cósmica impondo o ritmo natural e a hierarquia cultural marcando o rito religioso. Na verdade, essas resistências estiveram especialmente ligadas à lógica do ritmo natural e à lógica do rito religioso. A experiência da sequência do dia e da noite obrigava a um tempo disciplinado pelo calendário solar. A vivência da continuidade religiosa obrigava a um tempo disciplinado pelo calendário litúrgico. Ambas as situações estavam disseminadas em ambientes marcados por relações de forte proximidade, do parentesco à convivialidade, em que paralelamente as regulações em uso estavam de tal modo inseridas na mentalidade vigente, deixando muito pouco espaço para a inovação e para a diferença, de forma que a emergência de uma proposta diferente não parecia socialmente possível, nem desejável ou aceitável. Mesmo assim, as novas ideias foram conseguindo ganhar terreno, sob múltiplas manifestações - da lógica racionalista ao racionalismo imperativo, da construção arquitectónica à organização urbana, dos sistemas educativos à comunicação social -. Tudo isso pautado por avanços científicos e técnicos indiscutíveis, afectando a relação espaço - trabalho - tempo - dinheiro, forçada pelo capitalismo, fazendo pressões que abalaram muitas estruturas. Os impactos da electricidade e dos transportes motorizados sobre a forma de viver, e de fazer são possivelmente os mais dramáticos à escala planetária. Introduziram alterações drásticas, pois mudaram os ritmos ligados ao início e ao fim de cada dia, com trabalhos alterando a regra impositiva do sol a sol ou o horizonte espacial conhecido por cada um. Todavia, o quadro descrito não é sentido do mesmo modo, nem tem o mesmo peso, por todo o planeta e em qualquer lugar. Que o digam os viajantes quando passam de um continente para outro, da floresta para o deserto, do mar para o interior. Aspecto a corroborar a relatividade entre a "ordem das coexistências" e a "ordem das sucessões", como diria Gottfried Willhem von Leibniz. Deste modo, a Modernidade começou a alterar ritmos e cadências para todo o sempre, persistindo na eliminação das brechas onde se inscrevem as ocupações ligadas a actividades, organizadas e orientadas, pelos planetas e pelas festas: os ciclos cósmicos naturais vividos pela ruralidade, as comunidades repetindo gestos em torno de santos e de patronos, a criação ao encontro da fonte viva exalada pela dimensão consuetudinária ou terrestre. Estas realidades também são vividas de forma diferente na cidade e no campo. Assim sendo, a ocupação quotidiana faz sintonia com a "ordem natural" e a "ordem cultural": aquilo que as fases da lua ou as estações ditam; aquilo que os provérbios, não sem ambiguidades, consagram, e as gerações mantêm, apesar de tudo. No confronto entre dois mundos, caracterizados por diferentes ritmos e concepções onde se salienta igualmente uma clivagem na relação com o natural, tornado cada vez mais distante, quase virtual no mundo moderno, há, no entanto, lugar para a destruição e para a integração. Assim algumas actividades - mesteres, artes e ofícios - encontram o seu fundamento e permanência porque funcionam: qual alternativa em dias de mau tempo; qual contrapartida aproveitada ao lazer; qual preparação de uma festividade próxima ou costume a repetir, recorrendo ao preenchimento de momentos mortos, harmonizados pelo nicho ecológico e tradicional que os sustenta. Gestos técnicos a procurarem sintonia com as energias naturais e tradicionais, para que o objecto virtual do imaginário dê o objecto físico da construção. Recorrendo ainda à possibilidade de múltiplos fazeres, surge a simultaneidades nos fazeres - com - saberes: uma flauta nos lábios, a faca trabalhando na madeira e criando peças da chamada arte pastoril, enquanto as ovelhas e as cabras pastam sob a vigilância do pastor. Ou tirando partido de alternâncias nos saberes - fazeres: o mestre de telheiro construindo tijolos e telhas, actividade que interrompe para a apanha da azeitona, o que é traduzido pela expressão de 'azeitona a azeitona'; o oleiro artesanal que pega no torno enquanto chove na horta; o corticeiro que interrompe as suas actividades habituais para se dedicar à tiragem da cortiça, durante cerca de três meses, de meados de Maio ou princípios de Junho a meados ou fins de Agosto. |
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Referências | ||
1 D. Cuche, A Noção de Cultura nas Ciências Sociais (Lisboa, Fim de Século Edições, 1999) 2 Ibid. , p.28, 29 3 Ibid ., p 22 4 C.Lé vi-Strauss, The Savage Mind (Chicago, The University of Chicago Press, 1966) 5 C.Lévi-Strauss, A Oleira Ciumenta (Lisboa, Edições 70, 1985), p.17 6 T.Braga, O Povo Português -Nos seus Costumes, Crenças e Tradições, Vol II (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994) 7 O Verdadeiro Almanaque Borda d'Água (Lisboa, Editorial Minerva, 1974) 8 B.Metcalf, 'Craft and Art, Culture and Biology' em The Culture of Craft (Manchester, Manchester University Press, 1997), p.74 9 C.Lévi-Strauss, The Savage Mind (Chicago, The University of Chicago Press, 1966), p. 13. |
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