Formas de viver, formas de fazer, formas de saber
fazeres com saberes
Resumo
A presença da natureza, entendida aqui como os produtos directamente recolhidos ou extraídos da Terra, ou apenas muito pouco transformados, constitui uma marca evidente e constante nas chamadas artes e ofícios tradicionais. Sendo fundamental, a intrusão de materiais sintéticos torna-se inadmissível e desvirtuadora de todo o processo. Esta situação é também natural, na medida em que as referidas artes e ofícios se desenvolveram num tempo e num espaço em que a relação Humano - Natural era muito mais próxima e em que a dependência humana do natural era muito mais premente. A "arte" de transformar a natureza em artefactos e utensílios de grande relevância para as pessoas, entremeava-se com a própria vida, pois eram mesteres desenvolvidos nos intervalos de outras actividades. As mudanças no ritmo e no estilo vieram inviabilizar em muito casos esta forma de estar e, por outro lado, algumas das artes e ofícios tradicionais que deixaram de fazer sentido. No conjunto, todas elas saem diminuídas na sua importância relativa para o quotidiano de cada um, no contexto da sociedade actual, comparativamente com um passado não muito longínquo. A estas perdas sensíveis e perceptíveis pela generalidade das pessoas, junta-se uma nostalgia do natural, uma espécie de fascínio pelos saberes e processos tradicionais, uma procura acrescida e uma acrescida valorização dos seus produtos.
Assim o PROJECTO "INOVAÇÃO-TRADIÇÃO-INOVAÇÃO, formas de viver, formas de fazer, formas de saber FAZERES COM SABERES " - cujos objectivos principais são recolher testemunhos e histórias de vida sobre a prática dos saberes, esclarecendo os seus "comos", "porquês" e para quês, com vista à constituição de um corpus que importa poder descrever e caracterizar, preservar e compreender - insere-se no âmbito da relação próxima do Homem com a Natureza.
Objectivos
Recolha de testemunhos sobre a prática de saberes.
Descrição e análise do modo como se fazem os saberes - práticas ligadas às coisas naturais e culturais, apropriadas pelo quotidiano, da crendice ao tabu, da construção da casa à alimentação, passando pelas mesinhas e ofícios - e do modo como os saberes são falados.
Para tentar responder a esta pergunta fundamental: quais as razões porque o sucesso indiscutível do conhecimento científico e tecnológico não pretende acabar, ou não consegue acabar, com o que nos liga aos saberes, com muitas raízes ancestrais remexendo por dentro de nós?
E a esta: apesar de constituir um desafio interessante, a caracterização das estruturas internas, regras de pensar e de fazer que sustentam as práticas e saberes, à revelia da sociedade de consumo, industrial e científica, corresponderá a um campo com surpresas?
Em que é que as respostas a estas perguntas poderão contrariar a seguinte hipótese: apesar do processo técnico-científico, haverá um «hábito» criado que resiste porque mantém a sua «força vital» pois, é capaz de manter a sua utilidade prática (económica, social, energética ou religiosa) e tende inevitavelmente para a extinção, só quando perde essa utilidade?
Desenvolvimento
Embora a orientação luso-brasileira enriqueça este projecto, pois certamente haverá contrastes nítidos, talvez o mais interessante seja mesmo recolher, para preservar, estes testemunhos e conhecimentos, com valor intrínseco, com valor cultural e com utilidade potencial futura.
Não será demais realçar que muitos destes saberes não têm herdeiros e presumívelmente perder-se-ão com a morte dos seus detentores ("quando um homem morre é um universo que desaparece").
Além disso tenha-se presente que estes conhecimentos empíricos, baseados na experimentação sucessiva, na transmissão oral (e/ou na receita), podem dar lugar à inovação, resultando da observação e da reflexão relacionadas com a prática; nalguns casos, poderá até ser alegada inspiração divina ou sobrenatural; haverá também (e cada vez mais) uma apropriação dos conhecimentos livrescos ou científicos, tal como o contrário também se verificou e verifica.
Porquê se mantêm estes saberes e práticas?
Porque existe o saber, a oportunidade (disponibilidade de tempo, de matéria prima, etc.), eventualmente o gosto pela actividade, e fundamentalmente uma utilidade prática que os torna económica ou energeticamente compensadores aceitável, tanto mais que, aqueles que por qualquer motivo deixam de ser viáveis (energética, económica ou socialmente, etc.) extinguem-se - será que esta resposta engloba toda a complexidade da pergunta?
Será que um saber - fazer só se mantém no estado vivo, enquanto é praticado e compensador?
Será que a sua viabilidade depende da manutenção de uma série de factores, como sejam o stock da matéria-prima, a mão-de-obra, a procura, a vantagem do produto ou da sua capacidade para resistir à concorrência científico-industrial? Será que, com a excepção do fabrico de charrettes para uso turístico, a arte de fazer carroças, se ainda não se extinguiu está seguramente em vias de extinção?
Poderá ser interessante fazer um prognóstico sobre o futuro de determinadas práticas, incluindo a detecção das limitantes, a título de exemplo: o ponto nevrálgico da exploração da cortiça é sem dúvida o da tiragem, pois há um deficit no recrutamento e formação de tiradores, que dificilmente pode ser compensado, pois cada vez se encontram menos pessoas dispostas a fazer um trabalho tão duro, apesar de muito bem pago. Metodologia Parte-se de um enquadramento teórico onde sobressai o capítulo - science et savoir - do livro L' archéologie du savoir de Michel Foucault.
1 - Recolha de testemunhos relativos a actividades váriadas. Sugestões:
o género de fazeres com saberes
condição feminina
condição masculina
espaços de fazeres com saberes
abegoaria
botica
carpintaria
cestaria
cutelaria
ervanária
ferraria
fornos (cal e carvão)
latoaria
olaria
pastorícia
tinturaria
actividades de fazeres com saberes
agricultura/meteorologia/hidráulica a
caça
pesca
produtos de fazeres com saberes
alimentação
brinquedos
tapeçaria
traparia
espectáculos de fazeres com saberes
carnaval
titeres (marionetes)
literatura de fazeres com saberes
contos lendas
A recolha de testemunhos deverá ser orientada de molde a esclarecer alguns pontos considerados essenciais, nomeadamente o "como" os "porque" e os "para" do praticante.
Modos - importa saber como faz, mas também como chegou a determinada prática, como aprendeu o que sabe; importa saber se a actividade é solitária ou tem companheiros (pares mesmo que longínquos com quem há trocas e discussões sobre saberes - fazer), aprendizes ou pessoas com interesse e curiosidade pela aprendizagem da actividade.
Causas - importa saber quais as explicações que são dadas para o que faz e formas de fazer na lógica e linguagem específicas do informante, as quais revelam muito da sua concepção da própria actividade e do mundo; importa igualmente ter presente (dado que dificilmente é determinável) que a manutenção de uma prática encontra a sua motivação profunda algures no jogo do hábito, da necessidade (de alcançar benefícios ou evitar prejuízos, sejam eles de ordem natural ou sobrenatural), do prazer/realização pessoal, do dever ou do benefício económico ou social.
Finalidades: importa esclarecer quais os benefícios ou utilidade prática da actividade para quem a pratica.
Nesta fase, não parece conveniente fechar demasiado a pesquisa, apesar de poder ser importante circunscrever os campos, depois.
2 - Descrição do corpus --» determinação dos termos e das estruturas
--» detecção das regras de pensar e de fazer que os sustentam
3 - Conclusão: delimitação da configuração geral e dos limites - do permitido ao proibido - onde emergem, coexistem, se transformam, se perdem ou persistem estes saberes, para definir porque alguns foram sendo anulados por força da produção científica moderna e porque outros conseguem permanecer à margem da produção científica actual? Quanto ao modus faciendi da recolha de testemunhos será genericamente baseado em conversas informais e na observação (observação - participante, se for caso disso) da prática.
A metodologia terá que ser decidida, caso a caso, pelos intervenientes, tendo em conta as especificidades dos entrevistados, mas, como regra geral, após o estabelecimento do contacto com entrevistas abertas, seguir-se-ão, se necessário, entrevistas semi-estruturadas que permitam esclarecer os aspectos essenciais que eventualmente tenham ficado pouco claros.
Deverá existir um registo físico das conversas, parecendo-me francamente preferível o suporte vídeo aos suporte auditivo. Participantes
Professores e alunos da Universidade de Lisboa e da Universidade de Évora.
Produtos Tese de mestrado (Etnobotânica) - Universidade de Évora
Trabalhos escolares - Universidade de Évora (disciplina: Etnobotânica) e Universidade de Lisboa (disciplina: Ciências e Saberes)
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