NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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O natural é cultural? - José Gama

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A interrogação sobre o natural acompanha praticamente todo o percurso do saber humano. Desde o despontar da razão e do conhecimento consciente de si mesmo, a realidade, ou conjunto de tudo o que existe, é identificada com "a natureza" ou com outros termos que traduzem algo equivalente como "o cosmos", "o universo", "o todo"... Natural é, então, fundamentalmente, aquilo que se opõe e se impõe ao pensamento. Opõe-se como objecto do pensar e impõe-se como algo a decifrar e a respeitar, como um todo em que se deve integrar harmoniosamente, respeitando as leis naturais mas obedecendo ao que é natural a si mesmo e constitui a própria natureza humana. Desafio, enigma, ameaça, protecção, condição da própria existência... - a referência ao natural aparece como elemento determinante dos diversos domínios de expressão do saber, desde a formulação mais original das narrações míticas até ao complexo mundo da ciência moderna, passando pela filosofia e pela religião, sem nada deixar de fora...

Hoje, esta pergunta - Natural?! O que é isso? - pode ser perspectivada desde variados horizontes ou pontos de vista, entre os quais se destaca o da cultura. É sobre este que vou debruçar-me, com algumas considerações pontuais.

A Cultura, como conceito de significado filosófico e científico, é relativamente recente. Desde o séc. XVIII, a dimensão da cultura emerge como referência importante na invenção iluminista do "Homem", ampliando assim o significado predominantemente humanístico que o conceito trazia desde a Antiguidade clássica. No séc. XIX, o conceito e a realidade da Cultura adquirem dimensão e estatuto científico no âmbito das ciências sociais e humanas, particularmente na antropologia cultural. Rapidamente, a ciência e a teoria da cultura ocupam um lugar central na interpretação e na explicação da modernidade, daquela modernidade que deposita na capacidade da razão e no poder de intervenção do homem a orientação e a determinação do futuro da humanidade e do universo. Para esta valorização convergem os resultados da ciência e as orientações filosóficas que, de um ou de outro modo, incarnam os modelos dos racionalismos modernos de exploração e de domínio da natureza ao serviço dos interesses do homem. Na imensa multiplicidade dessas posições e pontos de vista científicos e filosóficos, o cultural e o natural polarizam interpretações e opções diferentes e complementares, chegando mesmo a radicalizar-se em oposições dicotómicas.

Num primeiro quadro, temos Antero de Quental como referência, em dois momentos: numa carta de 1887, a Wilhelm Storck, e na III parte das Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX , de 1890.

"O espírito é que é o tipo da realidade: a Natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O Universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da Natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo." (1).

"O espírito percebe o universo, não adaptando-se a ele, mas adaptando-o a si. O universo, tal como ele se nos representa, é, no fundo, uma criação do espírito: se existe para nós, é porque o concebemos: aparece-nos, não reflectido na inteligência, mas verdadeiramente visto nela. (...) O conhecimento é pois um facto íntimo e próprio do espírito, e o universo conhecido o produto da sua espontânea actividade." (2)

Antero reflecte a posição do pensador que assume uma filosofia científica, indutiva e realista, mas que não deixa de defender uma interpretação idealista da realidade. O elemento cultural, identificado fundamentalmente com a tradição do pensamento filosófico, sobrepõe-se claramente ao natural - a Natureza é vista como "longínqua imitação", "vago arremedo" do espírito, "o espírito é que é o tipo da realidade".

Está aqui contida toda a herança do pensamento moderno que transfere para a razão humana o poder de fiscalização e de decisão sobre a Natureza, entendida esta como o "conjunto das coisas naturais" sobre as quais a ciência é soberana. E revemos aqui, também, a atitude mental que vai nortear o culturalismo, no desenvolvimento que este regista no âmbito das antropologias culturais e da sociologia. A atitude filosófica de Antero, ao conceber o universo conhecido como produto da actividade espontânea do espírito, vai encontrar na cultura antropológica a tradução simples e linear de que "tudo é cultura", tudo na vida humana e na sua relação com o universo se traduz em termos de cultura e se explica pela cultura. Em última análise, a própria natureza e o que denominamos de natural não são mais do que meras construções da cultura; por outro lado, e inversamente, na perspectiva de reafirmação da natureza retoma-se o modelo do método das ciências naturais, aplicado ao mundo natural como um todo, e do qual a cultura não é mais do que uma simples produção. Assim, a oposição que se desenvolve entre o naturalismo e o culturalismo baseia-se na atribuição de prioridade e de fonte originária, à natureza ou à cultura, na explicação da realidade e do próprio saber.

No entanto, no campo mais especulativo, a questão não fica por aqui. A tendência que vai aflorar em vários autores e em algumas propostas de elaboração de uma "filosofia da cultura", parece apontar para uma situação de substituição da concepção tradicional da metafísica por uma interpretação ontológica da cultura. O horizonte da cultura seria o sucedâneo do plano dos princípios metafísicos, com o reducionismo antropocêntrico que implicaria: falar do "ser" só tem sentido a partir do "ser-aí" ("dasein" heideggeriano) que é o existente humano, e que se desvela em termos de realização cultural, como "ser cultural". Esta perspectiva pode relacionar-se com uma outra passagem do texto de Antero, apesar de não estar nela literalmente expressa: "o espírito define-se como uma força autónoma, que se conhece na sua íntima natureza, que é causa dos seus próprios factos e só às suas próprias leis obedece, que a essas leis submete os factos objectivos e só assim lhes dá significação e realidade, que a si mesma determina o seu próprio fim, que existe em si e em si encontra a sua plenitude." (3). O espírito é algo de natural, próprio da natureza humana, que surge no grau mais elevado da evolução e dá voz à própria natureza universal; a cultura, como expressão natural deste mesmo espírito, converte-se em instrumento privilegiado no acesso ao natural e ao ser em geral.

A partir destas considerações, à pergunta "Natural?! O que é isso?" podemos acrescentar duas referências a outros autores contemporâneos, para sublinhar o reconhecimento destas tendências no contexto do pensamento contemporâneo, e apontando para a necessidade duma visão complementar e equilibrada dessas mesmas tendências.

A (re)leitura da conclusão da obra de Paul Ricoeur, L'Homme Faillible (4), de 1960, dedicada ao conceito de falibilidade, como suporte filosófico de uma antropologia, sugere-me a compreensão da relação entre o natural e o cultural como o resultado de um movimento pendular que é próprio do ser razoável e limitado que é o ser humano. Quanto mais se afirma o cultural, tanto maior é a necessidade de reafirmação e de regresso ao natural . A afirmação e oposição do natural e do cultural no homem correspondem à tradução actualizada do enigma que o próprio ser humano sempre foi para si mesmo a todos os níveis, desde o nível do conhecimento e da compreensão até aos níveis da acção, da moral e da salvação. A limitação inerente a qualquer síntese do que é humano, torna-se mais evidente e também mais crítica na radicalização de cada um dos elementos que o constituem, e que actualmente se polarizam na díade em análise. Que a solução unilateral, nesta questão, não tem conduzido a resultados convincentes, fica bem esclarecido e fundamentado no recente estudo de Kate Soper, What is Nature?, de 1995; a autora propõe o equilíbrio e complementaridade das duas posições como a via mais realista e mais responsável para a situação actual: "Indeed, there is perhaps something inherently mistaken in the attempt to define what nature is, independently of how it is thought about, talked about and culturally represented. There can be no adequate attempt, that is, to explore "what nature is" that is not centrally concerned with what it has been said to be, however much we might want to challenge that discourse in the light of our theoretical rulings." (5).

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(1) Antero de Quental - Cartas II . Lisboa: Ed. comunicação, 1989, p. 838.

(2) Antero de Quental - Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1991, p. 92-93.

(3) Ib ., p. 94.

(4) Paul Ricoeur - Philosophie de la Volonté - II: Finitude et culpabilité . Paris : Aubier, 2002, pp. 149-162.

(5) Kate Soper - What is Nature? Oxford : Blackwell, 1995, p. 21.

 
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José Gonçalves Gama: Licenciatura (1971) e doutoramento (1991) em Filosofia - Braga. Licenciatura em Teologia (1976) - Frankfurt. Professor na UFPE - Recife (1985-1994). Professor Associado na Faculdade de Filosofia de Braga da UCP. Lecciona: Filosofia em Portugal e Cultura Portuguesa. Principais áreas de interesse e de investigação: Pensamento português - filosofia e cultura.