NATURAL?! O QUE É ISSO? ABERTO O COLÓQUIO De 2.11.2003 a 21.05 2004 INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL "NATURALISMO E CONHECIMENTO DA HERPETOLOGIA INSULAR" Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa) |
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O natural é cultural? - José Gama |
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Num segundo quadro, vou servir-me de alguns textos de Antoine Saint-Exupéry, em Terra dos Homens, de 1939, que testemunha, em forma literária inigualável, a verdadeira ou mais importante dimensão do humano, na forma indissociável do natural e do cultural. Mais do que as questões teóricas que passam pelos conceitos teóricos e correntes doutrinárias, o que é verdadeiramente importante é o que dá sentido à vida humana vivida na amizade e na solidariedade comprometida, empenhada na luta pelas condições que permitem o desabrochar do espírito e das virtualidades de cada um... O que é natural para o homem é esta ligação à terra e ao céu, plantado entre as dunas do deserto e o céu estrelado, onde é possível assegurar o alimento vital das "provisões de doçura" e possa expandir a capacidade de sonhar: "Não sei o que se passa em mim. Sinto um peso que me prende ao chão, quando tantas estrelas são atraídas. E um outro peso me reconduz a mim próprio. Sinto este peso meu, que me atrai para tantas coisas! Os meus sonhos são mais reais do que estas dunas, e esta Lua, e estas presenças. O que há de maravilhoso numa casa não é ela abrigar-nos, nem aquecer-nos, nem nós possuirmos as suas paredes; o que é maravilhoso é ela ter depositado em nós estas provisões de doçura, é ela formar, no fundo do nosso coração, este maciço obscuro, donde brotam, como águas de uma fonte, os sonhos..." (1) A dimensão pessoal e a dimensão social, a necessidade do cultivo da terra e a urgência da expansão do espírito, formam um todo, uma unidade. O que é primeiro, qual tem a prioridade, o natural ou o cultural ? "Quando nos jardins nasce uma rosa nova por mutação, todos os jardineiros se emocionam. Isolam-na, cultivam-na, favorecem-na. Mas para os homens não há jardineiro. Mozart menino será como os outros marcado pela máquina de bater ferro. (...) Mozart está condenado. (...) É Mozart, assassinado um pouco em cada um destes homens. Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o Homem." (2). O que será decisivo na "terra dos homens" do séc. XXI? Regresso mais acentuado ao natural, com a natural carga de ciência e de tecnologia que envolve a nossa vida do dia-a-dia, ou insistência no cultural, reinventando um novo tipo de cultura que faça alterar os sintomas alarmantes de um "cultura inculta" (3) e de uma "nova ignorância" (4) (usando os sugestivos títulos de obras recentes)? Num terceiro e último quadro, proponho um olhar de prospectiva para o séc. XXI, numa linha de afirmação e de interrogação sobre algo mais originário e originante, englobante e fundamentador do natural e do cultural - uma nova forma do sagrado? Não é uma questão de futurismo, mas apenas uma reflexão que tem a ver com a tendência mais habitualmente formulada do regresso ao natural . Tenho presente a referência, de memória, a uma afirmação atribuída a André Malraux, mais ou menos nestes termos: "O séc. XXI será religioso, ou não será." A afirmação ("regresso") do natural pode ser interpretada em várias direcções. A alternativa ao cultural sucede sem novidade de maior, na sequência de um "século da cultura", aceitando a sugestão de Eduardo Lourenço na caracterização do séc. XX. A cultura e o culturalismo deram corpo a um conjunto de resultados teóricos e de aplicações práticas do racionalismo antropológico que se veio afirmando desde o início da idade moderna. A ideia de cultura permitiu tornar mais acessível e mais funcional, na práica do dia-a-dia, a concepção do ser humano e da sua acção como centro irradiador de sentido e de explicação para tudo, desde a natureza até à fé religiosa; tudo fica dependente das decisões livres da sociedade. Esta perspectiva teórica e prática foi útil a todos os níveis, desde as classes dirigentes até às grandes massas populares ("cultura de massas"). Deixou, no entanto, um vazio que se vai acentuando cada vez mais, à medida que se torna patente na própria vivência cultural, com a consciência dos limites e dos excessos do próprio ser humano, que ao mesmo tempo se apresenta como o único garante e fundamento de si mesmo. "Uma leitura atenta da cultura sugere que há mais coisas no mundo para além da cultura" (4). A contestação da cultura e a constatação do vazio que lhe sucede, levam directamente à reafirmação do natural, e a verdade é que "a natureza acaba por sair vitoriosa da última batalha contra a cultura, vulgarmente conhecida por morte." (5). É um aspecto da questão, mas sintomático, pois aborda um dos aspectos mais sensíveis e mais decisivos do humano e do cultural, para o qual nem a razão nem a cultura em si mesma oferecem solução ou resposta satisfatória. Os factores sociais e políticos que poderiam ser invocados (desigualdades, violências, injustiças.) reforçam fortemente o quadro de desilusão e fracasso que afecta a cultura e o culturalismo, e, com eles, todo o envolvimento da ciência e da tecnologia. O que resta, então, ou para onde olhar? Os sinais de ressurgimento do religioso ou do sagrado palpitam um pouco por todo o lado, de modo mais consistente ou mais efémero, mas com continuidade e persistência que não autorizam ser ignorados ou menosprezados. A minha reflexão vai no sentido de aproximar e de ligar as duas manifestações, de afirmação e de regresso ao natural e ao sagrado. A dimensão do sagrado poderá corresponder à necessidade de acentuar no natural aquilo que está para além do alcance da razão instrumental que progrediu e se impôs como referência ou paradigma obrigatório ao longo dos séculos da modernidade ocidental. Razão esta que se proclama detentora das luzes que garantem o progresso e o bem-estar da humanidade, e que se vulgariza e "populariza" através do mundo da cultura e do culturalismo. A actual afirmação do natural não parece ser uma simples repetição ou renascimento da bandeira do naturalismo renascentista que programava o regresso à natureza e à razão natural. Se tem alguma utilidade ou razão de ser o olhar retrospectivo e a comparação com as grandes orientações e tendências das épocas passadas, então posso reconhecer fortes afinidades entre a "encruzilhada" que vivemos hoje e a fase de passagem do período do helenismo ou fim da Antiguidade Clássica para a Idade Média. Surgem neste período as tendências místicas das religiões de mistérios, que acabam por ter no cristianismo uma linha preponderante de unificação, e que as circunstâncias históricas contribuíram para impor como determinante. Estaríamos, assim, hoje, na situação de um "mundo indiferenciado entre natureza e cultura", com a irrupção já visível do "para além" desses dois domínios da razão científica e cultural. Poderíamos chamar-lhe "pós-modernidade", e acrescentar-lhe algumas características àquelas que têm sido apontadas. Embora não esteja de acordo com a proposta de aplicação ou "catalogação" que vou transcrever, não deixo de a colocar apesar de longa, como expressão de um opinião actual com alguma representatividade, e, sobretudo, como sugestão de debate, para tentarmos ir "mais além" na resposta à questão de fundo aqui colocada: Natural?! O que é isso? Ramón Kuri Camacho, ao comentar criticamente o pensamento de Gianni Vattimo em De la prehistoria a la historia , escreve o seguinte parágrafo: "De ahí que para el filósofo italiano, el gran dilema del presente y del futuro sea el de optar entre naturaleza y cultura, entre esencias y leyes naturales frente a las decisiones libremente aceptadas de la sociedad. «Naturaleza frente a cultura, con todos los límites que tienen en general las simplificaciones, parece ser el tema de la batalla que el siglo que acaba de terminar nos deja para que libremos». Y claro, la elección que uno tome frente a dicho dilema, redefinirá la diferencia entre derechas e izquierdas: «es de derecha toda concepción naturalista de la vida, que por tanto opone esencias y leyes naturales a la libre y libremente estipulada decisión de la sociedad. Y es de izquierda toda visión que se entregue, en cambio, a los datos naturales asumidos como norma, a la libertad de los individuos en diálogo con sus respectivas (y abiertas) comunidades»." (6). José Gama UCP - Faculdade de Filosofia de Braga |
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(1) Antoine de Saint-Exupéry - Terra dos Homens. Lisboa: Ed. Aster, s.d., p. 57. (2) Ib. , p. 156-157. (3) Allan Bloom - A Cultura Inculta - Ensaio sobre o declínio da Cultura Geral. Lisboa: Publ. Europa-América, s.d. (4) Thomas De Koninck - A Nova Ignorância e o Problema da Cultura. Lisboa: Edições 70, 2003. (5) Terry Eagleton - A Ideia de Cultura . Lisboa: Temas e Debates, 2003. (6) Ib. , p. 115. (7) Ramón Kuri Camacho - "Mundo indiferenciado entre nauraleza y cultura". Revista Logos, México, vol. 31, nº 91, 2003, p.98. |
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