NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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ANTÓNIO DE MACEDO

PORTUGAL TRANSNATURAL
Na Periferia do V Império
 
13 - Na Periferia do V Império (1)
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Mas. (perguntarão, legitimamente desconfiados, os mito-cépticos) . para quando, o famoso V Império vieirino e pessoano? Faltará muito, para cumprir-se? Não passará duma mera paranóia poética, razoavelmente inofensiva? Ou pelo contrário - dirão os outros, os mito-crédulos e os visionários - não estaremos já, profética e misteriosamente na ante-porta, ou talvez melhor, na periferia do V Império? Por enquanto, tudo parece indicar que nos encontramos na periferia, sim. mas do império europeu , o que não é pouco nem menos assustador, como nos explica o romance EuroNovela de Miguel Vale de Almeida. As irrisórias cores com que o autor pinta a Europa (des)unida que se nos avantaja e o humor mordaz com que a perfura têm um bom mestre em Gore Vidal e nas pistas por este abertas em The City and the Pillar , mas avança por outro tipo de pesadelos, os implacáveis analítico-pesadelos de um mundo não só de hoje mas, quem sabe. talvez sobretudo de amanhã - se não soubermos mudar o actual paradigma da relação espírito/tecnopolitologia.

A história começa em Lisboa, em meados do século xxi , com três pontes sobre o Tejo (25 de Abril, Vasco da Gama e Mário Soares), a língua oficial é o Noidoitx - um alemão simplificado ao alcance de todas as inteligências -, a sede do governo regional, a EuroHaus, ergue-se 30 pisos acima do Castelo de S. Jorge, as estátuas gigantescas de Robert Schumann e de Jean Monet embelezam a cidade, e a casta privilegiada dos EuroCratas vive em apartamentos de luxo recuperados do terramoto de 2010, não longe do grande centro comercial das AmorEuras. Os protagonistas, Maria Silva - uma A42, Técnica de Conversão Linguística, ou como se dizia antigamente, tradutora -, e Eyup Kaba, turco - um reles A10, Técnico de Higiene de Trabalho, ou como se dizia antigamente, servente de limpezas -, envolvem-se numa intriga internacional de vastas proporções em que vale tudo, desde a Cosa Nostra até ao Quinto Império, passando por lavagens ao cérebro com a última palavra em drogas psicotrópicas, a nEuroSugestina, que faz regressar ao bom caminho (EuroCaminho) os mais perigosos elementos que o EuroGov consegue apanhar da subversiva ralé dos EuroCépticos. Enfim, uma Europa controlada pelo R.E.I.C.H. (Região Europeia Internacional das Comunidades Hunas), e onde Portugal, como de costume, se fica pelas tristes meias-tintas, até consentir que os Descobrimentos se comecem a chamar Luso-Europeus, e por fim EuroDescobrimentos.

EuroNovela é uma distopia menos sobre uma sociedade futura do que sobre o poder alicerçado na falaciosa construção de teorias sobre as inefáveis origens do poder. Todo o livro é perpassado por inesperadas ramificações da conspiracy theory , há sempre uma autoridade secreta acima de várias autoridades secretas que manipulam governos, organizações e monopólios, e há sempre mais um plano secreto por trás do mais secreto dos planos secretos. O misterioso Plano do Novo Mundo arrasta Maria Silva, Eyup e um amigo (muito íntimo de ambos!), Manuel, pelos confins da União até às planícies dos EuroBárbaros da antiga Rússia, passando pelo centro onde os italianos já aprenderam a exclamar: EuroMamma mia!

Em suma, eis um curioso objecto literário que nos alerta para os perigos de enveredarmos por uma política, uma sociologia, uma antropologia e sobretudo uma mentalidade que nos acomoda à subserviência e nos corta o impulso vivificante da busca do «Portugal transnatural» - o Portugal transnatural planejado e desejado pelo Templário D. Afonso Henriques, laborado alquimicamente por Dinis e Isabel, expandido com arrojo neptuniano pelo Infante D. Henrique e por D. João II, e quase destruído por três séculos de Inquisição complementados por meio século de Estado Novo.

 
14 - Na Periferia do V Império (2)
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Há uma famosa frase de Sampaio Bruno que fez história na «história da mentalidade portuguesa», aquela em que o ilustre pensador portuense verbera o bárbaro uso da palmatória nas escolas (entre outros bárbaros usos, correntes no seu tempo): «O bestial uso da palmatória para corrigir, de faltas leves, escravos e estudantelhos vem, não obstante, de remotos tempos, como no-lo imbuem as passagens dos poetas romanos Juvenal e Horácio, por exemplo. Mas conservou-se nos costumes portugueses com uma fixidez de persistência que desmente a tão apregoada brandura desses costumes» (Bruno 1983, 270). [ Os realces em bold são meus ].

Esta ficção dos «brandos costumes» portugueses, denunciada por Bruno em 1904 e explorada sobretudo durante os 48 anos de totalitarismo salazarento-marcelista, serviu bizarramente, entre outras coisas, para convencer os leitores portugueses de ficções policiais e de aventuras de FC que os crimes e os detectives, por um lado, e as aventuras espácio-tecnológicas, por outro, não se coadunavam com o laborioso recato dos nossos «brandos costumes» católicos e agrícolas. Assim, se um leitor português lesse um livro de FC em que uma nave espacial fosse pilotada por um António Freitas ou um Manuel Silva nem passaria das primeiras páginas, por lhe parecer tão absurdo quanto inverosímil, ao passo que se a mesmíssima história fosse protagonizada por um qualquer James Brown ou um John Smith já tudo lhe pareceria razoável e perfeitamente engolível. Não admira que entre os anos 30 e os anos 50 do século xx - e mesmo mais tarde - os poucos livros de FC de autoria portuguesa utilizassem personagens com nomes anglófonos, e até alguns autores se mascarassem sob pseudónimos ingleses, como por exemplo Eric Prince, Rusty Brown, Alfred Lewis, W. Strong-Ross, Jack Swann - portuguesíssimos autores com portuguesíssimos nomes que mal se adivinham por trás destes.

Entretanto e felizmente as mentalidades abriram-se, e, tal como hoje nenhum leitor duma aventura aérea acharia estranho que o piloto dum avião da TAP se chamasse António Freitas ou Manuel Silva, também no livro Quatro Andamentos , de Luís Richheimer de Sequeira, as equipagens que num futuro mais ou menos distante nos são apresentadas a tripular astronaves portuguesas (da futura Armada Espacial Portuguesa, ainda que de proporções modestas, tal como a nossa actual frota aérea.), têm, naturalmente, nomes portugueses, como normais tripulações civis ou militares dos aviões da TAP ou da FAP. Todavia, mais do que isto, o que é relevante no livro de Sequeira é o sentido da aventura trans-galáctica (trans-oceânica?) e da Além-Descoberta , moldadas pela «alma secreta de Portugal» que irrompe com toda a transnaturalidade por entre as fissuras do mundus virtualis revelado ao longo das quatro novelas que compõem o livro.

Por exemplo, a acção da novela «Ironias do Destino», quase um pequeno romance de 100 páginas, decorre numa nave militar portuguesa em missão de rotina que se encontra há vários meses no hiperespeço, a D. Duarte II , levando a bordo 200 tripulantes (entre os quais um padre - o padre Dinis -, por insistente exigência do cardeal patriarca de Lisboa, D. João de Almeida.) Por sua vez o comandante chama-se Pedro Menezes e Cabral - nome de ressonâncias históricas, a sugerir outros nomes de todos nós conhecidos doutras descobertas -, e, ao cabo de sucessivas e palpitantes peripécias em que o comandante, o imediato, o navegador, o oficial-cientista e outros técnicos e oficiais se vêem às voltas com estranhas e preocupantes ocorrências e falhas sistémicas, chegam à conclusão que os fenómenos observados têm uma causa não-humana . Perturbadora conclusão, por duas razões: primeira, «não-humana» pode significar apenas «artificial», pode tratar-se dum artefacto tecnológico de fabrico humano, perdido no espaço, cuja IA [Inteligência Artificial] se tenha desregulado e enlouquecido e esteja a interferir com a D. Duarte II ; e segunda razão, essa sim, realmente perturbadora, pode significar «alienígena», uma vez que até então, e em tantas centenas de anos, a espécie humana ao ter-se espalhado pelo Universo para colonizá-lo, ainda não deparara com nenhuma outra espécie inteligente.

Caberia mais uma vez aos Portugueses a honra e a glória de se confirmarem Descobridores , desta vez duma nova espécie inteligente, provando que afinal não estamos sós no Universo? Enquanto se ultimam os preparativos para um possível contacto, o comandante convoca uma reunião geral e resume: «Antecipando as vossas propostas, compilámos uma lista de possíveis acções a tomar. Temos, de facto, um dilema. A missão que temos é de exploração dos mundos em torno de Rigel; contudo, se encontrámos claros sinais de uma inteligência não humana, a Convenção de Alpha Centauri tem precedência: somos obrigados a efectuar todos os esforços no sentido de estabelecer um primeiro contacto e fazer um relatório pormenorizado para o QG» (Sequeira 2000, 107).

A tessitura narrativa desenvolve-se num progressivo suspense , todas as tentativas de comunicar com o objecto alienígena vão falhando uma por uma: « . Portanto eles estão lá - comunica o oficial-cientista, no seu relatório verbal -, e sabem perfeitamente onde é que nós estamos. Contudo, não respondem a nenhuma das nossas tentativas de comunicação. Por que será? Tentámos de tudo: variações das frequências, raios-X, até microondas, vários tipos de padrões; convergência dos raios em diversos pontos, incluindo sobre a própria nave alienígena. [.] [M]as os alienígenas não reagiram. [.] A única coisa que sabemos é que devem ter um metabolismo semelhante ao nosso. [.] E é de facto uma enorme pena não conseguirmos comunicar; é a primeira e única tentativa que temos. [.] [Q]ue interessa termos conhecimento da existência de uma espécie não humana com a qual não conseguimos comunicar? É desesperante.» (Sequeira 2000, 114-115).

Após mais uma enervante série de experiências e tentativas, com lasers , emissão de neutrinos coerentes, flashes luminosos, etc., a comunicação torna-se finalmente possível graças à emissão em código binário de alguns modelos matemáticos simples como o valor de pi , sequências de números primos, padrões hertzianos, a constante de Planck. Cartas estelares dos sistemas de origem das duas raças foram por fim transmitidos em ambos os sentidos, dados e informações importantes sobre cada uma das civilizações são permutadas, até que ambas as naves combinam um encontro: os alienígenas propõe-se estender uma «manga» entre as naves para que os representantes de ambas as espécies possam encontrar-se frente a frente e saber que aspecto têm.

O padre Dinis não perdeu tempo em levar a bom termo os seus deveres espirituais: rezou uma missa pelo bom sucesso da missão pacífica de contacto com a primeira espécie alienígena! Tudo isto, porém, se passa no hiperespaço e a astronave portuguesa não consegue aguentar a sobrecarga de energia que o processo implica - a tecnologia alienígena é muito avançada e poderosa, e nem a amigável boa vontade desses seres (superiores?) consegue impedir o inevitável. quando as complexas manobras de abordagem e atracagem estão quase completadas, e vai enfim ocorrer o primeiro contacto com uma espécie inteligente extraterrestre, o computador de bordo abortou subitamente as comunicações, o reactor com o sobreaquecimento derretera as paredes de contenção do plasma, e os sistemas de segurança fazem com que a nave portuguesa saia do hiperespaço para o espaço normal. perdendo assim todas as possibilidades de rastrear de novo a nave alienígena! Pior: com a avaria, apagaram-se todos os registos; logo, quando a tripulação portuguesa regressar à base planetária, não terá provas do que se passou. e o único relatório que o comandante pode apresentar será apenas uma descrição superficial de um encontro com um dos muitos fenómenos do hiperespaço, que danificou as antenas. O padre Dinis em conversa com o desalentado comandante observa que se tratou duma «lição», e que o que aconteceu poderia considerar-se «uma intervenção divina». O comandante pede-lhe que se explique, ao que o padre responde:

«- Acho que tivemos muito, muito azar.

«O comandante riu-se: - Só isso?

«- Sabe que a língua portuguesa é a única europeia onde existe uma palavra que designa azar  ? Os restantes europeus falam sempre de "má sorte".

«- E o que tem isso a ver com o que aconteceu?

«- Que não somos donos do nosso destino. Que podemos planear tudo com antecedência, seguir todas as normas, mas mesmo assim os imprevistos surgem. Os portugueses sempre reconheceram isso desde o início da nação. Mas aprenderam com os infortúnios a não se deixarem abater. Essa é, realmente, a nossa lição a tirar» (Sequeira 2000, 185).

Uma outra novela do mesmo livro, «Terra Lusa», é dum optimismo muito mais trágico. A raça humana, espalhada pelas galáxias, toma enfim contacto com uma outra espécie inteligente da qual não consegue saber nada excepto que se trata duma raça de predadores ferozes e implacáveis, que surgem como que do nada, tudo matam, destroem e chacinam e até à data têm-se mantido invencíveis. a única coisa que se sabe é o nickname que lhes deram: bicharocos . A Federação Planetária, que reúne todos os povos da Terra, decide que é fundamental colonizar o perigoso planeta Omicron Seis - não muito mau por um lado, ainda que desagradável pois o clima é permanentemente tropical, mas isso é o menos, o pior é que fica nos limites da «fronteira» entre os últimos planetas terráqueos e o abismo donde provêm as incursões dos apavorantes bicharocos ., por isso é perigoso, mais que perigoso, perigosíssimo, no entanto o solo é fértil, além de rico em minerais, e as grandes potências querem-no mas não se arriscam.

Durante uma tumultuosa reunião dos Conselheiros da Federação Planetária discute-se o destino desse planeta vital: por uma lado, os representantes das nações «unidas» reconhecem a importância de ocupar o planeta, mas retraem-se em vista do perigo potencial que representa, até que o Conselheiro belga decide a questão: « . precisamos de uma nação que queira uma colónia agrícola, que se dê bem com a África Central, que queira viver num planeta quente e húmido e ao que conste extremamente desagradável, com a agravante de estar prestes a ser invadido pelos bicharocos . Hum. Proponho que se mandem para lá os portugueses» (Sequeira 2000, 194).

E assim acontece. O comandante David Lima - a quem se ocultou cuidadosamente que Omicron Seis é um possível alvo dos terríveis bicharocos - é enviado a comandar a gigantesca nave Lusitânia Expresso com cinquenta mil colonos, entre portugueses, africanos, timorenses. mas como a Confederação Europeia não confiava plenamente nas capacidades da tripulação portuguesa, fornecera um destacamento militar coordenado por ingleses e alemães. Em suma, após se terem instalado no planeta, rebaptizado com o nome de Terra Lusa para adoçar a pílula aos «portugas» que tinham enfiado o barrete de ir para lá, descobriu-se, ao fim de dois ou três anos de colonização coroada de êxito, que o hemisfério sul do planeta estava a ser alvo do ataque dos temíveis e medonhos bicharocos . O comandante David Lima ficou furioso quando o capitão Hans Meister lhe deu oficialmente a notícia (e lhe mostrou agoniativas imagens.) do que acontecera à colónia do hemisfério sul; não se conteve e exclamou: «Eu logo vi que isto era bom de mais para ser verdade. Há séculos que os portugueses reclamam uma colónia, assim como os africanos, e agora que temos uma, por sinal excelente, ficamos a saber que estamos na fronteira, sim, mas com o inimigo! Estava-se mesmo a ver. Quando a esmola é muita, até o pobre desconfia» (Sequeira 2000, 231-232).

O alemão sorri, complacente, e explica a razão que levou o Conselho Planetário a escolher os portugueses para «desenrascar» o problema de Omicron Seis - ou melhor, agora, Terra Lusa! - e liquidar o mistério dos bicharocos  : « . Toda a vossa história assenta no desenrascanço.» Resume a História de Portugal de um ponto de vista dos «efeitos», e não das «motivações», a maneira como desde a fundação o terrritório português foi conquistado com pouca gente para o manter, as viagens de exploração malucas que lixaram a vida aos árabes destruindo o comércio centenário que faziam entre o Oriente e o Ocidente, a esperteza como os portugueses inventaram a escravatura negra para colonizar o Brasil e como conseguiram chegar à Índia, à China, ao Japão, e de como iam dando cabo da civilização japonesa introduzindo armamento ocidental numa era de grandes guerras feudais, até que no século vinte perderam quase tudo o que tinham mas acabaram por se safar com acordos feitos em cima do joelho, depois desenvolveram satélites para serem levados por naves-colónias, que são baratinhos e por isso muito procurados até pelas nações mais desenvolvidas, funcionam mal mas funcionam, e por fim conseguiram desenvolver esta colónia de Omicron Seis muito mais depressa do que qualquer povo normalmente civilizado conseguiria.

O capitão Meister prossegue: «Os militares estão a apostar seriamente na vossa capacidade de desenrascanço para lutarem contra os bicharocos , com poucos recursos e nada mais que a imaginação. Não sei. Talvez consigam estabelecer comunicações com eles apesar de todas as tentativas infrutíferas que se fizeram até agora e estabeleçam um acordo ranhoso, em que não vos batam com muita força em troca de qualquer coisa perfeitamente inútil, tipo uns barris de cerveja omicronense ou coisa parecida.» E remata: «Estamos na fronteira da Federação com os bicharocos . Vocês são muito bons a estabelecer fronteiras duradoras; sempre o conseguiram fazer, ao longo da vossa história. Não sabemos lidar com esta ameaça nova. Desenrasquem-se. É o que sabem fazer melhor» (Sequeira 2000, 234). E Hans Meister saiu do gabinete, deixando o comandante David Lima a pensar como é que havia de sair daquela situação lixada.

Provavelmente, com uma boa dose do segredo que anima a alma do «Portugal transnatural»: a imaginação - outra forma de ortografar imagem-em-acção  !

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