NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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ANTÓNIO DE MACEDO

PORTUGAL TRANSNATURAL
Na Periferia do V Império
 
15 - Na Periferia do V Império (3)
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Vejamos enfim o terceiro e último exemplo invocado mais atrás. De uma forma desconcertante, José de Matos-Cruz recria a história de Portugal do século xx escolhendo 100 acontecimentos, um por cada ano, para transformá-los em narrativas, umas mais longas, outras mais breves, como se fossem dramatizações de notícias que poderiam ter saído nos jornais. De uma forma desconcertante, dizia eu, duplamente desconcertante, aliás: para começar, esses contos não estão por ordem cronológica, o primeiro é de Abril de 1974 (curioso sinal.), o segundo de Maio de 1903, o terceiro de 1920, o quarto de 1954, o quinto de 1982, o sexto de 1964, o sétimo de 1981, o oitavo de 1916, o nono de Outubro de 1910. até ao centésimo que é de 1988 - os anos estão lá todos, baralhados é certo, mas não falta nenhum. além disso instala-se uma certa inquietação no leitor quando começa a perceber que por detrás do rigor histórico dos cenários, das personagens, dos comportamentos, da linguagem, dos acontecimentos retratados em cada ano, há um Portugal virtual que tem tudo a ver com este mas «revisto» de uma certa maneira, uma virtualidade que se actualiza de modo a fornecer uma «chave».

Que chave? Cabalística, suspeito eu: a que descodifica (descodificará?) o «Portugal transnatural» que este país tem sido, ao mesmo tempo que nos entreabre os portais das ofertas de futuro que ele afinal é, e será. Por exemplo, no conto de Abril de 1974 fala-se duma revolução, sem dúvida, mas quem vai dar a notícia ao Presidente é um coronel que tem o mesmo nome do feroz republicano que em 1911 chefiou o I Governo Constitucional, João Chagas, e o Presidente que está prestes a ser derrubado em Abril não é Almirante, é General, e ficamos a saber, por um dos contos mais adiante (o de Novembro de 1936) que fora pastor de cabras e ovelhas da serra, e filho de um pai tresloucado e de uma ninfomaníaca. No conto de 1980 o candidato do Partido Liberal prepara-se para umas eleições vitoriosas, coisa que o conto de Abril de 2000 confirma, vinte anos depois o Partido Liberal continua no poder, um dos deputados, vindo de Cascais, entra no trânsito congestionado das ruas lisboetas, sobretudo no pandemónio da Rua Arthur Lopes de Barros. (Homenagem a três cineastas duma assentada? Arthur Duarte, António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, que durante anos e anos congestionaram o «trânsito» do cinema português?)

E assim de seguida, os acontecimentos e as situações são reconhecíveis, mas um tanto ou quanto «ao lado», num universo mais que alternativo, como algo que existe escondido «em potência» somente à espreita duma frincha interdimensional - a famosa «porta Z»! - para irromper «em acto», algo de virtual à beira de se tornar mais que real. Relembro que os 100 anos referentes às 100 narrativas estão baralhados/distribuídos duma forma aparentemente aleatória, ao sabor das imprevisibilidades da «arritmia caótica». Mas há uma chave! Quem a descobrir encontrará o signum lucis que desvendará o enigma da Lusitania felix .

Diz o autor, na introdução: «Factos, episódios, eventos. Sociais, políticos, culturais. Peripécias, situações. Peculiares, irrisórias. Humores e sensibilidades. Gentes privadas ou figuras públicas. Maneiras de falar e modos de descrever. Coisas que se perderam na voragem de um século ou na memória de cada um de nós. Mas que pairam com um fascínio virtual .» (Matos-Cruz 2003, 10). [ Os realces em bold são meus ].

 
16 - Conclusão: o Transvirtual & o Invisível
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O fascínio virtual. eis a chave? Ou a cifra? Pierre Lévy, filósofo e professor do Departamento de Hipermédia da Universidade de Paris VIII, no seu livro Qu'est-ce que le virtuel? examina, descreve e classifica as novas formas de abolir o espaço e o tempo pela «virtualização» que caracteriza o nosso estar no mundo de hoje - virtualização do corpo, da economia, da linguagem, do texto, da inteligência, da própria virtualização. Ficamos a saber que o « virtual » não se opõe ao «real», mas ao « actual » (Lévy 1998, passim ), tudo se concentra cada vez mais num grandioso invisível que tudo domina, para não dizer que tudo engole, com uma fome insaciável que não sabemos como nem quando terá fim. Um grande buraco negro que ameaça corroer a auto-supremacia do universo internoético? Ou antes um vasto e cegante BURACO BRANCO de luz joânica , a Luz do Espírito afirmando-se cada vez mais através de todos os interstícios de todas as matérias e intermatérias??

No que nos diz respeito, e em se tratando do «Portugal misterioso», aquele a que Paulo A. Loução chamou o «Portugal mítico» (Loução 2001, passim ) cujos símbolos contêm uma fortíssima energia mistérica, graálica, teremos de considerar, para além do «transnatural», o « transvirtual » e o invisível que se lhe associa e nos tem vindo a moldar há mais de oito séculos e meio «sob o signo do além», dando teimoso corpo ao mundus imaginalis donde dimana a «alma secreta de Portugal» - poderoso mundo invisível que se equilibra, perigosa e instavelmente, entre «a esperança dos outros mundos e o eterno convite à viagem» (G. Durand).

E por aqui me fico, rematando com a judiciosa observação que Woody Allen proferiu um dia a propósito destas e doutras recônditas coisas: «Sem dúvida que há um mundo invisível . O problema é saber a que distância fica do centro da cidade e até que horas está aberto».

António de Macedo

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