NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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ANTÓNIO DE MACEDO

PORTUGAL TRANSNATURAL
Na Periferia do V Império
 
9 - O Transnatural & o Círculo dos Multiversos
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Para além de todas estas «ventanias conspiratórias», um dos grandes contributos para uma tal apetência, nomeadamente no campo da criatividade literária, foi o Prémio Caminho de Ficção Científica criado por Belmiro Guimarães com a intenção prioritária de revelar novos autores lusófonos a fim de serem editados nas colecções da Editorial Caminho. Esse pémio percorreu as décadas de 80 e 90 do século xx e a sua primeira atribuição, em 1982, contemplou o romance Os Caminhos Nunca Acabam , de João Aniceto, com uma recomendação especial do júri para o romance A Vocação do Círculo , de Daniel Tércio, que viria a ser publicado em Março de 1984.

Aproveitemos para registar, parenteticamente, que Daniel Tércio foi o idealizador e director do magazine Paradoxo - Revista de FC e Fantástico , de cuja 2.ª série saíram apenas quatro números entre 1999 e 2000 mas que se distinguiram por constituir um marco e um ponto de viragem indiscutível na ficção especulativa portuguesa, e ensaísmo associado - e pelas polémicas que os seus textos suscitaram. O conto de Tércio «Sereia», inserido na colectânea O Demónio de Maxwell , mostra-nos o nosso rei D. Dinis, quando ainda jovem príncipe, a participar na caçada a uma sereia. baseado num grave e histórico texto de Damião de Góis (autêntico!) onde se dá conta dum imposto que no tempo de D. Afonso III era devido à coroa pela pesca das sereias, o que levou o insigne cronista a afirmar que « . as sereias eram então frequentes nas nossas águas, visto que sobre elas se promulgou uma lei» (Tércio 1993, 147 segs.).

Aquele romance de Tércio, A Vocação do Círculo , tem a peculiaridade de trabalhar de forma «lisboeta» uma das temáticas mais acarinhadas pela FC, a dos «universos paralelos», conceito elaborado literariamente pela primeira vez, ao que parece, em finais do século xix : as primeiras narrativas conhecidas sobre esse tema são uma pequena novela de J. H. Rosny Aîné, «Un autre monde» (1895) e dois contos de H. G. Wells, «The Strange Case of Davidson's Eyes» (1895) e «The Plattner Story» (1896).

Tércio transporta o protagonista de A Vocação do Círculo , Licínio, através de diversas «Lisboas alternativas» que coexistem em mundos paralelos, e cada uma delas reflecte uma faceta do «estar português» de modo peculiar. Vivendo numa era espacial e computorizada em que as tipografias e as oficinas de bairro não passam de recordações obsoletas, Licínio é de súbito absorvido para um outro espaço-tempo em que Lisboa, sendo a mesma Lisboa, não é bem a mesma:

«Os edifícios envelhecidos tinham varandins gradeados em estilo "arte nova", e nas suas caves e rés-do-chão abriam-se oficinas. Reparou, entretanto, nas pequenas placas balanceantes onde estavam impressos os nomes das firmas: "Sociedade Tipográfica Gutenberg"; "Sapateiro e Meias-Solas"; "Carneiros e Cabedais", etc. Notou, numa das janelas do primeiro andar defronte, a legenda "Relógio & Relógio, Lda. - Sociedade de Feitiços & Protectivos". Desviou o olhar admirado e, no fim da escadaria, quase junto do chafariz, divisou a entrada antiquada de um restaurante ou de um bar, onde, a acreditar no anúncio recortado em madeira, devia existir leitão assado e cerveja» (Tércio 1984, 24). Nessa «nova-velha» Lisboa um português e um brasileiro inventam o cinema, antecipando-se aos Lumière (Tércio 1984, 56-57), e até existe uma respeitável Universidade de Feitiçaria com professores catedráticos na Arte Mágica, ideia que Joanne K. Rowling aproveitaria treze anos mais tarde quando lançou o primeiro volume da série Harry Potter, em 1997.

Numa outra arquivolta das estranhas «dobras espácio-temporais» daquela interpenetração de mundos, o protagonista Licínio vai parar aos subúrbios duma outra Lisboa subjugada medievalmente por uma terrível hierarquia inquisitorial, os Guardas do Templo, Lisboa essa que ainda se chama Olisipo, e uma jovem aborígene, Lia, adverte o protagonista quando este se prepara para entrar na cidade: « . Segundo as suas palavras, a cidade organizava-se em torno do Templo do Círculo, onde se venerava um deus que ela fora incapaz de descrever. Os guardas do Templo eram os responsáveis pela ordem na cidade. Não eram simples polícias. Eram mais que isso: administravam tudo, desde as finanças públicas à fidelidade religiosa da população. Nesta matéria, pareciam bastante fanáticos. A fogueira era o santo remédio reservado para os hereges» (Tércio 1984, 166-167).

Eis-nos perante o reverso da medalha: as trevas que propiciam o realce da luz, o cisnatural indispensável para que se destaque o transnatural . A explicação desta confusão de mundos sobrepostos revelou-se a Licínio (ou a um dos seus duplos.) ao consultar um livro: «Foi nessa obra que encontrei uma curiosa hipótese: a da existência de um universo paralelo ao nosso» E Daniel Tércio cita-a, a essa obra: é nada menos do que a colectânea Céu em Fogo (1915), de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), que inclui, entre outras, a novela «A estranha morte do Prof. Antena» (Sá-Carneiro 1993, 211-238), a primeira narrativa de FC criada em português sobre a temática dos mundos paralelos (foi escrita entre Dezembro de 1913 e Janeiro de 1914). É uma ideia antiga já vislumbrada na tradição védica, vista com desconfiança pelos euclidianos gregos mas perfilhada pela Gnose mística e outras correntes esotéricas, e na qual Fernando Pessoa confessou acreditar numa carta que endereçou a Adolfo Casais Monteiro em 13 de Janeiro de 1935 (na sua fase Rosacruz):

« . Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não» (Pessoa 1986-II, 344).

 
10 - As favas com chouriço & a decadência do vampirismo
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A obsessão da lusa transnaturalidade tão-pouco se encontra ausente duma autora de FC cuja primeira obra logo se distinguiu por uma qualidade literária e um humor subversivo e mordaz que lhe granjearam o Prémio de Revelação de Ficção de 1991 da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Refiro-me a Maria de Menezes, e à sua colectânea Três Histórias com Final Feliz , publicada em 1993. Nas três narrativas que a integram, o transnatural português pode revelar-se arrasador.

Apenas citarei como exemplo a terceira, «Novos tempos», uma estranha reflexão sobre a poderosa alquimia que a «aura» deste país exerce nos incautos que a ela se expõem. Um vampiríssimo descendente do conde Drácula e a sua jovem filha Eva, pálida e loura, vêem-se obrigados a fugir da Roménia comunista de Ceausescu, e, depois de calcorrearem vários países, acabam por instalar-se no 4.º andar dum lote com o elevador avariado, num bairro social lisboeta, o que motiva a seguinte observação do desiludido - mas resignado - conde: «Tenho esperanças neste país. É sossegado, o partido comunista está em crise, a população parece confiante. Tem bom ar.Acho que poderemos viver bem aqui» (Menezes 1993, 98).

A jovem emprega-se como enfermeira num hospital para obter à sorrelfa os frasquinhos com 50cc de sangue de que o pai se alimenta, em contraste com as descrições das favas com chouriço, da dobrada com feijão branco ou do bacalhau com alho acompanhados de tinto ou verde, que a porteira confecciona em quantidades apetitosas ainda que modestas - os tempos não estão para gastos! -, enquanto vê telenovelas e o marido lê A Bola e discute futebol. Em suma, Eva e o conde, convidados pelos popularuchos vizinhos, acabam por sucumbir às delícias da caldeirada de lulas e da dobrada, das favas e até do alho, tudo acompanhado com uns copázios de boa vinhaça. Apanham um valente pifo e maravilham-se, abandonam as monótonas dentadinhas no pescoço, Eva já se consegue ver ao espelho e torna-se top model , e o conde encontra uma finalidade na sua interminável e tediosa existência dando aulas de francês durante o dia e trabalhando como arrumador de carros durante a noite!

Quer queiramos, quer não, existe de facto um «mistério português», pois tão inexplicável como converter os Dráculas às favas, ao chouriço, ao bacalhau com alho e ao carrascão, é partir na Saga dos Descobrimentos em caravelas minúsculas e malcheirosas, infestadas de parasitas, abastecidas de carne salgada, limões e água salobra, a sulcarem o tremendo e megalópico oceano - e vencê-lo!, «apenas» com a misteriosa força dum Alto Desígnio e as certezas da Gnose Náutica transmitida por Templários, Árabes e Judeus. Até hoje, nenhum historiador positivista ou neo-positivista conseguiu explicar satisfatória e cabalmente o mistério que entrelaçou o feitiço do Preste João à impenetrável empresa de Pêro da Covilhã, e ao segredo que rodeou a sua demanda (Freitas 1986; Ficalho 1988; Rui 2000; Franco 2001; Loução 2003). A tanto só se atrevem os aventureiros do «Portugal transnatural», seja em ensaio, em sonho, ou em temerária e audaciosa ficção (Barroqueiro 2002-2004).