MÁRIO FORTES & CLÁUDIA ÁVILA GOMES


ROMANTISMO, ULTRA-ROMANTISMO E... ALQUIMIA
NA PENA E NA REGALEIRA (2)

A Regaleira

e composta de parte urbana e rústica – a urbana de – bello palacio, com muitas acomodações, capella, casas para caseiro, e para arrecadações, casa de banho no jardim, etc. A rustica de – bello jardim, grande e magnífico arvoredo, hortas, terras, e um grande e explendido castanhal
Propaganda aquando da hipoteca e leilão da quinta - Século
(PEREIRA, PEREIRA, ANES, 1998: 13)


Sintra reafirmou-se como pólo importante na vida social e cultural do país ao longo do séc. XIX. Vários projectos surgiram, promovidos essencialmente pela elite de origem burguesa que se reviu no novo movimento e construiu palácios e quintas de recreio de feição revivalista - Num cenário que só por si apela ao êxtase emocional a que aspira o espírito romântico, erguem-se variadas composições que pontuam a serra e a tornam no seu conjunto um dos grandes palcos românticos europeus (ÁVILA GOMES, 2002: 12).

Contudo, as motivações que levaram Augusto Carvalho Monteiro a adquirir a propriedade da Regaleira em 1893 são distintas das que presidiram à aquisição do velho cenóbio hieronimita em 1838 e à respectiva adaptação a paço real. O “Monteiro dos Milhões” (12), que herdou de seu pai fortuna considerável obtida através de negócios no Brasil, procurou não só um refúgio estival em Sintra, mas também um espaço de contacto social e cultural com uma sociedade privilegiada à qual se tentou pelo menos equiparar, senão ultrapassar.

Sem dúvida que esta quinta se revelava extremamente aliciante pelas condições climáticas favoráveis, pelos pomares, castanhal, pela abundância de água e talvez mais pela história ou lenda que a rodeiam, incorporando-a na antiga Mata de Almosquer, a qual teria sido doada por D. Afonso Henriques à Ordem do Templo.

A propriedade pretendida, limitada a 4 Ha, compreendia uma antiga quinta de recreio e algumas parcelas adquiridas entre outras distribuídas ao longo de um caminho bem frequentado, pelo qual se acedia às quintas de Seteais e de Monserrate. Assim, inserida numa encosta resguardada e amena, caracterizava-se por condições diferentes das que levaram à eleição da Pena para parque e residência real, sendo contextualizada por uma paisagem essencialmente antrópica.

Também a atitude projectual que presidiu à reformulação da antiga quinta da Viscondessa da Regaleira, em tempos designada como do Castro ou da Torre (PEREIRA, PEREIRA, ANES, 1998: 9; ÁVILA GOMES, 2002: 15), se baseia em princípios distintos dos propostos por Henri Lusseau (13) para a intervenção nesta propriedade e dos defendidos por D. Fernando aquando da construção do Real Parque da Pena. Se neste parque se privilegiaram os valores naturais, as múltiplas expressões da história, os mistérios, a temeridade e a insegurança da serra, valores reais de um primeiro romantismo, o mesmo não se passou na Regaleira, onde Carvalho Monteiro e Manini (14) optaram por algo díspar e pouco consentâneo com esta obra antecessora: Construir e sobrepor cenários fantásticos onde cruzaram mitologias, lendas e alquimias; esconder e encobrir a paisagem; avançar pelas profundezas da terra e da mente através de poços e túneis insólitos; suspender o tempo, recusando a fatalidade do destino pela persistência da memória. O resultado é surpreendente, contudo há que reconhecer que se afasta da ambiência dilecta do século XIX, na qual se privilegiava a expressão das forças da Natureza e denunciava a precaridade da existência humana.

Na obra realizada ao longo das duas primeiras décadas do séc. XX algo se aproveitou do passado, mas o que subsiste dos tempos da antiga Viscondessa passa despercebido. Manini optou por integrar algumas pré-existências nos cenários que projectou, os quais reflectem em toda a quinta a mestria dos artifícios de óptica e de perspectiva próprios de teatro, articulando os mais variados planos e composições.

Nesta composição é possível identificar aspectos tradicionais das quintas de recreio, que se desenvolveram em Portugal a partir dos séc. XV-XVI e que por vezes se demarcaram como espaços de composição erudita, nas quais se expressaram as correntes artísticas dominantes de cada época (ÁVILA GOMES, 2002: 4). Nela persiste a estrutura compartimentada de jardins, hortas, e pomares, na qual se integra até mesmo uma pequena mata. Releva-se a amenidade de conjunto, no qual se recupera o conceito de locus amoenus, pouco compreensível dentro do espírito romântico da Pena.

Esta constatações permitem compreender com maior profundidade esta obra ecléctica, na qual tanto as soluções programáticas como as opções iconográficas e decorativas são dominadas pelo nacionalismo que emerge através do que então se identificava como Manuelino. Assim, a Quinta da Regaleira integra-se na tradição paisagista nacional, quase depurada dos estrangeirismos que em tempos se exibiram na Pena e Monserrate.

“... o que á dêntro daquéla propriedade nem se concebe nem se dscréve. Com excéção de uma monumental fonte Luís XV, tudo é manuelino. Tôrres, carramachõis, mirantes, pórticos, cavalariças, cocheiras, varandas, abóbodas, muros, cascátas, grútas, aquário, tudo é belo e graciôso, (...) O que sobretudo espantará os nóssos leitôres é que esta óbra colossal, vai ainda em mênos de metáde. Falta a càza e e falta a capéla, que são as principais construçõis.”
Reportagem – Jornal o Século 1904
(ANACLETO, 1997: 334)

Em toda a quinta, obra de extrema erudição e complexidade, é evidente o recurso sistemático a símbolos, que de forma excessiva e obsessiva remetem constantemente do plano artístico para o hermético. Contudo, esta atitude não lhe é exclusiva, revelando-se como mais uma das características que o movimento romântico herdou do Século das Luzes e que transmitiu ao século XX, aqui atingindo uma dimensão de destaque pela coerência, envergadura e complexidade do programa iconológico.

Esta obra é sequente ao romantismo que se inicia em Portugal logo após a revolução de 1820, e que se assumiu de início como literário, gradualmente se afirmou no panorama das restantes artes (ANACLETO, 1997: 7). É ainda posterior às críticas da geração de 70, que alertaram para os excessos então praticados nas diversas artes, para a repetição de fórmulas difundidas como mero recurso estético e até mesmo para a ausência de conteúdo conceptual, as quais encerraram o romantismo pleno nas artes (FRANÇA, 1990: 15).

A ruptura com o passado próximo, a procura de novas formas de acção que passavam pelo republicanismo e pela estética realista e mais uma vez a nostalgia por um passado longínquo, que mantinha o romantismo tardio, eram as duas faces da mesma moeda a da insatisfação de uma classe com um presente que destoava ou pelo menos não se adequava às suas expectativas (ÁVILA GOMES, 2002: 15).

Este romantismo tardio, expressão dessa insatisfação acentuada pela instabilidade política, perdurou até às primeiras décadas do séc. XX, alargando-se através de eventos, como as comemorações camonianas, e ainda por meio de obras revivalistas que recuperaram e reformularam em alguns casos os princípios conceptuais do romantismo português. Princípios que viriam a ser aplicados no Palácio Real do Buçaco, mais tarde hotel, encomendado em 1888 pelo ministro Emídio Navarro e projectado por Luigi Manini.

A compreensão da Quinta da Regaleira, que de forma alguma se enquadra no romantismo pleno, tem vindo a ser objecto de estudo de vários historiadores, nomeadamente de Denise Pereira da Silva. Contudo, persistem muitas dúvidas, que por vezes justificam a sua inclusão num romantismo tardio ou até mesmo a associação aos excessos de um ultra-romantismo, como reacção e estado de espírito nacional. Há ainda outras hipóteses que procuram relevar a possibilidade de esta não se associar na íntegra a um movimento específico, mas ser assumida como mero capricho de um promotor.

Nesta obra tardia e insólita reflectem-se as pretensões de valorização do passado como forma de legitimar a cultura, identificar ou reconhecer a alma nacional. Em simultâneo exacerbam-se arquétipos quase esquecidos, pela imposição sistemática de um programa simbólico passível de múltiplas interpretações, muitas delas de carácter alquímico.

E por fim a Alquimia!

Sem menosprezar as grandes epopeias clássicas, alegorias evidentes ao percurso existencial do Homem, evidencia-se na literatura de setencentos a apologia das Forças Naturais, a procura da Harmonia Cósmica e o Retorno do Homem ao Estado de Graça. O séc. XVIII caracterizou-se pela reinvenção da paisagem na qual o Homem e a Natureza se reuniriam de forma harmoniosa e se expressariam todas as suas essências, antecipando os princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. Parques e jardins, então criados, apresentavam-se como microcosmos saturados, em que coexistiam plantas endémicas e exóticas, cascatas e lagos, templos clássicos e ruínas medievais, torres e pagodes, museus de História Natural, bibliotecas, grutas e criptas egípcias, estátuas e cenotáfios dedicados a figuras virtuosas.

Neste período, em que se demarcam as bases do romantismo, dispensava-se a correspondência directa e imediata entre edifícios, contextos paisagistas, formas e funções: Uma falsa torre medieval ou uma aparente cabana de carvão, enquadrada por uma orla naturalizada ou por um meandro de um rio, poderia acolher uma biblioteca ou uma prisão romana, um salão de festas de decoração rocaille ou um conjunto de grutas terríficas, propícias a iniciações. E porque não um laboratório alquímico?

Em finais do séc. XVIII são múltiplos os exemplos destas construções insólitas, das quais se destaca a Casa dos Cavaleiros Templários em Weimar e a Torre dos Maçons em Louisenlund, estrutura algo confusa à qual se acedia por um pórtico egípcio e que albergava um laboratório nas caves, local de ensaios e práticas alquímicas do príncipe Carlos de Hesse e do Conde de Saint Germain.

Assim, e dada a dispersão temática e a ambiguidade de interpretação de símbolos, muito se pode especular quanto à participação da alquimia na história de parques e jardins de meados de setecentos ao Primeiro Império. Contudo, é possível admitir que a esta fase inicial, em que as referências eufóricas de crentes, de crédulos e até mesmo de burlões, ou pelo menos de personagens dúbias como Cagliostro, foram uma constante na paisagem, sucede um período de maior contenção ou dissimulação simbólica, na qual a alquimia poderia não aflorar de imediato. Admita-se esta nova postura como solução através da qual se tentaria evitar a banalização de linguagens cifradas, a divulgação de conhecimentos e práticas recônditas de determinadas sociedades.

Já lá iam os tempos dos pavilhões temáticos, da iconografia e da botânica de feição esotérica integrados em cenários paisagistas que, por óbvios, quase denunciavam as filiações dos seus promotores ingleses, alemães, franceses e até mesmo russos, entre outros.

No século XIX, a alquimia não dispõe de um carácter eminentemente prático e assume-se mais como recurso de simbolismo relevante (15), muitas vezes camuflado na paisagem. Alguns dos novos programas de oitocentos reflectem esta atitude, destacando-se pela coerência cenográfica desenvolvida em torno dos valores de naturais e de temários restritos entre o que então se associava à demanda do Santo Graal e demais reminiscências medievas, às lendas de algumas ordens de cavalaria e obviamente à filosofia dos alquimistas (16).

É neste contexto mais contido que se integra a Pena, cujos mistérios e incógnitas foram quase desvendados por Richard Strauss, ao identificar no palácio o castelo do Santo Graal e no parque os jardins de Klingsor. Assim, compreende-se que neste parque passem despercebidas muitas das referências simbólicas que foram anteriormente assumidas em Inglaterra, Alemanha, Áustria e França. E que as poucas identificáveis sejam extremamente dúbias e ambíguas, quase irreconhecíveis na paisagem serrana e na planta do Real Parque da Pena de J. A. d’Abreu, datada de 1856.

Se da leitura desta planta pouco se pode inferir como imediato, o mesmo não se diremos de uma observação atenta do local, a qual evidencia resíduos simbólicos isolados ou até mesmo organizados e distribuídos ao longo de percursos.

De uma forma geral pode admitir-se que a temática templária, ou neo-templária, transcende o palácio e invade o parque, marcando a paisagem de forma indelével, tanto pelas novas construções como pela recontextualização das anteriores integradas na cerca hieronimita. Não só o Templo das Colunas, fechado pela Cruz de Cristo, se insere neste programa e remete para práticas legendárias dos Templários. Também a Fonte dos Passarinhos, mais divulgada pela legenda árabe apensa que pelos fundamentos que lhe estarão subjacentes, pode contribuir para a compreensão da obra de D. Fernando (17).

Do programa complexo que presidiu à concepção do parque emergem muitos outros símbolos que, por pouco compreensíveis, podem exacerbar a imaginação de especuladores. Entre estes, destaca-se a Lua (18), dispersa por todo o parque, e ainda algumas referências iconográficas alquímicas, restritas às imediações do palácio, nas quais se inclui a representação de animais fabulosos em torno de um braseiro ardente.

Muitas incógnitas persistem, e de momento apenas se pode inquirir quanto aos propósitos que orientaram a abertura de cavernas nas entranhas da Terra, dissimuladas por blocos ciclópicos à semelhança de túmulos, a construção de lagos insólitos e de bancos em forma de brandão, e que presidiram à respectiva organização sequencial ao longo de pelo menos um percurso ascensional, o qual conduz ao Templo das Colunas (19). Percurso este que permanece envolto por uma densa e estranha floresta, delineada em talhões de monocultura evidente, na qual se descobrem cedros e acácias, possíveis alusões à construção do Templo de Salomão e à lenda de Hirão de Tiro, de apropriação maçónica.

Não se tenha a veleidade de proceder a um reconhecimento exaustivo dos princípios herméticos que presidiram à concepção do Parque da Pena, e que se desvelam pontualmente nas construções e plantações efectuadas pela vasta área. De relance procure-se apenas a explicação para as questões mais emergentes e intrigantes. Nesta perspectiva, reveja-se os estudos desenvolvidos por Helmut Reinhardt, que realçam a influência da Maçonaria na concepção de jardins do século XVIII e compreenda-se a realidade distinta do século seguinte, com as devidas limitações e adaptações.

É importante reconhecer que a concepção e a construção de uma determinada paisagem, parque ou jardim, pode fundamentar-se nos princípios básicos das filiações ou agremiações do seu promotor, nomeadamente da maçonaria. A maçonaria, enquanto sociedade fechada mas não secreta, recorria a formas de reconhecimento que deviam ser só identificadas pelos seus membros, e considerava uma série de provas de acesso ou iniciação e de elevação ou exaltação para eventuais candidatos.

Cada iniciação comportava uma viagem ritual na qual o candidato seria purificado e preparado para um novo conhecimento, do qual participaria após superar as distintas provas de sujeição. O processo iniciático implicava sempre a morte simbólica do adepto, indispensável ao começo de uma vida espiritual mais elevada. Nestas viagens estabeleciam-se afinidades entre a elevação individual do Homem e as distintas fases do processo alquímico, que compreendiam a transmutação do mercúrio em ouro.

Arquétipos remotos inspiraram e fundamentaram descidas não só literárias às profundezas, suportando práticas de purificação ritual nas quais se patentearam impressões por vezes ténues, por vezes indeléveis, de conhecimentos herméticos. Neste contexto, não é difícil compreender que nos processos de iniciação ou exaltação se assumisse a descida real ou figurada a um Mundo Subterrâneo e a posterior passagem por provas simbólicas que completariam o ciclo clássico dos elementos, Terra, Ar, Água e Fogo, sem as quais se interditaria o acesso ao templo do conhecimento e a participação do segredo maçónico.

V.I.T.R.I.O.L
Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem
(Visita o interior da Terra, rectificando encontrarás a Pedra Oculta)

Segundo o Helmut Reinhardt, foi apenas no último quartel do séc. XVIII que os encontros ou reuniões de loja se realizaram preferencialmente em jardins – O jardim foi um meio no qual se realizaram os princípios maçónicos, cuja ética se baseava na educação do Homem através da Natureza, tendo em vista o desenvolvimento de uma sociedade melhor. Estas práticas tinham subjacente a adaptação da paisagem a estes fins, pela criação e contextualização de percursos, pela demarcação de áreas e estruturas específicas, pelas plantações e sobretudo pela agregação de símbolos, muitos deles alquímicos.

A cenografia destes percursos foi sujeita a uma infinidade de variações e combinações que asseguraram tanto as sensações de candidatos e iniciados como dificultaram as interpretações de leigos. Da leitura ou da observação destes testemunhos, paisagens modernas e românticas, sobressai quase sempre a ambivalência simbólica - Nos percursos criados, as soluções artificiosas ocultam ou pelo menos dissimulam o segredo, tão profundo como o dos alquimistas, no qual se perspectivou o enobrecimento da alma, a espiritualização do homem e a explicação cosmogónica da existência.

Num parque ou jardim, a passagem pelo Mundo Subterrâneo assegurava a morte, punição, redenção e o renascimento simbólico para um novo conceito ou estágio de vida. Obstáculos sucessivos como linhas de água, pontes estreitas e fendas entre rochedos, compreendidos como provas, separariam níveis de conhecimento e dificultariam reconhecimento da “Vereda dos Iniciados”. Nestes percursos, o contacto com a Natureza assegurava a impregnação de candidatos com as forças ou eflúvios telúricos, indispensáveis a uma verdadeira ascese iniciática.

A estas constatações, algo esclarecedoras para a compreensão da Pena, acrescem-se indícios da filiação rosa-cruciana de D. Fernando, que frequentava ainda círculos da maçonaria, sendo talvez reconhecido numa das lojas lisboetas (PEREIRA, CARNEIRO, 1990: 15). Assim pode-se inferir quanto às motivações que levaram o rei-consorte ou algum dos seus colaboradores a marcar a paisagem e a delinear caminhos sinuosos e ziguezagueantes pela serra, aparentemente predestinados a iniciação, nos quais cenários e contextos suportaram viagens rituais e dissimularam referências.

Na Pena descobre-se a mensagem das grandes epopeias clássicas, da literatura moralista e das grandes composições paisagistas do Século das Luzes, alegorias evidentes ao percurso existencial do Homem.

Contudo, o mesmo não se constata na Quinta da Regaleira onde, entre excessos construtivos e decorativos, se exibem símbolos e se denunciam esoterismos inúmeros. Longe da racionalidade que presidiu à concepção das Paisagens das Luzes e da sublimidade que orientou a Paisagem Romântica, a Regaleira apresenta-se como caso extravagante, quase isolado em termos de programa iconológico, no qual se misturam e evocam os aspectos míticos e sagrados de Portugal.

Esta composição revela-se inovadora pela introdução das alusões dantescas e pela supremacia atribuída de forma ambígua às referências cristãs, excedendo o tradicional temário que desde o século XVIII aludia a templários, pedreiros-livres e alquimistas. Afigura-se, de igual forma, inovadora na forma de exibir toda uma iconografia complexa, na qual participam símbolos que durante séculos se pautaram cautelosamente por discretos e dissimulados.

Na Regaleira, Augusto Carvalho Monteiro e Manini recorreram à alquimia como paradigma. Tanto edifícios como jardins, dominados por exóticas, revelam esta imaginária que remonta ao período medieval, apelando aos distintos magistérios.

Representações pétreas de Mercúrio ou Hermes Trimegisto, e demais deuses da mitologia clássica, revelam as fases da Obra a conhecedores ou iniciados. Fornos ou Atanores, seres fantásticos ou Ourobouros, Pelicanos e até a Fénix, coexistem no Universo Simbólico da Regaleira, apelando de forma insistente. Em simultâneo, caracóis, tartarugas, salamandras e sapos lavrados na pedra calcária, despertam uma curiosidade quase infantil, dificultando o respectivo reconhecimento como referências sistemáticas aos quatro elementos primários.

Nesta composição, em que todo o programa iconográfico é passível de interpretações alquímicas, estimula-se a observação, a perspicácia e a argúcia na avaliação de símbolos e estabelecem-se jogos de homofonias e outros nos quais a participação é difícil sem recurso a nomenclaturas científicas ou até mesmo designações botânicas (20).

Não se pretende, com a presente abordagem realizar uma análise pormenorizada da simbólica na Quinta da Regaleira, objecto de vários ensaios e publicações, mas apenas compreender a participação da alquimia na composição de uma das mais insólitas paisagens europeias. Na base desta participação está o realce que Denise Pereira da Silva dá “à Arte Gótica, mágica que outrora juntou alquimistas medievais em busca da essência do Universo. Jogo cifrado de sinais e símbolos que só os iniciados nestes magistérios conseguem descodificar” e as pretensões eruditas e de deslumbre financeiro de Augusto Carvalho Monteiro.

Se alguns autores crêem na existência de um percurso iniciático, porventura maçónico-templário com referências rosa-crucianas e alquímicas (uma vez que alguns elementos decorativos poderão remeter para essas correntes filosóficas), na realidade nunca foram encontradas evidências da utilização ritual dos espaços, desconhecendo-se ainda eventuais filiações do “Monteiro dos Milhões”.

A dispersão de percursos, a diversidade de contextos e o apelo excessivo e quase óbvio à alquimia dista das soluções adoptadas em tantas outras obras antecessoras, nas quais se promoveram ambiências adequadas a práticas e cerimoniais recônditos. Assim, talvez só se possa admitir que “em Carvalho Monteiro a cosmogonia concretiza-se, não pela utilização ritual dos espaços, mas pelo ritual que presidiu à sua concepção e construção” (PEREIRA, PEREIRA, ANES, 1999: 40).

Se Bernardo Trevisiano foi um dos alquimistas que mais dinheiro gastou em experiências,
D. Fernando e o “Monteiro dos Milhões” não lhe ficaram atrás, secundando os seus gastos na Obra
.
Comentário dos autores, 2003

Com o desenvolvimento da ciência química, a alquimia foi perdendo o seu “elemento material”, assumindo-se como algo mais incorpóreo, mais ambíguo e simultaneamente mais artístico. Em alternativa procurou o retorno às fontes esotéricas mais antigas (ZALBÍDEA, 1991: 10), pelo que testemunhos literários evidenciam a dúvida na interpretação de símbolos alquímicos e a garantia do sigilo indispensável à manutenção das práticas e ensinamentos. De relance, e na maior parte das obras tardias, pode denotar-se a ambiguidade literária, subentendendo-se analogias entre a gradual ascensão espiritual e a morosa transmutação da Prima Materia em Lapis Philosophorum.

Nas paisagens idealizadas, em que se mistificaria o espaço e o tempo, explorou-se esta correspondência elementar, propiciando-se ambiências e contextos adequados à Peregrinação pela Verdade e à Ascensão Espiritual, afins à receptividade do Segredo da Obra.

Neste contexto, importa destacar o papel de Goethe que, na novela “Die Wahlverwandschafen”, realça a preocupação social pela composição paisagística e assume este recurso metafórico à nomenclatura química, ou melhor alquímica, preservando várias dúvidas no discurso quanto a hermetismos literários. Nesta obra, que antecipa a Pena e a Regaleira, a idealização e a construção de uma paisagem, na qual se expressam desejos e ansiedades tantas vezes referidos, serve de contexto ao desenvolvimento psíquico individual, estereotipando os fundamentos da paisagem romântica.