SÍMBOLOS GEOMÉTRICOS E ALGÉBRICOS NA ARTE:
Almada e Lima de Freitas
RAQUEL GONÇALVES
2. Dei-lhes o belo achado do número
"O Número", por Almada Negreiros

Intitula-se «O Número» um dos cartões para tapeçaria executado por Almada Negreiros (1893-1970) para o Tribunal de Contas em Lisboa. Nele se conjugam, em forma de arte, o mito, a alegoria e o símbolo. O mito, greco-romano, liga-se à criação do mundo e de todos os seres vivos incluindo o homem. Prometeu, o transportador para a Terra do “fogo vital” (que pode ser entendido como a Ciência), é o herói: dei-lhes o belo achado do número. 

No centro encontra-se o símbolo do homem (e do universo), os braços e as pernas afastados em cruz, enquadrado e inscrito num círculo, por seu lado inscrito num segundo quadrado; sempre sobre tela quadriculada. Mas Prometeu não está só. A ele se juntam as figuras dos matemáticos Euclides e Pitágoras e os pensamentos de Ésquilo, do alquimista Raimundo Lúllio e de Piero della Francesca. Piero della Francesca foi o pintor e matemático renascentista que introduziu na pintura a perspectiva geométrica; e escreveu o livro «De quinque corporibus regularibus (Os cinco corpos regulares)». E eles aí estão, os cinco poliedros platónicos, alinhados na vertical direita: o cubo para representar o “elemento” terra, o tetraedro para representar o “elemento” fogo, o octaedro para o ar, o icosaedro para a água e, ainda, o dodecaedro para o Universo.

As figuras geométricas – cerca de 50000! – ganharam desde os tempos mais remotos significação simbólica em todas as religiões e raças do planeta. O círculo, o quadrado e a cruz, o cubo, o tetraedro e o dodecaedro, bem como a pirâmide, a esfera e tantos outros mais são exemplos da gama riquíssima do simbolismo geométrico. A famosa gravura denominada «Melancolia I» foi executada pelo pintor e gravador alemão de origem húngara Albrecht Dürer, no século XVI. Uma esfera e um sólido irregular de grandes proporções fazem pensar o anjo… O anjo, que em profunda interrogação, congregado com o seu envolvente, reproduz um eventual nigredo alquímico.

No canto superior esquerdo encontra-se uma pequena vila junto ao mar, Terra e Água, e o céu (o Ar) resplandece em consequência de um majestoso arco-íris e de um enorme Fogo, sob a forma de um cometa; e vasos alquímicos discretamente colocados por detrás do poliedro…

 

No canto superior direito, Dürer introduziu o quadrado mágico de Júpiter.

Um quadrado mágico é um arranjo de números inteiros, em linhas e em colunas, de tal maneira que os números em cada linha, em cada coluna e em diagonal têm sempre igual soma, a chamada soma mágica. 

Por exemplo:

- na 1ª linha: 16 + 3 + 2 + 13 = 34 
- na 2ª coluna: 3 + 10 + 6 + 15 = 34
- e na diagonal: 16 + 10 + 7 + 1 = 34

O quadrado de Dürer tem ainda a particularidade de, por via simbólica, através do apontar da asa do anjo, indicar a data em que a gravura foi executada: 1514, o conjunto dos quatro algarismos centrais da última linha!

 

"Começar", por Almada Negreiros

Em 1968, Almada Negreiros assina «Começar», o painel do átrio de entrada do edifício principal da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. É uma construção geométrica intrincada, onde linhas rectas e linhas curvas se intercruzam na parede calcária por um processo elaborado e criativo.

Segundo José-Augusto França, o painel pode ser subdividido em quatro leituras. Numa descrição muito rápida, da esquerda para a direita, encontraremos:

- primeiro, a representação do “número de ouro”, através de um pentagrama estrelado inscrito numa circunferência;

- segue-se uma espécie de estrela de dezasseis pontas, apenas parcialmente visível e com aparente movimento giratório, o quatro vezes quatro que alimenta o desenvolvimento do homem e do universo, utilizado na suástica de errada interpretação nazi;

- a terceira parte é de novo uma estrela pitagórica de cinco pontas, a estrela flamejante com o seu centro místico bem delineado e as pontas irradiando a luz;

- finalmente, a quarta e última leitura, porventura a mais interessante e rica, refere-se à tentativa do traçado do Ponto de Bauhütte:

Um ponto que está no círculo

E que se põe no quadrado e no triângulo.

Conheces o ponto? tudo vai bem.

Não o conheces? tudo está perdido.

Este segredo da arquitectura (na Catedral de Estrasburgo, por exemplo) e da pintura clássica foi imagem obsessiva para Almada que neste painel iniciou tentativamente o seu cálculo geométrico (e daí provavelmente o nome do próprio painel: «Começar»)(1). 

O traçado geométrico deste ponto simbólico vai encontrar a sua plenitude em Lima de Freitas.

Lima de Freitas, no seu percurso pré-iniciático, estabeleceu contacto com Almada Negreiros. Também em discurso directo:

(...) foram horas de conversa mas só ele (Almada) falou, com aqueles seus olhos enormes, que pareciam dois holofotes trespassando-me.

Os temas principais que uniram estes Mestres foram o número e o seu significado e a geometria (sagrada) e o seu significado. Pitagóricos, que ambos o eram ou se tornaram na conquista da tranquilidade, usaram a cor, o traço, o desenho e a pintura - a literatura, também - e a linha, o ângulo, a superfície e o sólido; e o alfabeto precioso da numerologia.

- Explique-me a razão nove sobre dez - inquiriu Lima de Freitas;

- E a importância do triângulo... – inquiriu ainda.

Almada Negreiros explicou e Lima de Freitas nada entendeu. Nada!, o que foi muitíssimo. Anos após, lido o livro ao contrário, usando uma lógica que não é a Lógica, o "novo" Mestre ultrapassava o "velho" Mestre e encontrava o traçado correcto do Ponto de Bauhütte, a fracção (ou razão) 9/10, chave alquímica do Conhecimento. 

 
 
(1) Almada Negreiros faleceu em 1970, sem ter explorado o seu traçado na sua total profundidade.
 
II Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999).
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Discursos e Práticas Alquímicas". Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. hugin@esoterica.pt
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