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A PEDRA DE COBRE
A CIÊNCIA E OS SEUS OBJECTOS
Algumas questões suscitadas por um bloco de cobre
que pertence à História da Ciência portuguesa
Isabel Serra
 
2. OBJECTOS CIENTÍFICOS
 na actualidade e no século XVIII 
 

Para responder à pergunta atrás formulada, (é o Bloco de Cobre um objecto científico?) talvez seja interessante começar por reparar nas diferenças entre objectos científicos no séc. XVIII e actualmente. 

Nos tempos actuais, contrariamente ao que acontecia no séc.XVIII, a descoberta de novos animais, vegetais ou minerais parece não constituir facto interessante. São raras as notícias de descoberta de novas espécies e, em geral, dizem respeito a bactérias ou outros microrganismos. Mesmo sendo importantes, falta-lhes visibilidade e, além do mais são apenas mais um nome a acrescentar a uma interminável lista. Mesmo que mude alguma coisa, a descoberta de novos seres vivos parece não ser capaz de "revolucionar" a ciência, para usarmos um termo Kuhniano. A eventualidade da existência, presente ou passada, de animais ou plantas desconhecidos, parece servir apenas para preencher lacunas nas taxinomias estabelecidas, ou alterar as já existentes, confirmar ou infirmar aspectos particulares da teoria da evolução. 

No que diz respeito ao reino mineral, a descoberta de jazidas de minérios é feita com base em dados dos satélites, a sua exploração e tratamento utiliza métodos perfeitamente estudados e controlados, aparecendo, aos leigos, apenas como um processo rotineiro, sem nada de excitante. 

Resumindo, já não há Blocos de Cobre, cuja existência seja relatada em vários documentos, cuja presença em determinados locais, espicace a curiosidade de cientistas ou leigos. Por isso quando a Estela interroga os cientistas parece haver uma certa indiferença. Um cientista, actualmente, parece não ter interesse por objectos desses, os blocos de cobre não são objectos científicos, objectos de investigação do ponto de vista químico ou mineralógico. 

Então onde estão as descobertas actuais, capazes de entusiasmar o cientista e também o homem da rua? 

Relativamente ao século XVIII há uma mudança radical da "paisagem" onde o homem se movimenta. Durante séculos os objectos "naturais" tiveram como únicos "concorrentes" materiais os objectos artísticos, ou os utensílios artesanais. Actualmente estamos rodeados de objectos tecnológicos que resultam da aplicação de princípios, ou de descobertas científicas. Nesse sentido a ciência faz parte do nosso quotidiano, onde chega "pela mão da tecnologia". Há de facto ciência pura incorporada nos objectos utilizados a cada instante na nossa sociedade. Para dar um único, mas paradigmático exemplo, o conhecimento das propriedades dos semi-condutores presentes em inúmeros aparelhos de uso diário, assenta na mecânica quântica. Ora esta área da física é uma dos domínios mais "teóricos" da disciplina, no sentido em que o seu estudo recorre a sofisticados métodos matemáticos, alguns deles expressamente desenvolvidos para dar resposta às questões físicas suscitadas.

Embora a ligação entre ciência e tecnologia nos pareça longínqua e, nalguns casos, o seja de facto, ela não deixa de ser muito forte. Os cientistas, mesmo os da ciência mais pura e desinteressada, trabalham de facto com o fim de compreender os fenómenos naturais, e dessa compreensão dos efeitos naturais resultam, mais cedo ou mais tarde, objectos onde o efeito é utilizado, é revertido a favor das aplicações, da fabricação de "objectos tecnológicos". Esses objectos são frequentemente motivação e incentivo para novas investigações, aperfeiçoamentos e descobertas, ou seja, tornam-se objectos da ciência, porque objectos de investigação. Podemos dizer que existe uma cadeia na ciência, que começa natureza tal como ela existe (embora seja necessário definir o que isso é) e que se prolonga por várias gerações de objectos artificiais, sendo cada uma dessas gerações, o resultado do estudo e da investigação dos objectos da geração anterior. Por vezes a investigação científica parece-nos muito afastada da realidade porque ela ocupa-se de objectos da n ésima geração cuja relação com a natureza é extremamente longínqua.

No século XVIII a situação era bem diferente. Estava-se ainda longe do momento em que a ciência começa a criar os seus próprios objectos e era difícil analisar e conhecer os objectos naturais. A exploração do globo terreste, em especial dos novos continentes, propiciava um novo universo para a ciência desses tempos, vocacionada para o estudo do "natural". Claro que, fossem ou não cientistas, os exploradores procuravam objectos não apenas científicos, mas também susceptíveis de fornecer alguma espécie de lucro ou de prestígio. A exploração de terras, tão luxuriantes como o Brasil deve ter criado enormes expectativas, e não só do ponto de vista económico. Para além de fonte de minérios preciosos, esperava-se certamente que fosse lugar de origem de objectos extraordinários, que pudessem ser considerados e exibidos como símbolos do novo mundo e, simultâneamente, símbolos da nova ciência. 

Há uma enorme distância a separar a ciência do séc. XVIII da que é actualmente praticada. Essa distância pode ser caracterizada, por exemplo, através do número e da sofisticação dos objectos tecnológicos das duas épocas. No entanto, no séc. XVIII atravessava-se já uma fase avançada da revolução renascentista, estava-se em plena época do determinismo científico. A atitude do cientista desse tempo tem, em comum com a do cientista actual, a segurança de saber que a ciência "tudo pode explicar". Essa crença atinge o seu auge com o determinismo, bem evidenciado no pensamento de Laplace, e é responsável pelo poder imputado à ciência e a quem a controla.

O poder atribuído ao cientista de tudo compreender e interpretar, tem origem na própria natureza que, sendo ordenada, contém em si leis que o homem, o cientista, se encarrega de descobrir, de clarificar. Por isso parecia tão espantoso que um bloco de cobre aparecesse num sítio onde não há outros sinais da existência do metal. A natureza é considerada ordenada, produtora de manifestações coerentes entre si, de sinais regulares. Cabe ao homem de ciência interpretar esses sinais, inferir as leis que regulam os fenómenos, inventar a matemática com a qual, no dizer de Galileu, a natureza se exprime. 

Afirma Rober Lenoble em "História da Ideia deNatureza", que "foram necessários ao homem séculos de trabalho e de coragem intelectual para passar de definição de natureza por naturalmente e de naturalmente por natureza, isto é, da impressão de uma necessidade contra a qual somos impotentes, para a afirmação audaciosa de que a natureza forma um conjunto, de que as próprias coisas se encontram submetidas a uma lei. A conclusão surge de maneira menos imediata: bastar-nos-á conhecer estas leis para nos situarmos a nós mesmos no nosso lugar neste conjunto, para entrar nele e não nos deixarmos mais dominar por ele e isso será uma primeira conquista. Depois, dir-se-á um dia: se conhecemos as leis, podemos, pois, servir-nos das coisas e tornar-nos "donos e senhores da natureza", e isso será uma segunda fase.

(Robert Lenoble, História da Ideia de Natureza, Edições 70, 1990, págs 184/185). 

Segundo Lenoble, a primeira fase foi atingida no séc V A.C., na Grécia de Platão e Aristóteles. De acordo com o mesmo autor, a segunda fase, que terá como objectivo não apenas compreender, mas também dominar a natureza, será um projecto da ciência do Renascimento.

 
 
Discursos e Práticas Alquímicas. Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. Online no TriploV.