VIAGENS NA CIMBEBÁSIA / O RIO CUNENE PADRE CHARLES DUPARQUET 28-07-2003 www.triplov.com |
Esta tarde sobreveio um lamentável incidente. Dois caçadores, um Europeu e um Hotentote, tinham partido sózinhos na direcção de leste, isto é para os lados do Cuanhama. Tendo-se internado um pouco na floresta, encontraram-se subitamente em presença duma centena de rapazes Ovampos, que pareciam andar à cata de aventuras e de qualquer oportunidade de pilhagem. Os caçadores desceram dos cavalos e foram ao seu encontro, dizendo-lhes que pertenciam ao Caruapa (nome dado pelos indígenas ao snr. Erickson). Mas os Ovampos afirmavam que isso não era verdade e que se tratava evidentemente de Boers, gente que eles consideravam como os seus maiores inimigos; e, dizendo isto, agarraram a espingarda do branco e preparavam-se para fazer o mesmo à do Hotentote. Mas este saltou para cima do cavalo, apontando-lhes a espingarda, e obrigou-os a porem-se em fuga, sem poder contudo recuperar a outra espingarda. Regressando ao acampamento a toda a brida, os dois caçadores contaram a sua aventura e, ao saber-se dum tal desaire, foi grande a indignação geral. Deixar uma espingarda nas mãos dos indígenas em tais circunstâncias, feria profundamente o amor próprio dos caçadores ; e foi imediatamente decidido ir em perseguição dos agressores para rehaver a arma, custasse o que custasse. Mas quem eram esses agressores ? Ombalandos, Cuambis ou Ombandja? Eis o que era difícil de conjecturar. Os enviados do rei da Ombandja afirmavam que os ladrões não pertenciam à sua tribo. Estes tinham fugido na direcção do Cuanhama e as minhas suspeitas dirigiam-se para esse lado, pois que, quando no ano anterior me achava junto do rei Quipandeca, tinha visto partir um bom número destas expedições, de diferentes pontos, para praticarem extorsões e roubos. Fosse como fosse, dentro de instantes, o snr. Erickson, acompanhado por uma dúzia de cavaleiros, lançava-se a toda a velocidade em perseguição dos malfeitores, muito resolvido a rehaver a espingarda e a castigar severamente o bando no caso de se recusarem a entregá-la. No acampamento, no receio de qualquer ataque ou traição durante a escuridão da noite, reuniram-se todos os carros de maneira a tornar mais fácil a defesa; e dispusémo-nos a montar a guarda cada um por sua vez. À noite, regressou o snr. Erickson sem ter conseguido apanhar os gatunos, apesar de ter prolongado por vinte milhas a sua perseguição. As trevas impediram-no de ir mais longe, mas deixou o seu criado Ovampo, Ita, com dois Ombandjas e dois Cuambis, para seguirem, ao romper do dia, o rasto dos ladrões até à sua tribo. Dois Cuambis que acompanhavam a caravana, receosos do que poderia resultar de tão grave acontecimento, partiram a toda a pressa para irem avisar o rei Nihombo. Sábado, 9 de Julho - Deixámos Omatúzia esta manhã, às sete horas e, depois de três horas e meia de marcha, chegámos ao primeiro povoado da Ombandja, onde havia água em abundância. Almoçámos aí e puzémo-nos de novo a caminho às duas horas da tarde, seguindo sempre a mesma omaramba. As suas margens estão cobertas de hortas e de lavras; por toda a parte há florestas de árvores de fruto, como no Cuanhama. Ao fim de três horas de marcha, parámos junto duma granja. Antes de anoitecer tive ainda tempo de visitar as lavras. Há melões cafres em tão grande quantidade, que os reuniram, aqui e ali, aos montes. Estes melões são enormes e têm uma polpa rija e amarelada, podendo conservar-se durante muito tempo. Cozem-nos em pouca água, obtendo desta forma uma espécie de compota um pouco açucarada e muito agradável. Quiz comprar um destes frutos, mas o enviado do rei da Ombandja disse-me que eles eram tão comuns e em tão grande abundância, que poderia levar alguns, sem que isso fosse indelicadeza. Todavia insisti em dar por eles, ao dono da lavra, uma porção de tabaco. Domingo, 10 de Julho - Partimos às sete da manhã, seguindo sempre a omaramba, cercada por lavras cada vez mais numerosas. E finalmente chegámos em frente dum grande cercado, duplamente fortificado por um fosso cheio de água e por altas paliçadas, flanqueadas aqui e além por uma espécie de torreões, destinados a proteger os seus defensores. Estávamos em frente da residência do rei Iquera. Os vagões pararam diante da porta, a meio da omaramba, e logo nos cercou um grande número de pessoas e as mulheres do rei nos vieram oferecer grandes sacos de feijão de presente. Neste momento apresentou-se Ita, o criado Ovampo, intérprete do snr. Erickson. Declara que seguiu o rasto dos ladrões até ao Cuanhama, mas que não teve ânimo de penetrar sozinho na povoação nem de reclamar a espingarda. Então o snr. Erickson jura que ou o rei Quipandeca restitui a espingarda ou ele lhe declarará guerra. Entretanto Iquera manda-nos chamar ao palácio. Vou imediatamente ter com ele em companhia do snr. Erickson e digo-lhe que hoje venho apenas para lhe apresentar os meus cumprimentos, reservando-me para conversar com ele ulteriormente e mais de espaço. Este bom rei pode ter entre 45 e 50 anos e tem uma fisionomia franca, aberta e jovial. Depressa nos sentimos à vontade na sua presença. Tem também um ar benevolente e afectuoso para com os seus vassalos, que estão longe de tremer na sua presença como acontece com os de Nihombo e de Quipandeca. O óleo, misturado, com tinta vermelha, escorre com tal abundância pelo corpo de Sua Mjajestade, que se torna impossível apertar-lhe a mão e, para salvaguardar o nosso fato, temos de avançar com precaução. Mas o bom rei compreende isto perfeitamente e, quando vamos a aproximar-nos, é ele próprio que nos adverte do perigo, mostrando as suas mãos. Todo o pessoal do palácio escorre igualmente gordura; é evidentemente dia de grande cerimónia. Servem-nos cerveja em abundância e depois enfiamos de novo pelo costumado labirinto de corredores para regressar aos nossos vagões. Acompanham-nos grandes vasilhas de cerveja, que, com a carne de avestruz, nos proporciona um excelente almoço. Não tardou Iquera, com os seus cinco filhos, a vir pagar-nos a visita. O snr. Erickson presenteia-o com um belo cavalo e com um colar de cobre doirado ; e o snr. Vanzyl oferece-lhe alguns braceletes. O snr. Erickson começa então a empalhar aves e o rei senta-se a seu lado, manifestando-lhe a seguir o desejo de ter junto de si um missionário. Gostaria que eu ficasse para instruir os seus filhos, oferecendo-me mesmo para me pagar esse bom serviço. O snr. Erickson manda-me chamar e expõe-me a pretensão do rei. Respondo-lhe que seria para mim uma grande honra, mas que não desejo outra recompensa pelo meu trabalho senão a de lhe ser útil; acrescento que poderia ensinar aos seus filhos uma língua europeia, quer o inglês quer o português, o que lhes facilitaria as relações com as colónias europeias. O rei disse-me que preferiria a primeira língua, pois tem uma opinião mais favorável dos Ingleses que dos Portugueses. Pede mesmo que fique já, desistindo da minha viagem ao rio Cunene. Digo-lhe que isso é impossível este ano, pois não estou em condições de construir imediatamente uma casa, mas que voltarei com um carpinteiro logo que isso me seja possível. Acrescento que, por agora, tenho de ir até ao rio para o explorar com o snr .Erickson, mas que, no regresso, demorarei algum tempo junto dele, para assentarmos no local da casa. Iquera disse-nos que bastava um dia apenas para chegarmos ao rio, dando-nos depois uma infinidade de esclarecimentos sobre os sítios onde pode encontrar-se caça. Este monarca é seguramente o melhor e mais bondoso rei de quantos encontrei em África. Segunda-feira, 11 de Julho - De manhã, dirijo-me à residência do rei para lhe oferecer os meus presentes. São muito modestos e compõem-se de uma caixa de pólvora, duas barras de chumbo, duas caixas de invólucros, quatro libras de contas e alguns bocados de tabaco. Iquera recebeu-me com grande cordialidade e mandou-me servir cerveja. Entretanto chegaram os snrs. Erickson e Jordan, que vêm convidar o rei para uma corrida de cavalos. Saímos todos do palácio para assistir a esse divertimento, depois do que o rei me mandou oferecer um boi de presente. Recuso-o porém, dizendo-lhe que uma cabra e um porco chegam bem para a minha mesa. Insiste de novo para que me fixe junto da sua tribo ; respondo-lhe que é minha intenção ir somente até ao rio e voltar em seguida. Mas ele receia que eu não volte. - O meu coração, diz-me ele, está convosco e tenho empenho em que fiqueis para apreciar as minhas disposições e as do meu povo. Dar-vos-ei o terreno que quiserdes escolher no meu reino e em seguida regressareis a Omaruru, voltando depois para construirdes onde melhor vos aprouver. Nada consegue fazê-lo desistir do seu desejo de me conservar aqui. E não sei verdadeiramente como poderei continuar a minha viagem até ao rio. Terça-feira, 13 de Julho - Esta manhã saio a passear e dou volta ao palácio. Está muito bem fortificado e encerra, no interior, vastas hortas e reservatórios de água cheios de peixes. Ponho-me em seguida a explorar as cercanias à procura dum lugar favorável para a Missão. O snr. Erickson tomou a peito rehaver a espingarda roubada e parte para o Cuanhama, a fim de a reclamar junto do Quipandeca. Os seus companheiros devem ir amanhã de manhã caçar não longe do rio. Quanto a mim, ficarei sozinho junto do rei, para me ocupar da escolha dum local, até ao regresso do snr. Erickson Terça-feira ( ? ) , 14 de Julho - Lamentável contratempo. Morreu um cavalo, durante a noite, junto do meu vagão. Fiquei muito aborrecido, visto que o cadáver ia incomodar-me durante alguns dias. Mas depressa me vi liberto dessa preocupação, porque à chegada dos indígenas, estes de combinação com os nossos Bushmen e Berg-Dâmara, devoraram-no até ao último pedaço. Custou-me a salvar alguns bocados para os nossos cães. Iquera veio visitar-me e eu pedi-lhe então um local que ontem chamou a minha atenção. Fica a vinte minutos daqui, com um bom terreno, belas árvores e uma linda lagoa. O rei fez-me logo notar que esse lugar não me convinha, visto que a lagoa seca por completo durante o verão e que, sendo o seu solo argiloso e impermeável, é impossível abrir ali qualquer poço. Manda a seguir aproximar o meu vagão para junto da sua morada, dá-me um vasto estábulo para recolher os bois e faculta-me o uso das suas hortas para eu passear e rezar o meu breviário Quinta-feira, 15 de Julho - Fiz hoje largas excursões em todas as direcções à procura de um lugar favorável. Por fim descobri um belíssimo terreno, junto duma vasta lagoa, muito profunda e inesgotável, sombreada por grandes árvores seculares. A paisagem é encantadora. Muito perto há uma floresta de solo avermelhado e fértil, suficientemente elevada acima da omaramba, para ficar ao abrigo das inundações; este terreno fica apenas a 20 minutos do palácio real. Pela tarde chegam três emissários do rei do Cuambi, anunciando que Nihombo descobriu o ladrão da espingarda: pertence ao Cuanhama e chama-se Nacuahongo. Escrevo imediatamente ao snr. Erickson, enviando-lhe esta informação. Sexta-feira, 16 de Julho - Continuo nas minhas explorações para a escolha dum terreno. O rei envia-me cerveja e carne e passa quase todo o dia junto do meu vagão. Sábado, 17 de Julho - Aproveito os conhecimentos geográficos do rei e dos indígenas para obter algumas informações. Eles chamam aos Portugueses Oindéle, aos Ingleses Ovimburu, a Moçâmedes Mbaca ; Ondongona é realmente uma tribo cimbebásica, que fala a língua dâmara ; a tribo Evare não fica distante, mas está longe de igualar a da Ombandja ou do Ochico. O rei fala-me também na tribo Ochico, mas não me é possível determinar onde fica situada. Anuncio ao rei que estou definitivamente resolvido quanto à escolha do local e peço-lhe o terreno que circunda as grandes nascentes de Ovars; concede-mo imediatamente, exprimindo todavia o seu pesar por me ver instalar assim do outro lado da omaramba. «Quando a omaramba estiver cheia de água, diz ele, como poderemos visitar-nos um ao outro?» Tranquilizo-o dizendo-lhe que a omaramba é pouco profunda e que a minha intenção é construir uma calçada que ligue a Missão à sua habitação. Faço-lhe observar também que a sua habitação está na direcção do vento da omaramba, o que pode torná-la insalubre, enquanto que na margem oposta eu não ficarei exposto ao vento vindo de qualquer ponto pantanoso. E Iquera cede às minhas razões. Segunda-feira, 19 de Julho - Vou esta manhã tomar posse do terreno que o rei me concedeu e começo a limpá-lo. Iquera enviou-me três homens para me ajudarem nesse trabalho. Associo-lhes Inani e três Berg-Dâmaras que tomei ao meu serviço e conseguimos desbravar um bom bocado do lado da manhã; mas à tarde, quando quero voltar ao trabalho, Inani declara-me que isso é contra os usos do país, onde só se trabalha da parte da manhã. Terça-feira, 20 de Julho - À tarde chega o snr. Erickson, com dois outros vagões: o de seu irmão Alberto, vindo do rio Cubango, e o do snr. Dufour. Quanto à famosa espingarda, tinha-a recebido logo à sua entrada no Cuanhama. Quipandeca, com efeito, tendo notícia da sua chegada, tinha-se apressado a mandar alguém ao seu encontro restituir-lhe o objecto roubado, mas, sem a sua decisão, nunca a espingarda lhe teria sido restituída, pois o Quipandeca tinha já comprado ao snr. Dufour os cartuchos necessários para a utilizar. Estes senhores tinham levado vinte horas para chegar, em linha recta, da residência do Quipandeca à Ombandja, tendo deixado à sua direita e por consequência para o norte do seu caminho, o reino da Ombandja Pequena. Fiquei muito satisfeito por tornar a ver este pobre snr. Dufour, que tinha combinado encontrar-se comigo na margem do Cunene e que acabava de sofrer grandes aborrecimentos com o rei Quipandeca. Este potentado, a princípio, fez-lhe bom acolhimento ; depois propôs-lhe fazerem negócio, mas só tinha gado para vender, e este de forma alguma convinha ao snr. Dufour, que só queria marfim ou penas de avestruz. Quipandeca pretendia não possuir nenhum destes artigos e então o snr. Dufour declarou-lhe que não compraria nem uma única cabeça de gado. Em vista disso o rei disse-lhe que, se assim era, já nada tinha a fazer ali e devia deixar o seu território. «Eu não vim aqui para negociar, replicou-lhe o snr. Dufour, mas sim para visitar o país e só o deixarei quando me aprouver e não duma forma assim expeditiva». Quipandeca proibiu-lhe então o uso da água e do fogo e mandou a sua gente ao vagão apagar o fogo e deitar fora toda a água que lá houvesse nos barris. Depois tiraram-lhe os bois e os cavalos. E então o pessoal, aterrado, pôs-se em fuga, deixando o snr. Dufour sozinho no seu vagão. Mesmo assim resolveu aguentar-se e declarou que mais depressa o rei o faria morrer naquele sítio do que o obrigaria a partir. Viveu assim abandonado durante três dias, da forma mais precária, até que a notícia da próxima chegada de muitos vagões, que houve conhecimento de estarem a caminho, veio mudar de repente a sua situação e tornar o rei mais tratável. Quando o snr. Erickson chegou, já ele lhe tinha restituido os cavalos e todo o seu pessoal e se havia reconciliado com ele. O snr. Dufour resolveu então juntar-se à expedição e foi por isso que eu pude tornar a vê-lo na Ombandja. Disse-me que tinha visitado, na Dâmara, a famosa fonte de Ochicoto, que é um autêntico prodígio. Encontra-se situada nas montanhas de pedra calcárea, perto de Otavi, e é enorme e duma profundidade incomensurável. Está cheia de peixes e mantém sempre o mesmo nível. É provável que se estenda por debaixo da terra através das rochas calcáreas até a distâncias enormes. Tinha visitado também as minas de cobre de Otavi, que são duma riqueza extraordinária. Quarta-feira, 21 de Julho - O snr. Dufour calculou a altura da Ombandja acima do nível do mar, tendo encontrado 3.850 pés, o que indica ser a Ombandja um dos pontos mais elevados do Ovampo. Veio também visitar o local da missão e, com a sua bússola, deu-me a orientação exacta com vista à disposição das futuras construções. À uma hora e meia da tarde pusémo-nos a caminho para nos reunirmos aos caçadores no seu acampamento, não longe do rio, junto da tribo dos Ondongona. Marchámos durante três horas e meia e detivémo-nos no meio das plantações, onde passamos a noite. Quinta-feira, 22 de Julho - Retomamos a marcha logo de manhã, tomando o caminho da Ondonga e abandonando-o depois para nos dirigirmos ao acampamento dos caçadores, em Omuparara, onde chegámos ao fim de quatro horas de marcha. Omuparara é uma bela clareira no meio de florestas, com água em abundância. Este local depende ainda da Ombandja. Os caçadores tinham matado cinco avestruzes, duas girafas, hartebeest, etc.. Foram até ao Cunene, que fica muito próximo e cujas margens não estão inundadas. O Humbe, para nordeste, também não fica longe. E um grupo de Boers está acampado a três léguas daqui, nas margens do rio a caçar hipopótamos. Esta última notícia causa certas apreensões ao snr. Erickson. O ano passado os Boers infligiram, com efeito, um castigo terrível à tribo dos Humbes, provocado por um ataque destes. Depois dessa guerra, os indígenas vivem no constante receio da volta dos seus inimigos, cuja vingança, pensam eles, talvez não ficasse completamente satisfeita. Ora, como os Boers acabavam de chegar às margens do rio, a nossa chegada coincidia com a sua e acampámos perto uns dos outros. Possivelmente os indígenas iam confundir-nos com os seus inimigos, tomando-nos por uma expedição militar. E daí muitas complicações e dificuldades eram de recear. Resolvemos por isso escrever uma carta aos portugueses do Humbe, para Ihes dizer que nada tínhamos de comum com os Boers, vindo unicamente para caçar com intenções absolutamente pacíficas, e que tencionávamos seguir no dia imediato para as margens do rio, onde por muito felizes nos daríamos se recebêssemos a sua visita. Dimozito, filho do rei da Ombandja, encarregou-se de fazer chegar a carta ao seu destino. Como todo o material e pessoal da expedição se encontravam nesse momento reunidos em Omuparara, fez-se o seu inventário, que deu os seguintes números: europeus, 17; indígenas, 89; vagões 11; carros, 3; viaturas de duas rodas, 3 ; cavalos, 52 ; bois de tracção, 216; bois-cavalos, 9; vacas leiteiras, 20; cabras, 40; cães, 19. Sexta-feira, 23 de Julho - Logo que os Boers souberam da minha chegada a Omuparara, apressaram-se a enviar-me dois emissários, os snrs. Prinsloo e Osthuisen, para me visitarem. E são estes veneráveis velhos, que me dão notícias dos emigrantes. Foram muito experimentados pelas febres durante a última estação das chuvas, estando resolvidos a abandonar o Caóco. Forneci-lhes novas informações sobre a Huíla e incitei-os vivamente a aceitarem este território, que o governo português lhes oferece. Vieram de Otavi, no Caóco (que não deve confundir-se com o Otavi da Dâmara, onde ficam as minas de cobre), atravessando a tribo dos Vahinga. Estão pouco mais ou menos entre Vahinga e o Humbe, localidades distantes cerca de doze horas uma da outra. O mensageiro encarregado de levar a carta aos Portugueses, voltou nessa mesma tarde, com ela. Assustara-se com o encargo e nem ousou atravessar o rio. Sábado, 24 de Julho - Partimos muito cedo para o Humbe. Como nos dias precedentes, fomos obrigados a abrir caminho através da floresta. Cada vagão tem de fornecer para esse trabalho um homem com um machado. Os trabalhadores marcham à frente, com os guias e abatem as árvores com uma tal rapidez, que os nossos vagões raramente têm de parar. Dirigimo-nos para nordeste, atravessando alternadamente bosques e omarambas. Depois de oito horas de marcha, chegámos pela tarde a Quilavi, nas margens do Cunene. Instalámos os nossos carros no alto dum cliff1 cortado perpendicularmente sobre a margem do rio, que fica aos nossos pés. Este cliff pode ter uns 20 metros de altura e o rio cem metros de largura. Avista-se nas suas águas um grande número de crocodilos e, a partir desta mesma noite, os pobres anfíbios vão passar a ter uma existência bastante perturbada. Mal deitam o nariz de fora da água, tornam-se imediatamente alvo dos caçadores, que lhes enviam uma bala à cabeça. O animal ferido chicoteia primeiro a água violentamente com a cauda e desaparece em seguida no fundo do rio, para aí morrer em breve. Na margem oposta aparecem alguns indígenas. Dimozito chama-os ; mas é impossível fazê-Ios aproximar, pois estão evidentemente assustados. Domingo, 25 de Julho - Festa de S. Tiago. - É hoje a grande festa do patrono da missão do Congo, que começa na margem oposta do rio. Mas o meu pensamento voa mais longe ainda, até às margens desse rio Zaire, que lembro sempre saudosamente. Que diferença entre o Cunene, que, quando muito, poderá igualar o Sena, e esse gigante dos rios de África, duma largura que a vista não pode abranger e duma fundura quase incomensurável! Ali se acham os meus confrades, junto das grandes cataratas, esperando o feliz momento em que lhes seja dado atingirem Stanley-Pool e o belo vale do Casai (Cassai), onde irão recomeçar a obra interrompida dos padres Capuchinhos, seus admiráveis precursores. Que futuro espera esse rio do Congo, enquanto este pobre Cunene nunca chegará a ver sem dúvida, nas suas margens silenciosas, mais do que alguns ornitologistas, que aqui virão aumentar as suas colecções de aves aquáticas. Durante o dia foi impossível comunicar com os indígenas. Nem um só português aparece também. O snr. Anderson e o jovem Vanzyl metem os seus cavalos ao rio, atravessando-o a nado, mas mal põem pé na margem oposta, todos os indígenas se lançam na fuga com um pavor manifesto. Julgando imprudente avançar pela terra dentro, os nossos companheiros tornam a atravessar o Cunene. Entretanto, Dimozito dirige-se à residência do rei com a nossa carta. Por fim, à tarde, já à boca da noite, o rei manda-nos uma numerosa embaixada. Esta é portadora da nossa carta, dizendo-nos que o seu chefe não sabe ler e não pode assim compreendê-la. Manda-nos dizer que terá muita satisfação em nos receber, se vimos somente à caça e não para o matar. Estes indígenas de Humbe têm, evidentemente, uma grande afinidade com os Cimbebas. Têm os mesmos traços, usam o mesmo vestuário e os nossos Hereros compreendem-nos muito bem. 1. Rochedo escarpado ao longo das margens do rio. |