VIAGENS NA CIMBEBÁSIA / O RIO CUNENE
PADRE CHARLES DUPARQUET
28-07-2003 www.triplov.com
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acampam_bushman

Acampamento bushman

Sábado, 3 de Julho - Logo de manhã, o rei envia-me de presente dois bezerros. O snr. Erickson fez-me notar que não estavam suficientemente gordos para matar e que, se os juntássemos com o nosso gado, poderiam comunicar-lhe a doença dos pulmões, vulgar no Ovampo. Foi, pois, necessário recusar o presente; mas, para não magoar o rei disse-lhe que, sendo sòsinho, me é impossível comer os dois bois e que um simples cabrito com alguns sacos de feijão me seriam muito mais agradáveis. O rei não deu mostras de se ofender e chamou-me imediatamente à sua residência com o snr. Erickson. Trouxeram-nos cerveja, que bebemos enquanto esperávamos Nihombo. Este não tardou a aparecer ; fui ao seu encontro, apertei-lhe a mão e sentámo-nos. O snr. Erickson, disse-Ihe então :

- Mandaste-nos chamar; aqui estamos.

- Quando, perguntou-me o rei, tens intenção de construir a tua casa ? Estou pronto a indicar-te o lugar que destino à missão.

- Nihombo, disse-lhe, eu não pensei ainda na construção da casa visto que tu me não deste permissão de viver aqui.

- Visto que eu te dou um terreno, respondeu ele, concedo-te assim ao mesmo tempo o direito de estabeleceres aqui uma estação de missionários.

O snr. Erickson que, como disse, estava fortemente indisposto contra o rei, aconselha-me insistentemente a não aceitar este oferecimento Sinto-me altamente embaraçado; nem queria descontentar Erickson nem rejeitar o oferecimento que acabava de me ser feito. Tiro-me desta posição difícil um pouco à moda dos Normandos, sem recusar mas sem tomar também qualquer compromisso.

- Agradeço o favor que acabais de conceder-me, disse ao rei, mas tenho de partir com a expedição que segue para o rio Cunene ; dentro de dias, voltarei sòsinho e podereis então indicar-me o terreno que me é destinado.

Depois disto, serviram-nos novamente cerveja e retirámo-nos.

Ao voltar, encontrei junto do meu vagão um belo rebanho de cabras e um emissário do rei que me disse que escolhesse a que mais me conviesse. Em seguida trouxeram-me uma grande quantidade de feijão. Enchi um saco e os meus criados aproveitaram também para fazer a sua provisão. Como se dizia que grassava uma epizootia na região, apressámo-nos a deixar o Cuambi e a partida foi fixada para a uma hora da tarde. Aproveitando as poucas horas que me restavam, vou visitar o palácio de Nihuma, o predecessor de Nihombo. Este rei Nihuma foi o primeiro a receber os Europeus, que gostava de atrair ao seu território, mas que nem sempre tiveram razão para felicitar-se por esse motivo. O snr. Palgrave, que conheceu Nihuma, assegurou-me que este se lhe tinha gabado um dia de ter mandado matar um português e de o ter roubado. Junto dele tinham-se estabelecido alguns missionários finlandeses que se haviam esforçado por lhe inculcar o dogma da ressurreição dos mortos. Tendo morrido um seu irmão, mandou chamar os missionários e disse-lhes :

- Ensinastes-me sempre que, na vossa religião, os homens devem ressuscitar depois da morte. Aqui está o meu irmão, que morreu há três dias; se o que haveis pregado é verdade, restitui-lhe a vida.

Grande foi o embaraço dos pobres missionários, que tentaram, mas em vão, fazer-lhe compreender que essa ressurreição só devia ter lugar no fim do mundo. O rei não quis ouvi-los e significou-lhes que ou ressuscitavam o morto ou teriam de se ir embora. Não havia outra alternativa. E tiveram de abandonar a estação, que nunca mais foi restabelecida.

No meu regresso tive ocasião de ver a sua casita, construída de adobes, de que restam somente algumas paredes. Compunha-se de dois pequenos quartos, construídos sobre um terraço artificial bastante alto, para a preservar da humidade do solo. Basta, com efeito, cavar à profundidade de alguns pés, para encontrar por toda a parte água em abundância. O solo parece composto de uma espécie de areia branca, mas que todavia faz excelentes tejolos sêcos ao sol. Estes tejolos empregados nas casas dos finlandeses, pareceram-me tão duros como os tejolos cozidos no forno.

O rei Nihuma tinha gostos muito singulares e apreciava muito as construções à europeia. O seu palácio era construído com tejolos. Era cercado por um extenso muro, construído igualmente de tejolos e flanqueado por torrões arredondados no género das construções da Idade Média. Era uma espécie de castelo feudal. As suas ruínas estão ainda bem conservadas e produzem um certo efeito. No interior desse recinto, tinha mandado construir um belo tanque, onde mantinha uma grande variedade de aves aquáticas. Hoje resta apenas o tanque; mas o snr. Erickson afirmou-me ter visto ainda em tempos a colecção de aves do rei. É provável que tenham sido os missionários quem lhe sugeriu a ideia destas singulares construções. Nihombo tornou a adoptar o sistema antigo, que eu julgo preferível sob o ponto de vista estratégico. São com efeito muito mais difíceis de destruir as paliçadas dos Ovampos do que os muros de tejolo. A toda a volta do palácio e da horta, foram abertos numerosos tanques, cujas bordas estão cercadas de canaviais. Por toda a parte se encontra no sub-solo um inexgotável lençol de água, que torna fértil a região. As palmeiras sobretudo, desenvolvem-se admiràvelmente, assim como os ozombé e outras árvores de fruto; não encontrei ali todavia o oguandé. Faltam igualmente árvores de floresta, que foram sem dúvida destruídas para darem lugar às culturas, de maneira que é preciso ir muito longe para encontrar madeira para queimar.

À uma hora da tarde puzémo-nos a caminho seguindo uma bela e grande omaramba, guarnecida dos dois lados de granjas e lavras. A aparência do país é semelhante à da Ondonga. Ao fim de três horas de marcha chegámos a um sítio chamado Nimézia, completamente coberto de belos lagos, sombreados por grandes árvores.

Estes numerosos poços foram cavados evidentemente na omaramba para dessedentar os rebanhos na estação seca. São muito numerosas e têm as mais variadas e pitorescas formas, tais como nós as escolhemos para os nossos jardins à inglesa. É evidente que cada horta das cerca nias possui ali o seu poço privativo. Não vi que tivessem peixes; mas a superfície da água estava coberta por magníficos lotus de flores azuis. Notei que os indígenas os arrancavam para recolherem os tubérculos, que são comestíveis. Um certo número de Ovampos seguiu-nos e muitos deles receberam ordens do rei para nos acompanharem até à Ombandja. Apesar da detestável impressão que sobre a expedição produziu este pobre Nihombo, não me parece merecer a má reputação de que goza. Estava aterrado com a chegada de tantos caçadores e tantos vagões; e, para mim, é ponto assente que foi este pavor a causa da tolice que cometeu, mandando por duas vezes mudar de lugar os vagões. Talvez que, vendo o snr. Erickson irritado com a primeira ordem de deslocação, julgasse emendar o erro mandando-os voltar para a primeira posição. Seja como for não é acusado de ter feito mal a ninguém nem de ter maltratado nenhum europeu. O seu aspecto não é agradável nem distinto como o do seu vizinho Combondé; mas, no fundo, pareceu-me um homem simples, prudente e com o qual seria fácil chegar a acordo. Os seus vassalos têm, na verdade, o ar de tremer na sua presença e parecem receá-lo ; mas o medo é muitas vezes, nestas terras, o melhor meio de os chefes poderem governar os seus súbditos.

Domingo, 4 de Julho - Esta manhã o jovem Anderson partiu com o snr. Erickson para visitarem o túmulo de seu pai, morto neste dia, há 17 anos, em 14 de Julho de 1863. O célebre viajante tinha, no dia 13 de Junho, alcançado o Cunene, muito provàvelmente ao norte do Humbe. Durante quatro dias esperou em vão que os indígenas o transportassem em canoa para a margem oposta. Partiu então de novo para o Cuanhama, de onde saiu alguns dias depois, já muito doente, em direcção ao Cuambi. A 2 de Julho, percebendo que a sua última hora estava próxima, preparou-se para morrer e fez com que o snr. Erickson lhe lesse repetidas vezes os salmos apropriados à sua situação. Mas só veio a expirar dois dias depois1, ao cabo duma penosa agonia. Sem ter qualquer outro instrumento além de uma «catana», o snr. Erickson conseguiu abrir uma cova, onde depositou os restos mortais do intrépido viajante. O snr. Anderson tinha apenas quarenta e dois anos quando sucumbiu assim, vítima do seu zelo pelas descobertas geográficas. Deixou várias e preciosíssimas obras sobre esta parte da África : O lago Ngami, o rio Cubango, notas de viagem e um livro erudito sobre ornitologia, seu estudo favorito.

Segunda-feira, 5 de Julho - Pelas nove horas deixamos Nimézia, seguindo sempre pela omaramba. O país torna-se cada vez mais ondulado e não tardou muito que nos encontrássemos no meio duma magnífica floresta. Ao cabo de quatro horas e meia de marcha, chegámos a um sítio onde, para alcançarmos a margem oposta, se torna necessário atravessar a omaramba. Esta está verdejante como um prado, mas não está ainda completamente seca. Não tem talvez mais que um pé de água ; todavia é de recear que os carros fiquem enterrados no solo arenoso, o que seria um precalço considerável. É preciso, por isso, tomar precauções especiais para evitar tal inconveniente e resolvemos, em conferência, almoçar aqui, dando tempo aos bois para descansarem.

Depois do almoço tratámos de passar a omaramba ; os vagões mais leves abalançam-se em primeiro lugar e, embora se enterrem até aos cubos das rodas, conseguem alcançar felizmente a margem oposta. Avançam em seguida os outros, juntando uma segunda atrelagem aos mais pesados. Falta apenas o meu, que é muito grande e causa algumas apreensões, mas o snr. Erickson mandou-me os seus 14 bois, o que, com os meus, forma uma atrelagem de 28 bois. Partem a trote e atingem a outra margem, sem pararem um instante sequer. Hora e meia depois chegámos a Orendieno onde deverá começar a valer a caçada.

Terça-feira, 6 de Julho - Orendieno é um dos mais belos lugares que vi no Ovampo. A omaramba é aqui extremamente larga e coberta de férteis pradarias ; ao centro tem inúmeros lagos cavados há séculos pelos indígenas, cujos taludes elevados são sombreados por palmeiras e outras árvores de grande porte. Estes reservatórios são frequentados por gansos e patos selvagens, que se alimentam de moluscos e plantas aquáticas, abundando também as sanguessugas. A toda a volta há grandes florestas onde, aqui e ali, se encontram árvores de fruto seculares, o que indica ter esta região sido habitada outrora. O solo é ora negro ora avermelhado, mas parece ser igualmente fértil por toda a parte. Estava surpreendido por ver deserto e desocupado um tão belo lugar ; e perguntei a razão. Responderam-me que este lugar se chama Orendieno, o que quer dizer «poço da desgraça», e pertencia à tribo dos Ombalandos, por quem foram cavados estes vastos reservatórios. Expulsos pelas tribos vizinhas, os Ombalandos não permitem contudo que outra tribo invada o seu território. Quando algum criador pretende aí fixar-se com os seus rebanhos, eles acorrem imediatamente através da floresta, matam os novos ocupantes, roubam-lhes o gado e, por este meio, tiram a quaisquer outros colonos o desejo de virem ali a fixar-se.

Quarta-feira (?), 6 de Julho - Logo de manhã, os caçadores partem em todas as direcções, no encalço das avestruzes. Como o snr. Anderson não está ainda treinado nesta caça, foi encarregado de matar patos selvagens para aprovisionamento da nossa mesa e traz-nos, na verdade, dúzias deles. Quanto a mim, vou explorar as florestas em volta ; encontrei um grande imbondeiro, o primeiro que vi nesta região do Ovampo, depois alguns «capparis albicans» e moringas gigantescas, de sementes oleaginosas. Há madeiras de construção em quantidade inesgotável. Este lugar, no centro do Ovampo, conviria perfeitamente para uma exploração agrícola e seria fácil obtê-lo dos Ombalandos.

Estes Ombalandos, a que chamam também Onrondos-miti ou homens das árvores, devem este sobrenome, segundo me disseram, ao seu costume de combaterem do alto dos imbondeiros, de onde lançam flechas contra os seus inimigos. Esta gente parece corresponder aos quimbandis do snr. Brochado, se bem que eu não tenha conseguido encontrar este nome entre os indígenas. É erradamente que se tomam os Ombalandos e os Onrondos-miti por duas tribos distintas. Toda esta população constitui apenas uma única tribo, que tem a forma republicana. É rica e poderosa ; mas, encontrando-se cercada por todos os lados por outros povos e sem acesso ao rio nem aos caminhos da Dâmara, tem sido até agora pouco visitada pelos negociantes e possui poucas armas de fogo, o que a coloca em posição de inferioridade em face das tribos vizinhas. Por isso lhe fazem uma guerra encarniçada, mas sem conseguirem exterminá-la ; e os Ombalandos, por seu lado, esforçam-se por lhes pagar na mesma moeda. Era táctica adoptada entre as outras tribos afastarem desta região os negociantes, fazendo-lhes as mais terríveis descrições da pretensa ferocidade dos Ombalandos. Todavia os europeus acabaram por penetrar ali nos últimos tempos e encontraram uma população dócil e inofensiva, que os acolheu perfeitamente. Chegou mesmo a enviar uma embaixada aos Boers do Caóco com bois e trezentos sacos de trigo, a troco de algumas munições para a caça.

De tarde chegou uma numerosa embaixada do rei da Ombanja. Este príncipe teve notícia da viagem do snr. Erickson e manda-lhe dizer que pode entrar nas suas terras.

Os enviados afirmam que o rio dista apenas jornada e meia de vagão da Ombandja, que o caminho é muito bom e que há muitas avestruzes no percurso entre o rio e a tribo. E isto determina o snr. Erickson a fixar a partida para o dia seguinte.

À noite voltam os caçadores com uma quantidade enorme de caça: avestruzes, girafas, hartbeest e springbooks. Não sabemos que fazer de tanta carne. Todos os Bushmen, Berg-Dâmara e Ovampos que nos acompanham a têm agora em abundância. Distribui-se para todos os lados. Os pedaços mais apetitosos são reservados para a nossa mesa. Estes pedaços saborosos são bem conhecidos dos caçadores: língua de girafa, asas de avestruz, lombo de hartbeest, etc. O snr. Anderson continua a abastecer-nos de patos.

Um dos caçadores, o snr. Bawer, afastou-se para longe, na direcção de oeste, e chegou até às povoações dos Ombalandos. Diz que o seu país é soberbo, com grandes clareiras nas florestas, todas semeadas de palmeiras. Os Ombalandos andavam ocupados a apanhar peixes numa omaramba. Como não havia qualquer espécie de caminho, perdeu-se e só chegou ao acampamento já a noite ia avançada. Em geral estes caçadores têm uma habilidade extraordinária para se orientarem no meio das florestas. Podem assim correr um dia inteiro a cavalo através dos bosques e regressar à noite ao seu vagão sem se enganarem na direcção. Neste ponto nada iguala todavia os Bushmen. Contou-me um caçador ter corrido durante dois dias através da floresta em perseguição dos elefantes; de repente, no meio da noite, disse aos seus Bushmen : «Voltemos ao acampamento». Logo, sem uma hesitação, no meio de espessas trevas, estes últimos guiaram a marcha e o levaram em linha recta e sem desvios ao seu carro, que havia deixado há dois dias !

Quinta-feira, 7 de Julho - Pouco tempo depois do regresso do snr. Bawer, quando todos estávamos ainda em volta das fogueiras, anunciaram de súbito a chegada dum estrangeiro, a cavalo. Era o snr. Runcie, um jovem caçador, que chegava do Cubango, onde estava com o irmão do snr. Erickson. Tinha-se dirigido primeiro a Namatoné, perto do lago Etocha, e aí encontrou o snr. Botha que vinha a caminho para se encontrar connosco. Vieram juntos até ao Cuambi, onde os bois do snr. Botha tiveram de parar, esgotados de fadiga. Quanto a si, tomara a dianteira, a cavalo, para trazer estas notícias ao snr. Erickson.

Sexta-feira, 8 de Julho - Partimos esta manhã, às sete horas e, depois de três horas de marcha, seguindo sempre a omaramba, chegámos a um sítio chamado Omatúzia, onde se encontra ainda água em abundância. É o começo da Ondj'a. Decidimos ficar ali alguns dias. Mataram-se duas avestruzes e um javali.

Às nove horas da noite o snr. Botha regressou do Cubango, com o seu vagão. Gastou apenas treze dias para fazer esta viagem. Dá-nos notícias do sr. Dufour, que encontrou quando ia para Namatoné. O sr. Dufour dirigia-se pela segunda vez ao Ovampo. Na sua primeira viagem tinha conseguido chegar até aos domínios da princesa Chinona, que lhe tinha feito bom acolhimento; mas as omarambas estavam de tal forma cheias, que lhe foi necessário viajar continuamente dentro de água. A humidade tinha feito inchar de tal forma as rodas do vagão, que uma das suas cintas de ferro acabou por partir por efeito da dilatação da madeira. Nestas condições tornava-se impossível continuar a viagem e teve de voltar a Omaruru com a sua gente, esgotada pelas febres. Regressara por Otjivondjupa, Otavi, Otjicolo e encontrara o snr. Botha em Namatoné. Tinham-se separado ali, partindo um para o Ovampo e o outro para o Cubango.

1. Nota do tradutor - Há engano nas datas: Anderson faleceu em 4 de Julho de 1867.