CABO VERDE / Desobediência portuguesa
Germano Almeida (textos) e José António Salvador (fotos)
03-01-2004
Ilhéu Editora, Cabo Verde e Editorial Caminho, Lisboa
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maio

Foto: Ilha do Maio
Desobediência portuguesa


Isso passou-se no início dos tempos, D. Afonso Henriques ainda não sonhava a rebelião contra a mãe quanto mais fundar Portugal, já para não falar das épocas que seriam dos Descobrimentos. E de facto, afora uma ou outra visita que se pretende que os fenícios e outros povos mais antigos, e depois os jalofos mais modernos, terão feito às ilhas com o objectivo de recolher o sal que nesse tempo era abundante e de invejável qualidade, tudo leva a crer que
ficaram desertas e abandonadas até cerca do século XV, altura em que aos marinheiros do infante D. Henrique, «havendo tanto já que as partes vendo/ onde o dia é comprido e onde breve» , deu a mania de ir ver os berços onde nasce o dia.

E foi nesse propósito e porfia que desataram a descobrir novos mundos que ao mundo foram mostrando à medida que com eles se cruzavam nas suas rotas, e assim passeando por mares nunca dantes navegados, lá pelos idos de 1460 um qualquer seu escudeiro avistou ou tropeçou com o arquipélago a que chamou de Ilhas de Cabo Verde.

Se uma pessoa que já conhece as ilhas na sua secura extrema perguntar o porquê desse nome, se não será apenas uma chalaça de duvidoso gosto, teremos que responder que na verdade também nós não sabemos. Aliás, até hoje ainda ninguém sabe muito bem porquê Cabo Verde. Alguns dizem que é apenas por causa do promontório africano do mesmo nome que lhe fica em frente, razão por que somos «ilhas do Cabo Verde» e não por vislumbre de alguma haste verde espetada ao vento a acenar promessas de fartura.

Bem entendido que essa opinião não é nem geral nem pacífica, muitos dizem que nem sempre foi assim, que já tivemos dias de glória em chuvas e em abundância de sustento. O que é certo e seguro é que Santiago foi nos antanhos uma ilha de algumas ribeiras até muito caudalosas e também é verdade que nos primeiros tempos das descobertas quase todas as outras beneficiavam de muitas chuvas nos meses de «as águas», isto é, de Junho a Setembro.

E é por isso que cabo-verdianos mais ciosos dos pergaminhos nacionais recusam peremptoriamente a lenda da nossa criação de acaso, defendem mesmo com brio a nossa condição de povo quase eleito, e dizem que a secura das ilhas não é de forma alguma congénita. Pelo con trário, nos primeiros tempos da Criação elas apresentavam-se completamente cobertas de um verde luxuriante e fértil e eram o recanto mais aprazível do paraíso, com árvores de frutos variados, abundância de animais selvagens e domésticos, e também vinhedos diversos, produtores da ainda saudosa «migerela», um vinho verde e leve próprio do arquipélago, para além de muitas outras dádivas da natureza. E provam esse facto tido como histórico através das célebres e felizmente perenes vinhas da Chã das Caldeiras da ilha do Fogo, tão imperturbáveis aos desacatos dos homens e dos deuses que nem o Marquês de Pombal, na sua sanha de arrancar videiras de todo o lado, na vã tentativa de dar vida às do Alto Douro, nem as diversas vagas de lavas do temeroso vulcão as conseguiram destruir ou sequer humilhar, continuando orgulhosas produtoras do nosso admirável tinto, antes conhecido pelo popular nome de «Manecom», hoje rebaptizado de «Chã - vinho tinto do Fogo produzido e engarrafado pelos viticultores de Chã das Caldeiras», e cuja ascendência merece ser directamente entroncada nas cepas para ali trazidas pelo glorioso deus Baco em pessoa, que já naquela antiguidade famosa privilegiava os diferentes recantos de Cabo Verde como locais turísticos por excelência, óptimos para férias repousantes e tranquilas libações. A seca, essa terá surgido séculos depois, como castigo, condenação imposta por alguma divindade mais vingativa.