Entretanto, em 1860, na séquência de visita (1) e diligências empreendidas
no ano anterior para enriquecer as colecções, Barbosa du Bocage, director
do museu de Lisboa (cujo núcleo original se constituíra com as colecções
do antigo Gabinete da Ajuda e do museu da Academia Real das Ciências, e
ainda existiam no seu herdeiro actual, o Museu Bocage, antes do incêndio
que tudo destruiu, em 1978), BB, dizia, faz uma viagem a França, conseguindo do Jardim das Plantas umas centenas de exemplares, em compensação do que em 1808 fora compulsivamente entregue. No museu de Paris,
guiado gentilmente por Duméril filho, dá com os olhos no meu tipo, descrito por Duméril e Bibron, e fica siderado. É mais ou menos o que conta
nas já referidas notícias que me dedica, em 1873 e 1874. Sim, já tinha visto outros de mim, muito velhos, no museu de Lisboa. Sem etiqueta, não se
usava, embora as más-línguas acusem Vandelli de em certa altura ter sabotado o material enviado do Brasil por Alexandre Rodrigues Ferreira, fazendo desaparecer as etiquetas. Vandelli, acusado também de estar bandeado com os franceses, era director do Gabinete da Ajuda, e ninguém,
ainda menos Alexandre, seu antigo discípulo, lhe fazia concorrência. E eu,
que quase apodreci de tédio entre solidões e teias de aranha, durante mais
de meio século, nunca vi mão criminosa a atentar contra mim nem contra
os que me rodeavam. Se me levaram para Paris, foi por eu ser valioso, e
não para me limparem o sarampo. Tirando isso, para falar com franqueza,
raro via alguém, de preferência alma delicada a sacudir-me a ressequida
pele com um pano do pó. Só sei é dizer que já vim da minha terra sem
etiqueta e sem passaporte, incógnito como a Greta Garbo, secreto como a
Esfinge de Tebas, de origem tão desconhecida como a do cosmos, e tão
hieroglífico como os meus familiares embalsamados no Egipto. Passo a
palavra a BB, melhor que ninguém conhece ele essa parte da história:
Parmi les débris de rancien cabinet d' Ajuda... j'ai eu le bonheur de retrouver
trois sauriens se rapportant exactement par leur taille et par leurs caractères extérieurs à I' E. Coctei. Malheureusement ces spécimens ne portaient aucune étiquette
constatant leur provenance; mais identiques, quant à leur mode de préparation, à
celui du Muséum de Paris, ils semblaient avoir été leurs contemporains au cabinet
d' Ajuda et avoir fait partie d'un même envoi. C'est-à-dire, selon toute probabilité,
les trois spécimens de Lisbonne et celui de Paris se trouveraient ensemble dans les collections du cabinet d'Ajuda en 1808...
Suponho que só me acompanhava uma carta, na qual o infeliz João da
Silva Feijó, naturalista meu colector, na altura a passar fome em Cabo
Verde, com a família na metrópole sem meios de sustento, desfiava o rosário das suas doenças e das kafkianices burocráticas que o impediam de
receber o ordenado. Desculpem o aparte, eu não teria o estofo de herói que
demonstravam esses exploradores e naturalistas, longe da pátria, sem apoio
logístico, sempre à míngua de material e mantimentos, por causa dos subsídio que tardava, ou de todo o governo se esquecia de pagar, isto sem falar
das doenças que os minavam, chegavam a matar, caso de José de Anchieta,
que morreu de malária em Angola.
Até descobrir que fora Feijó quem me coligira em Cabo Verde, Bocage
sofreu as passinhas do ultramar. Armado em Sherlock Holmes, foi
excluindo outras possibilidades:
L'exclusion de l' Afrique orientale résultait de cette considération - que nos
colonies de Moçambique avaient été étudiées récemment et très bien étudiées, sous
le point de vue de Ia zoologie, par un erpétologiste de premier ordre, le dr. Peters,
de Berlin, qui n'aurait pas laissé facilement échapper l'occasion de retrouver l' E.
Coctei, s'il y habitait en effet.
Quant à nos posséssions sur Ia côte occidentale, les recherches entreprises par MM. d'Anchieta et Bayão dans un grand nombre de localites comprises dans l'ancien royaume d' Angola, sans retrouver nulle part l' E. Coctei, rendaient chaque
jour moins probable son existence dans cette partie d' Afrique continentale.
D'un autre côté je savais parfaitement que les îles de Cap-Vert avaint été
explorées pendant 10 à 11 ans, de 1784 à 1795, par un naturaliste portugais d'un
mérite incontestable, João da Silva Feijó, que de nombreuses collections de produits zoologiques avaient été adressées par lui au cabinet d' Ajuda, que ces collections devaient s'y trouver en 1808... Malheureusement il parait que c'était
l'habitude dans le cabinet d' Ajuda de ne pas mettre sur les spécimens des indications sur leur origine, pas même de simples étiquettes constatant leur provenance;
je n'ai pu retrouver aucun catalogue régulier et authentique ayant rapport aux
envois de Feijó et d'autres voyageurs-naturalistes; j'ai à peine découvert, après bien
de recherches, quelques listes, écrites de Ia main de Feijó, contenant une énumération des animaux, minéraux et autres objects composant ses envois.
Ora, divagava eu sobre o quanto era implausível que Domingos VandeIli ocupasse o seu precioso tempo a fazer maldades, dando sumiço a
milhares de putativas etiquetas. O senhor director tinha decerto coisas mais
agradáveis com que se entreter, de resto conheci-o vagamente, e do que lhe
conheci sempre o vi mais ocupado em colecções de talismãs, moedas e
medalhas, plantinhas, sementinhas, minérios e minerais, operações quase
alquímicas, como a transmutação do ferro em perfeito aço, do que propriamente na zoologia. Naqueles tempos, pondo de parte a volúpia real pelo
ouro e diamantes (as colecções científicas vinham por arrasto, e quantas
vezes não passavam de cobertura para as deslocações de europeus que eram
mais espiões do que naturalistas), ainda se coleccionava pelo gosto do belo
e do exótico, pouco adiantando ao prazer estético saber em que parte do
globo a beleza irradiava. Bastava a beleza, não importava o contexto em
que nascera, tal como à ciência tradicional bastava o animal num frasco ou
a planta num herbário, raros então levantavam problemas de ecologia,
pouco sabendo da interacção da vida animal e do ambiente. Preocupava-os
a dominação (denominar é dominar, rezam os poetas), por isso só lhes
interessava o inventário dos bens, fossem eles territórios, minas de ouro,
animais ou obras de arte. É bem esclarecedor deste facto o comentário de
Maria Pia, relatado por Baltasar Osório (que a não identifica, identifico
eu por ter lido uma carta de Carlos Bocage em que este duvida que o
autor do comentário fosse a rainha, por esta não tratar ninguém por tu;
Baltasar diz que a trágica personagem fez o comentário na sua presença, e
como este senhor era um bocado tonto mas não tanto, o mais natural é
bater tudo certo menos a fórmula de tratamento), porque demonstra a
importância dos cânones estéticos no progresso do estudo de uns grupos
animais em relação a outros. A rainha, com a mais expressiva candura,
pergunta ao insigne herpetologista e fundador dos estudos zoológicos em
Portugal: Ó Bocage, porque é que tu gostas tanto de uns bichos tão
feios?