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VITORINO NEMÉSIO
E A CIDADE DA HORTA (2)
VICTOR RUI DORES

Esta permanência de Nemésio na Horta haveria de marcar profundamente o escritor adolescente que, por essa altura, para além de ser autor de Canto Matinal, seu primeiro livro de poesia (publicado em 1916), dera ainda à estampa O Poeta Povo (texto de uma conferência sua publicada em 1917); além disso havia ele já colaborado no jomalzinho O Eco Académico (semanário dos alunos do Liceu de Angra), e dirigia então o semanário Estrela d'Alva, intitulado de "revista literária, ilustrada e noticiosa" editada, tal como as anteriores publicações, por Manuel Joaquim de Andrade, cujo prelo funcionava na Rua Direita, em Angra do Heroísmo.

Apesar da tenra idade, Nemésio chega à Horta já imbuído de alguns vagos ideais republicanos, pois que em Angra do Heroísmo havia participado em tertúlias literárias, republicanas e anarco-sindicalistas, de cujos ecos dará conta no seu romance Varanda de Pilatos (Lisboa, 1927). E havia já recebido directas influências do jornalista e "inesquecível amigo" Jaime Brasil, "oráculo dos meus tempos iniciáticos do Liceu de Angra e como que tutor da minha verdura de anos naquelas experiências cruciais da vida ascendente", tendo ainda convivido de perto com o advogado e etnógrafo Luís da Silva Ribeiro, com o escritor e bibliotecário Gervásio Lima, "numa tertúlia ecléctica de republicanos e cónegos da Sé que se reuniam precisamente na Livraria Andrade" (VALDEMAR, 2002).

Em 1918, em pleno final da I Grande Guerra, a Horta vivia os resquícios de uma prosperidade económica iniciada em meados do século XIX, pela família Dabney, com as riquezas que provinham da laranja, do vinho, da baleia e do carvão. Possuindo um comércio marítimo intenso e uma impressionante animação noctuma, a cidade dade era então porto de escalas obrigatório, local de reabastecimento de frotas e de repouso da marinhagem. As suas ruas fervilhavam de militares, marujos, gente de todas as nacionalidades e raças. Além disso, estavam na Horta instaladas as companhias dos Cabos Telegráficos Submarinos, que convertiam a cidade num "nó de comunicações" mundiais. De resto, os americanos, os ingleses, os alemães e os italianos dos "Cabos" haveriam de deixar profundas influências sociais, culturais e desportivas no meio faialense.

Deixando a então mais pacata e isolada cidade de Angra do Heroísmo, é este ambiente cosmopolita que Nemésio vai presenciar, o que terá contribuído, decisivamente, para que ele viesse, mais tarde, a escrever essa obra mítica e irrepetível que dá pelo nome de Mau Tempo no Canal, publicada em 1944 mas trabalhada desde 1939, cuja acção decorre nas ilhas Faial, Pico, S. Jorge e Terceira, sendo que o núcleo da intriga se desenvolve na Horta. Naquela obra ele recriará a "atmosfera" desta cidade. Recorde-se que o romance evoca um período (1917-1919) que coincide em parte com a sua permanência na ilha do Faial. Nemésio vem encontrar, na cidade da Horta, ventos de mudança e sinais de modemidade. Ao visitá-la pela segunda vez, em 1946, haveria de escrever em Corsário das Ilhas:

"Gosto da Horta como de nêsperas. Tinha saudades do que fui, já nem sei bem como, aqui. Todo o imaginado é mais ou menos frustrado quando o realizamos; mas na Horta não é excedido [...]. Matriz no alto onde foram as casas do donatário flamengo e que os jesuítas adaptaram, como sempre, cubicular e faustosamente, mais duas ou três igrejas conventuais nos altos; a cada ponta, ou sainte, as paróquias da Conceição e das Angústias, e o mais que é preciso para completar uma cidadezinha airosa alva como uma noiva - Horta".

E após referir que a cidade "ficou secularmente fiel ao pacato destino que lhe marcara Jos de Huertere, o seu primeiro Capitão e fundador flamengo", acrescenta: "Horta de 1918 ...no fim da Grande Guerra fui encontrá-la remoçada, de maillot e de guiga de regata [...]. Horta! For ever! Sailors are welcome ...Okay" (NEMÉSIO, 1956).

Nessa mesma obra, Nemésio fala dos "primores do acolhimento, a hospitalidade patriarcal, a gentileza em tudo e por tudo". Fascinou-o essa Horta "telegráfica e carvoeira ", que "hospedava galhardamente navios-escolas de todos os pavilhões internacionais", assumindo "um arzito fresco, cosmopolita", onde o inglês e outros idiomas se ouviam pelas ruas e lojas com frequência.

Aos 16 anos de idade, nas suas pausas de estudo, Nemésio passeia-se pela Rua do Mar, contempla os navios e os barcos ancorados no porto da Horta, come queijinho fresco na Yankee House (que será mais tarde lembrado em Mau Tempo no Canal), lê n' O Telégrafo, as notícias da Guerra, participa num garden-party no Palacete do Pilar, por mais de uma vez sobe ao Monte das Moças para visitar o Observatório Meteorológico, fica impressionado com o movimento da Casa Bensaúde (Fayal Coal), faz compras nos Grandes Armazéns Faialenses, assiste, no Salão Eden, a uma ou outra sessão cinematográfica e, no Teatro Faialense, a uma ou outra comédia ou opereta, acompanhado de Machado Serpa frequenta a Socie dade Amor da Pátria (cujo nome, no aludido romance, ele há-de mudar para Real Clube Faialense, o que não deixa de ser curioso, sabido que o Amor da Pátria, fundado a 28 de Novembro de 1859, foi, na sua génese, uma loja maçónica e sabendo-se também que o próprio Nemésio teve ligações à Maçonaria...).