Esta permanência de Nemésio na
Horta haveria de marcar profundamente o escritor adolescente que, por
essa altura, para além de ser autor de Canto Matinal, seu primeiro livro de
poesia (publicado em 1916), dera
ainda à estampa O Poeta Povo (texto
de uma conferência sua publicada em
1917); além disso havia ele já colaborado no jomalzinho O Eco Académico (semanário dos alunos do Liceu
de Angra), e dirigia então o semanário Estrela d'Alva, intitulado de "revista literária, ilustrada e noticiosa"
editada, tal como as anteriores publicações, por Manuel Joaquim de
Andrade, cujo prelo funcionava na
Rua Direita, em Angra do Heroísmo.
Apesar da tenra idade, Nemésio
chega à Horta já imbuído de alguns
vagos ideais republicanos, pois que
em Angra do Heroísmo havia participado em tertúlias literárias, republicanas e anarco-sindicalistas, de cujos
ecos dará conta no seu romance
Varanda de Pilatos (Lisboa, 1927). E
havia já recebido directas influências
do jornalista e "inesquecível amigo"
Jaime Brasil, "oráculo dos meus tempos iniciáticos do Liceu de Angra e
como que tutor da minha verdura de
anos naquelas experiências cruciais
da vida ascendente", tendo ainda convivido de perto com o advogado e etnógrafo Luís da Silva Ribeiro, com o
escritor e bibliotecário Gervásio
Lima, "numa tertúlia ecléctica de republicanos e cónegos da Sé que se
reuniam precisamente na Livraria
Andrade" (VALDEMAR, 2002).
Em 1918, em pleno final da I Grande
Guerra, a Horta vivia os resquícios de
uma prosperidade económica iniciada em meados do século XIX, pela família Dabney, com as riquezas que
provinham da laranja, do vinho, da
baleia e do carvão. Possuindo um comércio marítimo intenso e uma impressionante animação noctuma, a cidade dade era então porto de escalas obrigatório, local de reabastecimento de
frotas e de repouso da marinhagem.
As suas ruas fervilhavam de militares, marujos, gente de todas as nacionalidades e raças. Além disso, estavam na Horta instaladas as companhias dos Cabos Telegráficos Submarinos, que convertiam a cidade num
"nó de comunicações" mundiais. De
resto, os americanos, os ingleses, os
alemães e os italianos dos "Cabos"
haveriam de deixar profundas influências sociais, culturais e desportivas
no meio faialense.
Deixando a então mais pacata e isolada cidade de Angra do Heroísmo, é
este ambiente cosmopolita que Nemésio vai presenciar, o que terá contribuído, decisivamente, para que ele
viesse, mais tarde, a escrever essa
obra mítica e irrepetível que dá pelo
nome de Mau Tempo no Canal, publicada em 1944 mas trabalhada desde
1939, cuja acção decorre nas ilhas
Faial, Pico, S. Jorge e Terceira, sendo
que o núcleo da intriga se desenvolve
na Horta. Naquela obra ele recriará a
"atmosfera" desta cidade. Recorde-se
que o romance evoca um período
(1917-1919) que coincide em parte
com a sua permanência na ilha do
Faial.
Nemésio vem encontrar, na cidade da
Horta, ventos de mudança e sinais de
modemidade. Ao visitá-la pela segunda vez, em 1946, haveria de escrever em Corsário das Ilhas:
"Gosto da
Horta como de nêsperas. Tinha saudades do que fui, já nem sei bem como,
aqui. Todo o imaginado é mais ou
menos frustrado quando o realizamos;
mas na Horta não é excedido [...]. Matriz no alto onde foram as casas do
donatário flamengo e que os jesuítas
adaptaram, como sempre, cubicular e
faustosamente, mais duas ou três igrejas conventuais nos altos; a cada
ponta, ou sainte, as paróquias da
Conceição e das Angústias, e o mais
que é preciso para completar uma cidadezinha airosa alva como uma noiva
- Horta".
E após referir que a cidade
"ficou secularmente fiel ao pacato destino que lhe marcara Jos de Huertere,
o seu primeiro Capitão e fundador flamengo", acrescenta: "Horta de 1918
...no fim da Grande Guerra fui encontrá-la remoçada, de maillot e de guiga
de regata [...]. Horta! For ever! Sailors
are welcome ...Okay" (NEMÉSIO,
1956).
Nessa mesma obra, Nemésio
fala dos "primores do acolhimento, a
hospitalidade patriarcal, a gentileza
em tudo e por tudo". Fascinou-o essa
Horta "telegráfica e carvoeira ", que
"hospedava galhardamente navios-escolas de todos os pavilhões internacionais", assumindo "um arzito fresco,
cosmopolita", onde o inglês e outros
idiomas se ouviam pelas ruas e lojas
com frequência.
Aos 16 anos de idade, nas suas pausas
de estudo, Nemésio passeia-se pela Rua do Mar, contempla os navios e os
barcos ancorados no porto da Horta,
come queijinho fresco na Yankee
House (que será mais tarde lembrado
em Mau Tempo no Canal), lê n' O
Telégrafo, as notícias da Guerra, participa num garden-party no Palacete
do Pilar, por mais de uma vez sobe ao
Monte das Moças para visitar o
Observatório Meteorológico, fica impressionado com o movimento da
Casa Bensaúde (Fayal Coal), faz
compras nos Grandes Armazéns
Faialenses, assiste, no Salão Eden, a
uma ou outra sessão cinematográfica
e, no Teatro Faialense, a uma ou outra
comédia ou opereta, acompanhado de
Machado Serpa frequenta a Socie dade Amor da Pátria (cujo nome, no
aludido romance, ele há-de mudar
para Real Clube Faialense, o que não
deixa de ser curioso, sabido que o
Amor da Pátria, fundado a 28 de
Novembro de 1859, foi, na sua génese, uma loja maçónica e sabendo-se
também que o próprio Nemésio teve
ligações à Maçonaria...).