Nemésio fixa a geografia humana, fisica e afectiva da Horta, capta esse "espírito do lugar". O seu olhar arguto vai surpreender as meninas da boa
roda faialense a praticarem remo e
vela na baía da Horta, a jogarem ténis
no Fayal Sport e nos courts das
Companhias, ou a tomarem banho em
fato de malha na praia de Porto Pim,
práticas que eram então muito pouco
vulgares nas cidades de Angra do
Heroísmo e de Ponta Delgada. Não
lhe é indiferente as estrangeiras do
Cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento... O jovem escritor ficará impressionado com esta "Horta
desportiva e inglesada", onde as mulheres fumavam nos cafés... Assiste
às manobras do oficialato casadoiro,
está atento à "fala cantada e doce do
Faial" e, em Mau Tempo no Canal falará, várias vezes, sobre a beleza das
raparigas faialenses: "Há tanta rapariga bonita nesse Faial".
Em 1928, em Coimbra, Vitorino Nemésio recordará, em Sob os Signos de
Agora, a sociedade da Horta, dedicando especial atenção às referidas
jovens faialenses desembaraçadas,
desportistas e independentes que ele
conhecera dez anos antes:
"Na Horta a vida de sociedade é talvez menos discreta, menos passada a
fieira da compostura e da pragmática.
Por isso mesmo, toma as formas desembaraçadas do sport e da dança: e é
afoita porque sacrifica ligeiramente à
.forte nudez da verdade os tropeços da
fantasia... Uma menina faialense de
boa roda não se peja de mergulhar de
maillot ou percorrer a Rua do Mar
dando o braço a um inglês. Verdade
seja que se expõe ao escárnio dos demais. Não importa. Está no seu papel
de civilizada: cumpre as leis da sua
raça magnífica" (NEMÉSIO, 1932).
Segundo Heraldo Gregório da Silva
(SILVA, 1985), deriva provavelmente
de tal apreço por esse ideal de mulher
a tendência artística de Nemésio representar o Faial e a sua capital sob as
formas femininas de "menina" e
"donzela", "cara fêmea", "banhista
de maillot" e até na forma latina de
insula puellarum, isto é, ilha das meninas, conforme nos é dito em Mau
Tempo no Canal. Assim, para
Nemésio, "o Faial é discreto e feminino" [...] e "a Horta sempre teve na
sua imaginação uma espécie de cara
fêmea: não sei quê de donzela, de
amor que não se teve, de adolescência
sumida" (NEMÉSIO, 1956).
Porém, diferente é a atitude de
Nemésio em relação aos progenitores
das famílias smart do Faial. No primeiro capítulo de Mau Tempo no
Canal, Margarida, após ter sentido na
pele as verdascadas que lhe foram infligidas pelo pai (por ter estado à conversa com João Garcia), desabafa
com a criada Maria das Angústias:
"Namoro porque quero! Tanta proa,
tanta presunção de serem as primeiras
famílias do.Faial, quando não passam
de uns brutos".
E será ainda pela boca de Margarida
que Nemésio denunciará os pruridos
de casta e classe dessas famílias:
"O tio creia que estas senhoras da
Horta não sabem que estão neste
mundo senão quando a vida corre
mal. Foram criadas com tolices: não
vivem senão para o Real Clube Faialense e para as festas a bordo, quando
vem uma esquadra à Doca". E denuncia que "O meio é mesquinho, é ...
Uma gente fechada" e que, na Horta,
vigora uma "moral extremamente
chique" e "um vasto sistema mexeriquelro ...".
É ainda nesta sua obra maior que
Nemésio há-de escrever esta lapidar
descrição: "A Horta é um camarote de
frente para o Pico, palco de todo o
ano". E há-de também cometer uma
ou outra imprecisão geográfica, um
ou outro erro de palmatória que qualquer faialense ou picaroto dificilmente perdoará. Alguns exemplos:
I. Do Pasteleiro é impossível avistar-se a Doca, porque de permeio está lá
o Monte da Guia.
2. Do Campo Raso, na ilha do Pico, é
impossível ver-se um incêndio na
Rua de Jesus, cidade da Horta (curiosamente foi na casa nº1 dessa mesma
rua onde Nemésio ficou hospedado
enquanto se preparava para os exames de Liceu).
3. Erradamente, Nemésio situa os baleeiros num lugar onde raramente se
arriou à baleia: S. Mateus do Pico. Na
ilha montanha, os baleeiros abundavam sobretudo nas Lajes, Calheta de
Nesquim e Cais do Pico.
4. Nemésio põe, na boca de baleeiros
picarotos, pronúncias, sotaques e variantes dialectais que, na realidade,
pertencem a falantes da ilha Terceira e de que é exemplo a palatalização das consoantes seguidas de vogal tónica, característica da pronúncia tercelrense:
"Quem põe navalha na cara nã dá
oividos a um velho canoco com' a
(i)este".
"Os oitros bem que se chegam".
"Está uma mulher feita, com aquele feitio destoiçiado".
"Ai Sinhor Santo Amaro! qu'ele
nem siquer le passa a barba do harpão polo toicinho"...
" A Gazela aparelhou p'ra nossa
(i)arte e eu que estava casado e
cheio de meninos"...
"... a beber vuinho"... (vinho)
(NEMÉSIO, 1944).
De resto, em Julho de 1960, Vitorino
Nemésio (que haveria ainda de visitar
a ilha do Faial por mais duas vezes:
1963 e 1971) confessou a José
Martins Garcia, a bordo do Carvalho
Araújo, que as personagens de Mau
Tempo no Canal eram decalcadas de
gente da ilha Terceira. "Claro que
toda essa gente é da Terceira... O Faial
e o Pico deram-me apenas um habitat" ( cf. GARCIA, 1978). E acrescentou que o enredo familiar e amoroso
de Margarida Clark Dulmo e dos diversos pretendentes não derivava de
nenhum facto ocorrido no seio de
qualquer família faialense. Nemésio
operara a transposição do enredo, na
realidade próximo de famílias terceirenses, para o ambiente da cidade da Horta que lhe foi dado conhecer na juventude. Por conseguinte, a Horta
funciona, no romance, como uma
projecção e como um disfarce de
Angra do Heroísmo.
Mas deixemo-nos de petites histoires,
sabido que é próprio do escritor criar,
inventar, transpor, distorcer. Mau
Tempo no Canal é, segundo Martins
Garcia, "a síntese de todas as ficções
de Nemésio e o remate de toda a
idiossincrasia açoriana", avançando
com a ideia de que toda a ficção nemesiana é um percurso em direcção a
uma ilha perdida, funcionando esta
como um mito. Por isso as ilhas do
Faial, Pico, S. Jorge e Terceira (ilhas
reais) serão recriadas e transfiguradas
pela pena magistral de Nemésio em
ilhas ideais, sonhadas ou pressentidas.
Uma coisa é certa: a Horta fará parte
do imaginário nemesiano, a par de
outras cidades como Praia da Vitória,
Angra do Heroísmo, Coimbra, Lisboa, Montpelier, Paris, Bruxelas, Rio
de Janeiro, Bahia, S. Paulo, Ceará,
Pemambuco, Pará, entre outras. Em
artigo publicado no Diário Popular,
intitulado Asas nas Ilhas e datado de
24 de Agosto de 1971, Nemésio confessa-se "ilhéu adoptivo da Horta por
um romanesco que escrevi dos meses
que lá estive em moço, escuso jurar o
que sinto".
"Um homem que transporta uma
ilha", disse dele Ortega e Gasset.
No dia 27 de Agosto de 1944, Nemésio concede uma entrevista ao
Correio dos Açores, na qual afirma:
"Parece-me que fiz realmente um romance das ilhas - a nossa gente, a
nossa lava, o nosso mar" [...]
"escrevi
um livro de atmosferas, de sonho, de
ilhas" [...]
"Os Açores estão mais ou
menos na raiz de tudo quanto faço. A
tartaruga puxa sempre para o mar".
Ora, sendo um livro sobre ilhas, Mau
Tempo no Canal é hoje considerado
não apenas um dos melhores romances portugueses do século XX, como
uma obra já pertencente à literatura
universal.
Este livro é a saga, é a epopeia e é o
grande romance da açorianidade,
termo e conceito criado, em 1932,
pelo próprio Nemésio em artigo publicado na revista insulana (ao que
parece, por decalque de hispanidad,
de Unamuno). Trata-se, como é sabido, de uma obra-prima. Que o é por
três tipos de razões: pela densidade e
perfeição da sua forma e estrutura;
pela riqueza psicológica das suas personagens, ou seja, pela expressão dos
sentimentos humanos; e pela maneira
como o autor desenvolve aspectos
históricos, culturais, sociais, míticos,
etnográficos e científicos relacionados com as nove ilhas dos Açores.
Nemésio soube ser universal a partir das ilhas. Aspirou à universalidade a
partir das suas raízes insulares.
Quando, em Março de 1974, recebeu
o Prémio Montaigne, ao proceder ao
balanço da sua vida e obra, afirma categoricamente:
"Sou ao mesmo tempo e, acima de tudo, português, açoriano, europeu, americano, brasileiro
e, por tudo isto, românico, hispânico
e ocidental e gostava de ser homem
de todo o mundo".
A escrita de Nemésio é um mundo e a
sua obra é uma apetecível viagem
pelos saberes. Porque este ilhéu de
quatro costados e açoriano de 14 gerações foi tudo: poeta, romancista,
professor, filólogo, investigador, crítico, jornalista, cronista, intelectual,
historiador da literatura e da cultura,
comunicador televisivo (Se bem me
lembro, transmitido na RTP entre
1969 e 1975), biógrafo e epistológrafo. Só é pena que, neste tempo em que
vivemos saturados de comunicação,
informação e imagem, continue a
obra nemesiana a ser mais conhecida
do que lida...
Mas foi o próprio Nemésio que,
muito antes do advento da Internet,
do CD-Rom e da imagem virtual, já
nos havia avisado: "A literatura requer despreocupação e disponibilidade"...
Horta,7/10/2002