Ouvi falar de Pedro da Silveira pela primeira vez da boca de José Enes, que tanto me ensinou nos meus verdes e impressionáveis anos. Observador dos meus atrevimentos juvenis, achou que, como pedagogo, deveria procurar conduzir-me, canalizando os meus interesses para áreas formativas. Porque acreditava que os jovens deveriam ser impregnados do espírito dos clássicos, se por acaso quisessem vir um dia a escrever decentemente, meteu-me nas mãos Rodrigues Lobo. Esforcei-me em vão. Não conseguia desfrutar ali nenhum prazer de leitura. Eu nascera numa freguesia (não me atreverei a dizer “aldeia” diante do purista da linguagem açórica que é Pedro da Silveira (1), mas não era a corte na aldeia que me seduzia. O professor imaginou-me mais capaz do que eu era de facto. Tentou então os açorianos. Nunes da Rosa foi o primeiro. E eu entusiasmei-me deveras com os contos de Gente das Ilhas, e depois com Pastorais do Mosteiro. Logo a seguir, deu-me a separata de Pedro da Silveira corrigindo alguns deslizes do livro Um Mês de Sonho ( em que José Leite de Vasconcelos registava a sua viagem aos Açores na década de vinte), bem como A Ilha e o Mundo, que me foi um deslumbramento. Mais tarde voltei a encontrar o poeta em Sinais de Oeste, na mesa de António Andrade Moniz, então no Seminário de Angra e hoje professor na Universidade Nova, quando escrevia uma recensão para a revista Atlântida. Pouco tempo depois eu descobria Raul Brandão e, não sei exactamente quando, Nemésio e Roberto de Mesquita, uma constelação de autores que, sempre pela mão de José Enes, que a todos ia enquadrando na sua visão dos Açores e de Portugal, me formou o paradigma cultural dentro do qual passei a mover-me. De entre os que desde logo mais me tocaram, terei de mencionar Luís Ribeiro e os seus Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, que o Instituto Açoriano de Cultura benignamente nos ia fazendo chegar às mãos em fascículos que eu assinava no Seminário de Angra, quando tinha catorze anos (2). O pequeno texto «O açoriano e os Açores», de Nemésio e, mais tarde, o seu ensaio fundamental «O poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita», publicado em Conhecimento de Poesia e editado no Brasil (Nemésio , 1958: 167-191). Só bem mais tarde viria eu a descobrir os estudos antropológicos de Arruda Furtado e os ensaios de história literária açoriana de Eduíno de Jesus. Quer dizer, na constelação paradigmática de autores açorianos que formataram a minha visão dos Açores e, de certo modo, do mundo, figurava Pedro da Silveira. É difícil explicar o porquê do meu fascínio pela poesia de Pedro da Silveira se eu não conhecia as Flores. Para poemas como «Dia de Vapor» ainda encontrava eu elementos familiares nas visitas mensais do Carvalho Araújo, alternadas com as do Lima, atracados à distância na baía de Angra, e nas idas e vindas da lancha levando também a bordo os angrenses que iam desmonotonizar-se umas horas no bar da primeira classe, à semelhança do que nos narra o magnífico poema de Pedro da Silveira. Com os «Quatro Motivos da Fajã Grande», deveria eu talvez identificar-me menos. Mas não. Eles surgiram-me como radiografia de um estado de alma: o marasmo sem horizontes da vida insular, ou pelo menos da vida de grande parte da população dos Açores para quem o barco na distância era a única saída, a adivinhar-lhe, à proa, / Califórnias perdidas de abundância, no belo verso do epigramático poema «Ilha».
Eu desconhecia totalmente o que fosse o neo-realismo e nunca encarei os poemas de A Ilha e o Mundo como pertencendo a qualquer corrente literária. Para mim eram simplesmente a expressão da corrente de consciência que começava a agarrar-me como ilhéu despertando para as realidades do mundo no dealbar dos anos sessenta. Após este breve intróito como que a legitimar a minha ligação à obra de Pedro da Silveira (e a minha presença aqui), passarei agora a ser menos umbilical, alargando esta retrospectiva ao impacto de Pedro da Silveira sobre a minha geração. Antes dela, aliás, a presença de Pedro da Silveira já se fizera sentir no grupo Gávea, muito embora um excelente poeta como Emanuel Félix tivesse optado por um registo poético quase nos seus antípodas. Atrevo-me no entanto a afirmar que, depois de Pedro da Silveira, quem não quisesse repeti-lo teria de seguir por trilhos bem diversos.
Santos Barros e Carlos Faria no suplemento «Glacial», Álamo Oliveira no seu percurso poético peculiar, ecoaram de algum modo a existência de A Ilha e o Mundo. Os convulsivos anos da década de setenta, espalhando-nos a todos pelos quatro cantos do globo, vieram apenas fazer recrudescer o nosso interesse pelas ilhas, pelas suas idiossincrasias, pelas marcas de insularidade que todos leváramos na mala de bagagem. João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa, J. H. Borges Martins, Daniel de Sá, Fernando Aires, Marcolino Candeias, Eduardo Bettencourt Pinto, e todos quantos se interessaram verdadeiramente pelos Açores como espaço cultural com uma marca identitária forte, tiveram sempre, directa ou indirectamente, Pedro da Silveira como referência importante, mesmo quando para dele se demarcarem. A crítica literária, os estudos sobre a açorianidade, que então começaram a proliferar dentro e fora do arquipélago, passaram infalivelmente a citar poemas seus ou a inscrevê-los como epígrafe de ensaios, ao lado de outras de Vitorino Nemésio e do simbolista Roberto de Mesquita, este também florentino, descoberto postumamente por Nemésio e posto a circular pelo próprio Pedro da Silveira (o seu Almas Cativas saiu na Ática em 1974, coordenado por Pedro da Silveira, com prefácio de Jacinto do Prado Coelho e comentários de Marcelino Lima). Vejam-se os escritos de José Enes, José Martins Garcia, Luís de Miranda Rocha, Eduíno de Jesus, Vamberto Freitas, Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Carlos Faria, Urbano Bettencourt, Maria Teresa Marques, Victor Rui Dores, Frank Fagundes, Diniz Borges, Lisa Godinho, Luiz António Assis Brasil e seus estudantes no Rio Grande do Sul, no Brasil, as teses que por aqui e por ali foram surgindo e – por que não mencionar? – os meus próprios escritos.
Dir-se-ia que o poema «Ilha», a que atrás aludi em paráfrase, se tornou o mais citado poema insular, uma definição clássica de ilha, objecto de minuciosas análises. Uma delas foi elaborada pelo Professor George Monteiro, que até à aventura da tradução dos poemas de The Sea Within. A Selection of Azorean Poems, editada pela Gávea-Brown em Providence, nada conhecia da poesia açoriana. Interessou-se verdadeiramente pelos versos de Pedro da Silveira. Num pequeno estudo publicado na revista Atlântida em 1979 – «Os Açores de John Updike e de Pedro da Silveira», o crítico literário luso-americano, professor de Literatura Americana na Brown University, comparava o referido poema «A Ilha» do poeta florense com o poema «Açores», que o famoso escritor americano escrevera a bordo de um transatlântico ao atravessar os Açores a caminho
da Europa. George Monteiro contrasta os dois poemas mostrando que Updike “capta a essência dos Açores vistos segundo a perspectiva do turista que apreende, de fora, a realidade das ilhas.” (…) “O poeta-turista fecha, assim, um silêncio sobre o que poderá ser a vida de quem habita tais paragens.” (M onteiro , 1979: 7). Em contrapartida, Pedro da Silveira capta num poema conciso “a nota de vida que falta no poema de Updike, naquela ‘falta’ de gente a habitar as ilhas e que pode estar implícita nas imagens associadas a ‘à deriva’ e à crescente ‘distância’” (M onteiro , 1979: 7).
A atrás mencionada edição da antologia de poesia açoriana The Sea Within permitiu que os poemas de Pedro da Silveira pudessem viajar para outros mares. Assim, uma das mais conceituadas revistas literárias norte-americanas, The Swanee Review, publicou no seu número mais recente um ensaio intitulado: Marginal Notes: An Islander’s View, da autoria de Tony Whedon. O autor, professor de Literatura Americana numa universidade da Nova Inglaterra, desde a infância residente (parte do ano) numa das ilhas do Maine, descobriu algures The Sea Within e ficou impressionado com os poemas de Pedro da Silveira nela incluídos. Quis conhecer mais da sua poesia e, por isso, contactou-me. Tentou ler outros poemas em português e conseguiu aperceber-se de que lhe interessariam bastante. Pediu-me que alguém os traduzisse. Bati de novo à porta de George Monteiro que aceitou o desafio.
O resultado é um primoroso ensaio em que Tony Whedon analisa os poemas de Pedro da Silveira a par de escritos de autores como Joyce Carol Oates, Elizabeth Bishop, os gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis, Wallace Stevens, Milton, James Schuyler, Sandra McPherson, John Fowles e outros. Sobre os poemas de Pedro da Silveira especificamente, afirma a dada altura terem “alguma da espacidade (spatiousness) e monumentalidade” que ele encontra nos gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis (por sinal, ambos prémios Nobel de Literatura), embora os de Pedro da Silveira tenham algo da frieza do Atlântico Norte “nas entrelinhas e no seu sentimento directo” (W hedon , 2002: 127). Mais adiante escreve:
“O poema expressa a inconsciência, o não pensar que tem origem no render-se involuntário do eu às forças inelutáveis da natureza, um render-se fora do comum – talvez mesmo não-existente – noutra poesia modernista.
(…)
Eu li naïvemente estes inesperadamente refrescantes poemas nesta ilha do Maine que partilha de alguma da melancolia (gloominess) dos Açores. O torpor, a sonolência da poesia de Pedro da Silveira molda-me o meu próprio estado de espírito e o modo como eu contemplo o rio hoje enquanto, por outro lado, o nevoeiro do Maine cobre e invade os poemas de Pedro da Silveira, ensopando-os nesta mesma solitude.” (Whedon , 2002: 128).
Num outro texto intitulado Pedro da Silveira, Poetry for all seasons, George Monteiro compara o olhar implacável do poeta ao de Henry David Thoreau (o autor de Walden e do famoso ensaio sobre a desobediência civil), que Robert Frost, poeta da Nova Inglaterra, considerava mais “the most noticing person who ever lived”. Monteiro elogia “o estilo chão e directo” da poesia de Pedro da Silveira na expressão de certos “noticed moments”. De um deles («Acabado, mas não tanto»), diz ser, no seu espírito, “tão antigo como a poesia dos gregos e tão moderno como a poesia dos ainda desconhecidos poetas de amanhã” (3). Poderia continuar citando outros leitores de Pedro da Silveira e outros dados sobre o impacto da sua obra.
Quedar-me-ei todavia por aqui. Queria no entanto terminar não com palavras minhas, mas prestando homenagem ao poeta nas suas próprias palavras. Desnecessário será, contudo, incluir aqui os poemas lidos. Registo apenas a frase com que precedi a leitura do poema «Acabado, mas não tanto», pois queria com ela simbolicamente concluir esta minha homenagem a Pedro da Silveira: este poema é a antítese do fatalismo, do marasmo, da solidão que inundava a ilha do poeta nos anos quarenta, ela é uma afirmação de vida, de vigor, de finura de espírito, ainda e sempre a revelar a mão de mestre de um senhor do verbo.
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