No mesmo volume intitulado Histórias da Terra e do Mar , de Sophia de Mello Breyner Andresen, "A Casa do Mar" agora prende-me a atenção. Desenvolve-se como uma descrição de uma casa de praia em jeito de visita guiada a alguém suposto num indefinido "quem" (que posso ser eu, leitora), ponto de orientação e norte magnético da minha leitura. Mas certos sinais criam um efeito de estranheza e fazem-me desconfiar desse óbvio ...
Quase no final de "A Casa do Mar", encontro esta distinção entre dois tipos de conhecimento que me parece também uma advertência e um modo de codificar a leitura:
"Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê o muro de granito, as árvores na distância e os telhados a oeste, aquilo que vê aparece-lhe como um lugar qualquer na terra, como um acidente, um lugar ocasional entre o acaso das coisas.
Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência." (p. 71)
Conhecimento acidental, do aparente, visível, e conhecimento fundamental, do real e da sua evidência. O primeiro é o da experiência quotidiana, o comum, heterogéneo, diferenciado; o segundo é o de uma experiência epifânica, súbita e surpreendente percepção de uma unidade íntima na diversidade aparente do real. E, como a percepção é exclusivista, apesar de ambos serem possíveis, contradizem-se: "A Casa do Mar" é, em simultâneo, objecto e via ambíguos, potenciando os dois tipos de leitura correspondentes, os dois tipos de leitores, e, mais ainda, fazendo o primeiro gerar iniciaticamente o segundo através do reconhecimento de citações, mesmo na versão mais eufemística da alusão.
Se a literalidade do primeiro nível de conhecimento conduz o leitor a dificuldades no traçado de uma eventual planta da casa que alertam já para a ilusão de tal pista de leitura, a familiaridade de algumas imagens provoca um efeito de vago reconhecimento, de déjà vu, que favorece o questionamento, a indagação, a investigação. Busca que se radica numa afirmação fundamental: tudo é "como se /.../ fosse outra coisa" (p. 65).
Tudo isso confere à casa do mar "transparência ambígua" ( OP III, 121), tornando-a "lugar de convocação /.../ / Onde do visível emerge a aparição " ( OP III, 341, sublinhado meu). E essa aparição será de imagens identitárias, reveladoras, quer de Sophia, quer, de outros autores importantes para ela, às vezes fundindo-se ambas em sobreimpressões. Aparição pelo fragmento , vestígio de um percurso, memória "de um projecto" ( OP III, 226), homenagem retórica no detalhe representativo de uma poética. Observemos como isso acontece.
Em primeiro lugar, o conto define, através da interdiscursividade, um ponto de fuga onde configura um eu poético, matriz de uma poética e de um imaginário, que sugere coincidente com a pessoa de Sophia. Tudo começa com a auto-citação, a coincidência entre "A Casa do Mar", onde a sala dominada pelas fotografias que "estabelecem, dentro do tempo, outro tempo, e dentro da casa, outras casas e outros jardins." (p.64) e essa outra casa em cujos "espelhos/ Há o brilho febril de um tempo antigo/ Que se debate emerge balbucia" ( OP III, 55), casa reencontrada em tantos textos da Obra Poética, rodeada de jardins ("perdido", "do mar", "da impossessão", etc.) "transbordante [ s ] de imagens mas informe [ s ] " onde "se dissolveu o mundo enorme,/ Carregado de amor e solidão" ( OP I, 47). Essa unidade proclamada ("E através de todas as presenças/ Caminho para a única unidade.", OP I, 46) ancora-se num eu poético:
"Pois a minha poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens." ( OP III, "Arte Poética - II", 95)
E faz coincidir esse eu poético com o biográfico ao datar o seu primeiro encontro com o real representando-o na imagem da maçã, coincidente na mais remota memória declarada e na ficção assumida. Assim, num texto que antecede a Obra Poética , originalmente dirigido a homólogos seus, Sophia começa por afirmar:
"A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria." ( OP I, p. 7)
E essa imagem renova-se, multiplicado o fruto, na ficcional sala de jantar da "A Casa do Mar":
"No centro da mesa há um fruteiro redondo onde as maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal da parede. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas /.../." (pp. 63/64)
Imagem que vale por si, mas também como "outra coisa": uma estética artística , sujeita à História, cristalizada em cânone(s), e uma estética natural , de harmonia, conjunção, sintonia, da unidade íntima do real (daí as maçãs " interiormente acesas").
Em segundo lugar, o acontecimento anunciado reinstaurará uma experiência primordial e iniciática individual e citará outro emblemático da alteridade de que a identidade também se tece.
Neste momento do conto, a alteridade evocada é a pintura de Cézanne e as maçãs com que ele queria deslumbrar Paris, emblemáticas da modernidade estética. Delas, dizia o pintor:
"/.../ postas em evidência pela luz, sobre pratos de porcelana ou toalhas brancas, são lançadas sobre a tela com traços grosseiros e a tinta é espalhada com o polegar. De perto, vê-se apenas uma desordem caótica de vermelhos vivos e amarelos, de verdes e de azuis. Mas, vistas a uma certa distância, transformam-se em frutos óptimos e suculentos, que despertam o apetite. E, de repente, apercebemo-nos de verdades novas, até então desconhecidas: tonalidades estranhas, mas reais, manchas de cor de uma originalidade única, sombreados ao longo dos frutos sobre uma toalha branca, mágicos devido à sua coloração azulada quase imperceptível - tudo isto transforma estas obras em autênticas revelações /.../." (1)
E a maçã, na sua esfericidade, compacta simbólica e totalizadoramente diferentes tradições onde faz sentir a sua presença, conjugando-as: a tradição cristã (com todo o corolário do pecado original), o contoário tradicional europeu, a reflexão estética (implicada no mítico episódio do julgamento de Páris sobre a beleza), um género pictórico (a natureza-morta), o cânone estético moderno, etc..
Por isso, a casa parece habitada "por personagens /.../, todos eles, estranhamente belos", como se "a arte do fotógrafo os tivesse idealizado" (p. 65) elevando-os a representações de "outra coisa", figuras anunciadoras, diferindo sentidos, fazendo-me buscar para além delas, sempre mais além .
Em terceiro lugar, tudo é afirmado como cenário de novos encontros com o real, anunciando-os: casa e jardim, "atentos", são "Estreita taça/ A transbordar da anunciação/ Que às vezes nas coisas passa" ( OP I, 83), lugares e matéria de expectância contaminando-me com ela. A narradora faz-me realizar um percurso, "através de todas as presenças/ /.../ para a única unidade" ( OP I, 46) anunciada.
Casa e jardim, reflectindo-se e continuando-se, convocam a tradição medieval e clássica de simbólicos e míticos jardins onde a unidade impera e a verdade se revela na harmonia entre todos os seres, perdidos jardins do paraíso que os das delícias querem recuperar para a dimensão e as possibilidades terrenas, recriando o sagrado à escala do homem.
Essa expectância intensifica-se através dos sinais denunciadores de uma presença, lembrando esse mesmo fenómeno em Cadeira de Vincent com seu cachimbo (1888), de Van Gogh»» autorepresentação através de objectos pessoais : a roupa estendida, a "limpeza de sal" (p. 62), o copo sobre a mesa (p. 62), os "o cigarro poisado no cinzeiro [ que ] arde sozinho" (p. 64), a roupa das gavetas, as flores nas jarras, etc.. E essa presença faz-se vislumbrar pelo "loiro dos cabelos" (p. 61) esvoaçando ao vento, na pressentida "pequena mulher temível" (p. 63) da cozinha v. CIRCE , "antro da casa", na "mão polida pela penumbra e pela luz e que docemente poisa sobre a mesa" e no "perfil sereno e claro com o cabelo brilhando sobre o vestido escuro, o colar de contas grossas em redor do pescoço fino, /.../, a sombra da tília sobre os ombros" (p. 65) visíveis na fotografia e reflectidos no espelho. E convida-me a entrar no círculo daqueles a que se destinam as cadeiras "à roda da mesa baixa" (p. 64), círculo mágico da mágica feiticeira de alquímica cozinha cujo ritual é anunciado e confirmado pelo "fumo [que] sobe muito lentamente" (p. 67), duplicando " o perfume que sobe de um frasco de vidro doirado e preto que alguém deixou aberto" (p. 67).
Todo o universo da casa do mar denuncia essa presença fundadora que ouve, vê, cheira, está, tacteia e se move, apresenta provas da sua existência, como se lhe sugerisse um estatuto transcendente, divino: eu omnipresente feito verbo, mas invisível de facto. Apenas por comparação acedemos a ela: daí a iconicidade das suas imagens.
Ao longo de "A Casa do Mar", à medida que sou conduzida para esse momento de epifania (espiritual e estético) através da via crucis da casa-mar-búzio, vou assistindo à progressão da emergência dessa figura feminina, à sua evidenciação final e definitiva.
Após o anúncio de um conhecimento-reconhecimento súbito que refiro logo no início desta reflexão, confronto-me com o tumulto das ondas que a elevam no ar, triunfante:
"Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração." (p. 72)
A imagem dessa "mulher olhos verdes e cabelos loiros" que se fazia vislumbrar desde o início define-se e configura-se sobre a espuma das ondas como Vénus. Nascimento e/ou triunfo de Vénus, evocando o quadro O Nascimento de Vénus (c. 1636), de Nicolas Poussin (1594-1665), também conhecido por Triunfo de Neptuno e de Anfitrite ou apenas por Triunfo de Neptuno . As ondas-cavalos, lembrando o célebre Os Cavalos de Neptuno (1892), de Walter Crane (1845-1915), confirmam-no. As múltiplas representações do nascimento de Vénus impõem-na. E as "maresias e brumas sobem como um incenso de celebração" da emergência estética...
Porém, se tudo vale na sua ambiguidade semântica, sendo, em simultâneo, o visível e "outra coisa", essa emergência figura outra: a do poema, a do signo poético. Vénus, cuja beleza foi consagrada e premiada por Páris e por ele elevada à categoria de ideal estético, é simile do poema, figurando com o seu nascimento o daquele:
"O poema aparece feito, emerge, dado (ou como se fosse dado). Como um ditado que escuto e noto." ( OP III, p. 166)
"Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos" ( OP III, "Liberdade", p. 205)
"Um poema emerge tão jovem tão antigo
Que nem sabes desde quando em ti vivia" ( OP III, "O Dia", p. 326)
Um nascimento que emancipa o poema, autonomizando-o do poeta e do real envolvente, constituindo-o em sujeito pleno:
"Oiço a voz subir os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha" ( OP III, "Epidauro 62", p. 283)
Um nascimento cuja transcendência é confirmada pelo cenário:
"O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do
lugar sagrado." ( OP III, "O sol o muro o mar", p. 319)
Emergência em reconhecimento, ficção e anúncio de um facto estético. Facto cuja transcendência consiste em re-ligar "um mundo que foi/ destroçado pelas fúrias" ( OP III, "O sol o muro o mar", p. 318): o texto é "pórtico solene" (id., p. 319) revelando e confirmando essa unidade universal e intemporal, primordial e recuperada nele, por ele e com ele.
E, assim,
"O pintor pinta no tempo respirado
/.../
Pinta o quadro dentro do qual o quadro
Se tece malha a malha como em tear a teia
O outro quadro convocador do convocado"
( OP III, "Para Arpad Szenes", p. 179)
Na imagem ascendente e triunfal que o rumor da vaga celebra e exalta, "A Casa do Mar" faz-me ver, como num espelho ou numa fotografia, em simultâneo, o seu reflexo, o de Vénus, que toda uma tradição estética consagrou, e o do poema, conjugando facto , figuração e teorização : é conto, metáfora de si próprio e do signo estético em geral, mas também apresenta uma teorização deste.
Dessa polivalência semântica da imagem emergente resulta a súbita aproximação de um ponto de fuga antes longínquo e difuso, movimento que apresenta e impõe "o mundo como um rosto amado" ( OP III, "Para Arpad Szenes", p. 179), promovendo um reconhecimento final e unificador que tudo funde com a paisagem onde me descubro também, confundida no reflexo do sujeito poético que nela se mira:
"E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida." ( OP III, "Arte Poética-II", p.96)
Na superfície "semi-brilhante e semi-baç[a]" do texto objectivado na página, o eu poético vê o seu reflexo fundir-se magicamente com o da realidade genuína, esclarecendo a suprema alquimia estética, obra a negro unificadora:
"Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens." ( OP I, "Em todos os jardins", p. 58)
Sujeito, texto, evocação estética e mundo, tudo se conjuga, por fim, numa única e luminosa imagem emergente , eminentemente simbólica e totalizadora: o "rosto [que] emerge branco da sombra" (p. 65). Depois, renovando esse momento mágico, nessa imagem fusional dissolve-se também a minha, de leitora encantada que sobre o canto se debruça, perdendo-se nele.
Tudo isto faz do texto, afinal, um lugar de auto-reconhecimento insuspeitado à partida: o que "A Casa do Mar" oferece, por fim, na superfície estética que a constitui, sou eu, devolve-me a mim, leitora, como o fez, no momento de escrita, a quem a construíu. A mulher que, enigmática, fragmentária e fugidiamente, se deixa pressentir, denunciar e vislumbrar figura-me, transparência dissolvida sob o meu olhar que a decifra, "em exaltação e espanto". Casa metamórfica: imagem de uma casa de praia transformando-se em templo de conhecimento e revelação, volvido em estúdio de poeta onde o poema ocorre anunciado, poema, por sua vez, vertido em espelho onde poeta e eu (leitora) nos miramos e vemos o mundo amado, em apaziguada comunhão. Por fim: imagem que é isso tudo, alternada, progressiva e simultaneamente. Verbo sendo tudo, tudo feito verbo.
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