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ANNABELA RITA
Emergências estéticas
 
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
3.
''Estou num tempo impensável / ... /, abro a porta do quarto e chamo / .. /.'' ''E delineia a boca fechada. A sombra dos braços sobre a barriga, como apóstrofes. Pressente-se o grito, /.../
e o grito ouve-se /.../.''
Rui Nunes. Grito
 

No caso de Grito , de Rui Nunes, o literário emoldura-se e anuncia-se através do pictórico. O título faz-me evocar de modo irresistivel o quadro O Grito (1893) (1), de Munch. A imagem deste, já de si vacilante entre as múltiplas versões, eco umas das outras, atravessa o século para se confrontar agora na minha memória com a observada na capa, do quadro L'Écho (l943), de Delvaux.

Na capa, O Grito , de Munch, e L'Écho, de Delvaux, recombinam-se noutra unidade, a imagem de Delvaux parece receber novo título (o de Munch) que a re-semantiza: o movimento sonâmbulo e alheado da figura feminina que se aproxima na diagonal perspéctica investe-se da energia do som agónico. E é essa nova e inesperada unidade que verdadeiramente anuncia o discurso monologante de Rui Nunes, tecido de alheamento ao presente e de vibração aos farrapos de memória, de distanciamento do próximo e de proximidade do longínquo.

Além disso, a diagonal perspéctica que sobrepõe ambos os quadros, em Munch, tensiona a composição entre a origem e a sua recepção e, em Delvaux, ambiguiza o movimento de redundância compositiva entre um para trás e um para a frente tangencial a nós: aquele implica a leitura na sua composição pelo modo como a figura me dirige o grito; este parece dispensá-la pela forma como a figura parece ir passar por mim sem disso se aperceber e em silêncio. Assim, se o primeiro abre o texto à leitura, o segundo simula fechá-lo no círculo da sua própria escrita, sugerindo um discurso eminentemente lírico, expressão emocionada de um eu agónico, e o dramatismo do desdobramento, já não da dicção para a escuta , mas entre dicção e escuta , dramatismo que me toma espectadora num espaço qualitativamente diferente, abandonando ambos os sujeitos a uma solidão irremediável.

No limiar textual, a citação do pictórico impõe, assim, uma presença soberana, frontal, desafiadora. Aí equaciona um frente a frente entre o citado e o citante: por um lado, este lê, reinterpreta, o primeiro; por outro, usa a citação como entrada de leitura, i. e., para indicar ao leitor a temática e o seu processamento retórico; por fim, selecciona aquele relativamente ao qual se quer definir na sua busca ou afirmação identitária, mas também relativamente ao qual se deseja alternativa, preferido pelo leitor.

No entanto, o que poderia ser confronto directo e linear entre objectos estéticos integrais subtiliza-se por uma espécie de decomposição e recomposição por rotação das partes (não fragmentos): em vez dos dois quadros e de um texto literário, encontramos a imagem de um quadro (L'Écho ) com o título de outro ( O Grito ) emoldurando o terceiro ( Grito ), composição que fantasmizou elementos constituintes de cada um dos seus componentes. Trata-se da elíptica afirmação de uma alternativa estética que conjuga as anteriores e gera nelas a originalidade da sua síntese...

Observo, assim, na letra informada de memória estética, um trabalho retórico que conjuga diferentes objectalidades (o literário e o pictórico), a redundância atenuada, a decomposição de unidades em elementos, a elipse de alguns deles e a composição de um novo corpo vibrante de estranheza . A densidade desse corpo, a espessura que o torna opaco , alvo incontornável da minha atenção, é, pois, o resultado de inesperadas associações entre óbvio, elidido, redundante, etc.: ele faz-se reconhecer consequência de uma elaboração cujo itinerário me convida a compreender e a definir, história de desfigurações que fantasmiza o visível, ofelicamente pressentida na reverberação de imagens anteriores, no eco de vozes longínquas, na flexão de verbos ancestrais. Corpo que se gramaticaliza através de antecedentes...

Se o grito é som desarticulado que tende a ser sustentado enquanto a dor que exprime se mantiver, sendo também a flexão verbal performativa (como choro , seu duplo aqui, ambos instalados nessa ambiguidade), o eco é ainda mais desarticulado pela repetição da última parte do som original, repetição que o vai deformando, distorcendo, até aos limites do reconhecimento.

Ora, tudo isso sugere o modo de elaboração da matéria ficcional que é o sofrimento. Como processos retóricos, registo o fragmentarismo, a associação e a repetição obsessiva que, sendo imperfeita, figura de igualdade abrandada, se torna aqui duplamente amplificadora da emoção pela sua natureza cumulativa. Como faculdade mental, tem a memória. A mulher despida que avança absorta em jeito sonâmbulo e o espaço nocturno de L'Écho sinalizam um movimento mnésico livre, não controlado pela razão, pelo qual ocorrem e acorrem à mente do sujeito fragmentos de discurso, vozes ou cenas (imagens), recordações onde o passado se dilui na distância perspéctica, se amplifica na proximidade emocional e se detalha no paroxismo da dor, recortado e destacado da sua totalidade original. Daí um discurso cuja ficcionalidade se tece de lirismo, solipsista, agónico, tão intenso que se verterá em puro efeito de irrealidade, "sonho absolutamente parado" (p. 105), cenário apenas (e afinal!) protagonizado pelo grafismo da palavra que "ressoa em todas as outras como a sua morte" (p.125):

"- ver o grafismo esplendoroso. Estas linhas que desdobram o som pelo seu progredir ." (p. 120)

*

Em suma, de Sophia para Rui Nunes, a reflexão estética, no duplo sentido do termo, desliza do centro compositivo, onde fragmentariamente se tematiza, refracta e reelabora, para o seu limiar, onde se assume em plenitude como motivo gerador e inteligibilizador da escrita, exigindo um leitor dotado de uma memória estética cada vez mais plural e relacional.

A citação transforma a pregnância em factor genesíaco: embalada, em Sophia, pelo "tombar da rebentação [que] povoa o espaço de exultação e clamor"(ACM, p. 72) ou apresentacional e hieraticamente usada por Rui Nunes.

Em Sophia, a evocação alterna entre fazer-se pressentir como "Rosto desviado lentamente", em "osmose" na superfície móvel do texto, e emergir como "Rosto nu na luz directa", oscilando também entre "o fresco duma idade/ Morta mas que regressa" (Antiguidade clássica) e a "Próxima brisa" (modernidade) (2).

Vénus (símile do texto, da evocação, do poeta e de mim) não emerge apenas da espuma das ondas em triunfante deslumbramento: faz o mar ondular-se e as ondas quebrarem-se em espuma, deixando, até, que eu me surpreenda no reconhecimento do meu próprio reflexo confundindo-se com outros que de outros falam, observando-me a tentar "ordena[r]" o "tumulto" da minha memória, qual "Eurydice perdida que no cheiro/ E nas vozes do mar procura Orpheu"... (3)

Em Rui Nunes, a citação da modernidade surge já em definitiva plenitude, anunciando o texto, como que empunhada para lhe definir uma linhagem e evidenciar a estética e a retórica textuais, mas também para sugerir a letalidade que a dramatiza , pois a transformação implicada na citação tece-se da morte e vida da imagem.

Em ambos os casos, a alteridade estética repercute-se ofelicamente na superfície do signo literário que hesita entre transparência e opacidade, entre deixar ver e fazer-se observar, instável sob o meu olhar, sempre diferente e renovado, sempre "brilha[ndo] e parece[ndo] interiormente aces[o]" (ACM, p.64) quando o reconheço, iluminado por esse reconhecimento...

 

(1) Continuarei a referir-me ao quadro de 1893, do qual existem múltiplas versões.

(2) Sophia de Mello Breyner Andresen. "Rosto" e "Longe e nítidos" in OP II, pp. 239 e 211.

(3) Sophia de Mello Breyner Andresen. "Soneto de Eurydice" in OP I, p. 33.