Em "O Silêncio", de Sophia, tudo começa com "um doce silêncio" que, no início, "pairava" e, depois, "percorria a casa" "como um estremecer profundo" (p. 48). Tempo-espaço de "aliança" universal. Templo. Mas onde "as coisas pareciam atentas" (p. 49), anunciando um acontecimento.
Depois, o literário parece cindir-se pela citação e encontrar nela o motivo do efabulatório (não do discurso): a ficção abre literalmente uma "janela". E, através dela, observa outra ficção:
"[ Joana ] Debruçou-se na janela [ que dava para o jardim ] e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.
Foi então que se ouviu o grito.
Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.
Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. /.../ Uma voz que de grito em grito se ia deformando /.../." (pp. 50/1)
A meio da estrutura de "O Silêncio", o seu motivo e centro nevrálgico (1) abre "uma fenda" na unidade do universo, mas também nesse universo da unidade que constitui o próprio texto, factor que é de evocação intertextual: "o grito" (atente-se no artigo definido precedendo esta primeira ocorrência do substantivo), "um longo grito agudo, desmedido" (p. 51) e "o rosto torcido e desfigurado" (p. 52) da mulher lembram irresistivelmente os seus correspondentes pictóricos (2). Porque ela "gritava como se quisesse atingir um ausente" e "acordar um adormecido" (p. 54), como que desejando abalar-me a ponto de estimular em mim a memória obrigando-me a recordar O Grito (1893), de E. Munch (3). E "fenda" parece tornar-se também metáfora do procedimento citacional, pelo qual um discurso convoca outro (abre-se-lhe, cria espaço para ele) cuja alteridade faz reconhecer no seu 'tecido'. Isto, mesmo quando o evocado é substancialmente modificado, como acontece neste caso (em vez da ponte, da figura solitária e do rio, p. ex., passamos a ter a rua, o par e a cidade), e desde que o reconhecimento seja possível.
A exterioridade espreitada, assim emoldurada pela "janela" e subjectivada pelo olhar ficcional, não constitui a realidade desse universo e muito menos o real apontado por alguns índices (o tempo anterior ao 25 de Abril de 1974, de silêncio ou grito amordaçado, de prisão, etc.). Ela impõe-nos a objectividade de uma representação pictórica, a de Munch, construindo assim uma perspectiva rigorosamente estética: o ponto de fuga não nos conduz para o real, mas para outro artefacto, o quadro. E, nessa colocação em perspectiva, afirma uma relação cognoscente entre ambos os universos e os cânones de que relevam, ou seja, assume e propõe-me para reflexão um diálogo estético , o seu.
Curiosamente, aqui, a citação faz evocar o quadro, mas assume-lhe um fragmento (o que lhe dá o título) como tema a tratar, a elaborar: o grito torna-se matéria manipulada (deformada, conformada) em novo universo, com um par junto de um edifício prisional, à noite, etc.. A memória fornece, pois, o elemento que o literário assimila e torna inteligível (na verdade, explicita a sua própria compreensão dele) através do discurso: cria-lhe uma história (porque de narrativa se trata) que duplamente o enquadra. Janela, olhar e ficção combinam-se para, a um tempo, impor e esfumar o pictórico. E é nesse jogo entre evidência e diluição da memória, visível no modo como um signo absorve o seu antecedente, que a identidade se tece e que o movimento estético se processa...
Por fim, a mulher calou-se e, amparada pelo homem que a acompanhava, desapareceu, virando a esquina. Tudo termina com o regresso do silêncio, mas diferente: "opaco e sinistro", informado do drama que o invadiu, tornando tudo também diferente.
E, nessa Joana que, então, "atravess[a] como estrangeira a sua casa" (p. 55), creio reconhecer-me eu, leitora, a reler agora o texto, a reinterpretá-lo em função do que evoquei: a paisagem textual alterou-se sob o impacto da de Munch e alterar-se-á para mim sempre que eu for capaz de novas associações... |
(1) Sobre a pregnância semântica do centro , cf. . Rudolf Arnheim. O Poder do Centro, Lisboa, Edições 70, 1990.
(2) É quase irresistível a evocação de uma passagem do diário de Munch que faz lembrar a cena do quadro:
"Eu estava a passear cá fora com dois amigos e o Sol começava a pôr-se - de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue -. Eu parei, sentia-me exausto a apoiei-me a uma cerca - havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade - os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, em pé, a tremer de medo - e senti um grito infindável a atravessar a Natureza ." . (cit. por Ulrich Bischoff. Munch , Lisboa, Taschen, s.d., p. 53, sublinhados meus)
As descrições de Sophia e de Munch assemelham-se de modo incontornável: "Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro." (p.51) faz ecoar "um grito infindável a atravessar a Natureza".
(3) Referir-me-ei ao quadro de 1893, do qual existem múltiplas versões. |