Assim como a figura tutelar de Shakespeare obscurece a existência de toda uma plêiade de dramaturgos seus contemporâneos cujos méritos, contudo, são indiscutíveis, também a fama do alquimista John Dee ensombra o merecimento de outros seus congéneres, menos favorecidos pela sorte, mas que, porventura, se lhe equiparariam, caso tivessam beneficiado das mesmas oportunidades.
No grupo dos que beberam, até ao fim, o cálix amargo da dureza da vida, destaca-se Simon Forman, vítima do desprezo e da perseguição dos coevos e da quase total indiferença das gerações posteriores. De facto, este praticante da arte alquímica só não soçobrou no mais absoluto anónimato e no mais abjecto ostracismo, enquanto homem culto do Renascimento, porque em 1972 A. L. Rowse, um estudioso da época isabelina, publica um livro sob o título Simon Forman: Sex and Society in Shakespeare's Age utilizando como base para as suas pesquisas os textos de Forman que, por inestimável deferência, lhe foram facultados em manuscrito e na íntegra pela Bodleian Library de Oxford. Mas, Rowse vai mais longe, pois numa tentativa louvável mas, ao que parece a todos os títulos gorada, de fomentar o estudo do homem e da obra, insere no final do seu volume uma pequena colectânea de excertos extraídos da vasta e diversa produção literária de Forman.
Um dos trabalhos mais interessantes que este contemporâneo de John Dee oferece aos olhos curiosos e às mentes argutas da posteridade e que aguarda publicação consiste numa autobiografia, na terceira pessoa cujos primeiros parágrafos possuem nítidas ressonâncias dos textos genealógicos do Antigo Testamento. Note-se que, na época vitoriana, Halliwell-Philips foi mandatado pela Camden Society para transcrever para um inglês mais acessível a Autobiografia de Simon Forman. Contudo, o puritanismo hipócrita do período impediu a sua publicação. Porém, é através desses escritos que Simon Forman se revela ao leitor, convidando-o a inteirar-se tanto das facetas determinantes do seu carácter como dos muitos complexos psicológicos e inúmeras frustrações a que, mesmo nos momentos menos dolorosos da sua vida, não consegue eximir-se.
Depois de um esboço confuso e, por certo, pouco plausível (o próprio Rowse ainda que admirador incontestado de Simon o admite) da árvore genealógica da sua família pela qual, não obstante, se infere que os Forman pertencem à pequena burguesia rural, Simon cita com o escrúpulo meticuloso do astrólogo habituado a gizar horóscopos, a data do seu nascimento ¾ Sábado 30 de Dezembro de 1552 às 21, 45. Era, assim, 25 anos mais novo que John Dee, querendo isto dizer, que Simon vê pela primeira vez a luz do dia quando Dee, depois de estudos efectuados em algumas das escolas e universidades mais famosas da época, entre as últimas Lovaina e Paris, se encontra no auge da sua vida activa, pontificando nas diversas áreas dos saberes aceites no período, fossem elas as «matemáticas» ou as «magias». O reconhecimento público a que não é estranho o favor de Isabel I, permite a Dee mover-se à vontade nos círculos afectos à corte.
Pelo estatuto social da família Forman, desde logo se deduz que Simon nunca beneficiaria da conjuntura favorável que guinda Dee à situação de grande mago da época isabelina. De facto, nem mesmo durante os escassos onze anos em que aufere da presença protectora, benévola e conivente do pai, Simon frequenta uma escola digna desse nome. Realiza, pois, os seus estudos com mestres pouco fiáveis que tinham optado pelo ensino por força das circunstâncias encontrando-se, desse modo, longe dos padrões mínimos requeridos para satisfazer as exigências do magistério a que se dedicavam.
Após a morte do pai, Simon defronta-se com a malevolência e desprezo, sempre latentes e, porventura, invejosos e ciumentos, da mãe e dos irmãos que nunca lhe perdoariam nem a diferença de interesses e objectivos, nem o apoio do progenitor. Assim, durante cerca de dez anos, o contemporâneo de John Dee recorre a toda a espécie de expedientes e sujeita-se às humilhações mais aviltantes para, pior ou melhor, mais o primeiro que o segundo, prosseguir os seus estudos. Enquanto aprendiz de um ofício ao serviço de um tal Matthew Commin, em parte por ser o mais jovem e, em parte, por ter uma estatura abaixo da média e uma compleição franzina que, para seu grande desgosto e desespero, não se modificariam quando atinge a idade adulta, Simon Forman sofre constantes injúrias físicas. Também lhe inpõem um sem número de contrariedades a nível de promessas não cumpridas prendendo-se todas elas com a prossecução dos seus interesses intelectuais. Porém, com uma persistência digna de louvor e provando que era um homem de múltiplos recursos, consegue, por fim, estudar durante um período que tudo indica não foi longo, visto que não lhe concedem diploma, em Magdelen College School, Oxford.
Se os escritos biográficos de Simon Forman se resumissem a este primeiro projecto, ou seja à sua autobiografia, a posteridade teria ficado mais pobre a nível do conhecimento dos vectores que enformaram a época em que ele viveu. Porém, Simon também redigiu um Diário onde não se limita a expor os pequenos/grandes dramas do seu quotidiano, por vezes bem sombrio, mas no qual refere com a minúcia que constitui um traço marcante do seu carácter, toda uma série de episódios obscuros envolvendo algumas figuras públicas de renome. Acabará, talvez, por contribuir para que os estudiosos do século XXI que, ao contrário dos do XX, não desdenhem consultar a sua obra, se capacitem da verdade subjacente a alguns factos envoltos em mistério e que, de outro modo, nunca seriam esclarecidos. |