MARIA SALOMÉ MACHADO:
SIMON FORMAN
UM ALQUIMISTA DIFERENTE

Por escolha, tendência ou necessidade ou, talvez ainda, pela percepção honesta que não confessa a si próprio e muito menos aos outros, de alguns hiatos de vulto em certas matérias como a «matemática», ou melhor, a geometria euclidiana, área em que John Dee é reconhecido e se assume como expoente máximo do seu tempo, Simon dedica-se à análise das cartas astrológicas dos seus clientes, ao exercício da «medicina» e a pesquisas várias no âmbito da práticas alquímicas e necromânticas. Escreve, mesmo, alguns livros sobre estas últimas que nunca tiveram direito a publicação.

Ao contrário do que acontece com muitos outros cultores da alquimia, não se pode atribuir às experiências do foro alquímico a culpa pelas desgraças que acometem Forman. Porém, as suas incursões no âmbito do tratamento da peste e outras enfermidades, aliás quase smpre coroadas de êxito, transformam-no em réu de crime grave aos olhos de um qualquer cirurgião-barbeiro medíocre, mas encartado que, na ausência de diploma e licença específicos por parte de Simon, não lhe reconhece capacidade para empreender a prática de feitos deste calibre. Contudo, não se pode acusar Forman de invadir o espaço dos «médicos» reconhecidos pelas Universidades, pois será a fuga cobarde destes para o campo frente à gravidade e amplitude da epidemia que o obriga a assumir um encargo, talvez ilegal mas, sem dúvida, profundamente humanitário.

Durante muitos anos, Simon sofre no corpo e na alma as consequências da sua argúcia no âmbito dos diagnósticos e do seu sucesso a nível das curas com poções e mezinhas que ele próprio preparava. O destaque vai para uma bebida que designa por «strong water» ou «aqua vitae». É denunciado várias vezes, mesmo pelas pessoas cujos males sarou mas que não querem satisfazer o preço justo, metido na cadeia outras tantas e, quase sempre por longos períodos de tempo, comparece perante os tribunais, paga multas, cumpre penas.

Porém, se as sucessivas estadas nas enxovias que eram as prisões da época isabelino-jacobita, constituem para Simon um verdadeiro tormento afectando-lhe mesmo a saúde, o pior castigo que lhe foi infligido consistiu na apreensão do seu bem mais precioso, ou seja, os livros de «medicina» adquiridos à custa de grandes renúncias e privações. (Isto para já não falar de algumas obras sobre outras matérias que a justiça também lhe sonegou). Foi uma perda irreparável a vários níveis, pois encontravam-se profusamente anotados com o fruto das suas pesquisas nesse ramo do saber. Só 24 anos mais tarde lhe seriam restituídos em parte e com lacunas graves.

Visto que Simon Forman nunca foi considerado digno de figurar entre os exemplos paradigmáticos do homem culto do período isabelino-jacobita, as escassíssimas notícias que a posteridade possui acerca dele anteriores à obra de Rowse, prendem-se, por capricho irónico e perverso do destino, ou com um dos maiores escandalos da época em que viveu, ou com algumas idiossincrasias específicas, porventura caricaturais, da sua natureza multifacetada.

No que se refere ao incidente complexo que abalou os alicerces da aristocracia inglesa e que se tivesse ocorrido nos dias de hoje sairia nos jornais sob o título «Caso Overbury», Simon é acusado de conluio com a Condessa de Somerset no assassinato de Sir Thomas Overbury. De acordo com aqueles que o incriminam, ele terá fornecido o veneno com que a Condessa afastou para sempre e em definitivo o entrave que se opunha à concretização dos seus desejos mais íntimos. Não se nega que a Condessa consultara Simon por motivos vários em diversas ocasiões, mas é bom não esquecer que Forman já tinha falecido há dois anos quando ela cometeu o crime.

Quanto às singularidades de temperamento, um dos aspecto mencionados com maior frequência e que se considera quase anedótico reporta-se às proezas sexuais de Simon que este, aliás, desnuda sem pudor no seu diário (doenças venéreas incluídas), fazendo uso de uma crueza, por vezes quase chocante. Apenas suaviza, por meio de uma palavra que inventa ¾ «halek» ¾ o modo como designa o acto sexual. Contudo, a circunstância de se manter casto até aos trinta anos e o denodo tenaz com que, depois, parece apostado em recuperar o tempo perdido, esta é, pelo menos, uma das interpretações possíveis a partir da evidência interna do texto, revestem-se de um ridículo indesmentível.

Segundo Rowse, Ben Jonson, o grande dramaturgo da tradição aristofânica da época isabelino/jacobita, ter-se-ia aproveitado de certas discrepâncias do carácter de Simon Forman para compor Subtle, o alquimista que é a personagem principal da sua comédia satírica «The Alchemist». A hipótese não é destituída de fundamento, pois as semelhanças entre o sujeito real e o sujeito que a mente fantasiosa de Jonson criou são bastante evidentes. Contudo, Simon, mesmo obrigado a recorrer a expedientes e subterfúgios, por razões de sobrevivência, nunca burlou os seus clientes de maneira tão ignominiosa e desonesta como Subtle e os seus apaniguados o fazem em The Alchemist.

Na sequência dos parâmetros de raciocínio de Rowse, é legítimo sugerir que Simon Forman se projecta ainda noutra personagem de Ben Jonson - Sir Politique-Would-Be ou Sir Pol, o aspirante a político que desempenha papel de relevo na intriga secundária da comédia satírica Volpone or The Fox. De facto, Sir Politique-Would-Be também redige um diário onde, à semelhança de Simon Forman anota com rigor meticuloso os pormenores mais ínfimos do um quotidiano monótono, feito de rotinas e sem interesse. Porém, o simile termina aqui, visto que os registos de Simon não enfermam da estreiteza de horizontes e da parcimónia de objectivos que os de Sir Pol evidenciam.

Volpone, or The Fox é levada à cena em Portugal com uma certa regularidade. Contudo, Sir Pol está ausente do texto traduzido em português, uma vez que este se baseia na versão resumida e, na perspectiva da maior parte dos estudiosos de Jonson, a todos os títulos, adulterada de Stefan Zweig que transforma uma sátira, com a qualidade inegável das suas antecessoras aristofânicas, numa comédia de costumes anacrónica e medíocre, mas que o público não se cansa de aplaudir.

Como é óbvio, nunca se poderá ter a certeza se Ben Jonson projectou ou não, em Subtle e Sir Pol, alguns traços de carácter de Simon Forman ou se meras coincidências ditaram as analogias. Contudo, este dramaturgo é responsável por um facto muito importante: a inclusão do nome de Simon Forman, enquanto Simon Forman, em pelo menos duas das suas peças ¾ Epicoene or The Silent Woman e The Devil is an Ass ¾ pertencendo-lhe, assim, o mérito de impedir que se perdesse, por completo, a memória de um alquimista que os revezes da fortuna condenaram à diferença. 

 
Bibliografia

French, Peter 1987: John Dee: The World of an Elizabethan Magus. London and New York, Ark Paperbacks.

Herford, C. H.,& Percy and Evelyn Simpson, eds. 1965: Ben Jonson. Vol 5. Oxford, Clarendon P.

Herford, C. H., & Percy and Evelyn Simpson, eds. 1966: Ben Jonson. Vol 6. Oxford, Clarendon P.

Rowse, A. L. 1974: Simon Forman: Sex and Society in Shakespeare's Age. London, Weidenfeld and Nicolson.

 
II Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (2000)
IN: Discursos e Práticas Alquímicas. Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço.
Hugin Editores, Lisboa, 330 pp.
hugin@esoterica.pt 
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