OS MEANDROS ÍNVIOS DO PERCURSO ALQUÍMICO
EM
THE ALCHEMIST DE BEN JONSON

Mas voltando aos construtores, deve salientar-se que construir é, desde logo, organizar o caos, segundo as regras sagradas e, neste sentido, a Obra do Companheiro construtor é idêntica à do alquimista, que também parte do caos indiferenciado para a realização da pedra Filosofal (Pedra cúbica) por meio da materialização do espírito (Logos) e da concomitante espiritualização da matéria.

José Manuel Anes, Re-criações Herméticas

Até meados do século XVII, quando, por fim, se inicia a verdadeira destrinça entre ciência e religião, praticar a arte alquímica nunca constituiu empresa que se pautasse por critérios de facilidade.

De facto, durante a Idade Média, o adepto do saber hermético sofreu, por um lado, a dureza hegemónica, austera e, por vezes, tragicamente repressiva de uma Igreja cristã, em cujas mãos se concentrava, quase em exclusivo, todo o conhecimento que, através das muitas vicissitudes do tempo e da história e das interferências da estultícia humana, um estranho e feliz acaso da fortuna tinha permitido preservar.  Por outro, o praticante da arte alquímica defrontou-se com a prepotência arbitrária duma aristocracia a quem os membros da estrutura religiosa dominante, enquanto detentores do «monopólio» do magistério, ministravam um conjunto de ensinamentos cuidadosamente expurgados.  Deste modo, as informações transmitidas não extravasam os limites impostos pela via helénica, adjuvante imprescindível dos princípios doutrinários teocêntricos vigentes na época que se apoiavam, entre outras coisas, nas teorias de Aristóteles e na visão geocêntrica do universo ptolomaico.

Contudo, se o adepto do saber alquímico encontrou dificuldades em relacionar-se com estes dois estratos sociais, o seu contacto com todos aqueles que podiam incluir-se na classe designada pela vasta amplitude do vocábulo «povo» também se revestiu de facetas contraditórias e vertentes ambíguas que, em muitos casos, punham em risco a integridade física do aspirante a alquimista.  Na melhor das hipóteses, porventura a pior para o interessado, a sua biblioteca e/ou o seu laboratório podiam ser «purificados» pelo fogo.

De facto, os três grupos sociais que com ele conviviam, consideravam-no «persona non grata», embora requisitassem com frequência os seus serviços.  Com efeito, ele representava para os seus contemporâneos o outro, o diferente, aquele sobre quem pesa a suspeita de pactos sercretos e conluios ínvios com as forças demoníacas.  Deste modo, o aspirante a alquimista era uma espécie de pária temível coagido, não raras vezes, pela força das circunstâncias a viver na semiclandestinidade de um submundo em que não se integrava e a que não pertencia.  Paga, assim, o preço de ousar subverter o sistema uma vez que se arroga o direito de prosseguir certos estudos que se baseavam em obras cujo acesso se encontrava, em princípio, vedado ao comum dos mortais.  Entre as obras que se ofereciam à sua curiosidade insaciável e arguta destaca-se o Asclepius que, não obstante todas as proibições e reservas sempre circulou em versão latina durante a Idade Média.

Porém, o quantitativo de material para pesquisa ao dispor do aspirante a alquimista, alargar-se-ia consideravelmente a partir do século XV.  De facto, o recrudescimento do interesse pela cultura e saberes da Antiguidade Clássica que, a princípio, se dirigiu mais às obras dos autores latinos, mas que, pouco depois, se concentra, sobretudo, nos textos dos filósofos gregos, vai promover não só a aprendizagem da língua grega, como meio de possibilitar a leitura dos originais, mas também imprime um novo fôlego às traduções que difundem manuscritos redigidos tanto por Platão como pelos Neo-platonistas.  Retomava-se, assim, a via helenística que, até ali, fora convenientemente esquecida.

Entre as várias obras do espólio grego que chegam a Itália durante o século XV, conta-se o célebre Corpus Hermeticum (c. 1460), uma colectânea de ensaios atribuídos a Hermes Trismegistus, figura quase mítica, ou mesmo mítica de mago e profeta egípcio que se supunha ter vivido antes de Moisés.  A este último se imputava a autoria do Génesis.  O Corpus Hermeticum que possui traços comuns nítidos com o texto do primeiro livro do Antigo Testamento e no qual existem referências a um «filho de Deus», o que conduziu a alguns equívocos muito oportunos, consiste num sistema filosófico que inclui um culto religioso de cunho pagão com base nas Forças da Natureza, pressupondo, assim, a prática de rituais mágicos.

A leitura deste texto, traduzido por Marsilio Ficino a pedido de Cosimo de Medici, provocou uma mudança radical nas mentalidades.  De acordo com os ensinamentos nele contidos, o homem ocupa um lugar cimeiro na estrutura do Universo e actua sobre a Natureza, obrigando-a a submeter-se ao seu domínio.  Definem-se, também, neste trabalho, os parâmetros do perfil do praticante hermético ideal que, de acordo com os critérios de exigência nele referidos, deveria apresentar-se como um sacerdote carismático e visionário investido de dons profético-mágicos e, por isso, capaz de estabelecer contacto com os anjos.

Ao mesmo tempo que Marsilio Ficino, um católico devoto e convicto, tentava, com base no Corpus Hermeticum, desenvolver uma teologia platónica que não só incluisse a nova mundividência, mas que, em simultâneo, insuflasse um sopro vital de mudança na religião cristã, Pico della Mirandola dedicava toda a sua energia e entusiasmo ao estudo da Cabala.  Este saber que se liga à tradição do misticismo judaico tinha objectivos semelhantes aos que se enunciavam no código hermético.  Com efeito, em ambos, o adepto propunha-se atingir os estádios últimos do conhecimento de si próprio, dos outros e do Universo que o rodeava.  Com esse objectivo, o estudioso da Cabala e, consequentemente, Pico recorriam às letras do alfabeto hebraico e ao texto das Escrituras Sagradas que representavam um auxílio imprescindível não só relativamente às práticas contemplativas, como no que se referia à concretização de certos ritos mágicos de cunho religioso.  Na óptica de Pico, a criatura humana encontrava-se no limiar de uma nova era durante a qual recuperaria os dons que, segundo as teorias de Hermes Trismegistus, já lhe teriam pertencido por direito.

Deste modo, Pico opera a fusão entre as tradições da magia hermética e da cabala hebraica.  Coube, porém, a Henrique Cornelius Agrippa o encargo de difundir os princípios desta aliança através do seu livro De Oculta Philosophia (1533).

Embora todas estas obras pelos pressupostos nelas contidos visem directa ou indirectamente a arte alquímica, muitas vezes referida como a ciência hermética por excelência, a Alquimia ocupava um espaço próprio.  Nele se inserem os textos de Paracelsus (1490-1541) que, influenciado por Ficino, perfilha as interpretações herméticas e cabalísticas da Natureza.  Com Paracelsus inicia-se, pois, a fase tardia da tradição hermética em que se cruzam as técnicas alquímicas e a medicina com o problema «científico» da transmutação das mais variadas substâncias em «ouro» sem excluir a metamorfose da essência espiritual e ética do alquimista devoto.

Não obstante alguns opositores de peso,  a via hermética impôs-se e persistiu afirmando-se em importância e prestígio nos séculos XVI e XVII.

Assim, quando Jonson redige a sua comédia satírica The Alchemist em 1610, a convivência próxima ou distante com alquimistas de renome fazia parte do quotidiano dos isabelino-jacobitas.  John Dee, Edward Kelley e Simon Forman foram todos eles, a seu modo e de maneiras diferentes, famosos nesta época.

John Dee cuja vida e carácter mais se aproximam da imagem do ideal do praticante alquímico, beneficiou do favor de Isabel I e é, ainda hoje, o que goza de maior prestígio entre os que se dedicam ao estudo da sua época, não só porque escreveu a Monada Hieroglifica, mas também pelo Prefácio Matemático à Geometria de Euclides de Megara. 

Talvez porque John Dee tivesse fama de homem íntegro, Jonson parece não o ter escolhido como modelo para compor Subtle, o alquimista impostor da peça The Alchemist, embora haja críticos que argumentam o contrário.  A preferência do dramaturgo dirigiu-se, muito provavelmente para Simon Forman cujos traços de carácter correspondiam melhor àqueles que Jonson desejava imprimir à sua personagem.  E não é difícil perceber porquê, visto que Forman legou à posteridade um diário onde descreve os mais ínfimos pormenores do seu dia à dia.  Descobre-se, assim, através da sua leitura, que os princípios éticos que regiam Forman se pautavam por uma certa permissividade, a vários níveis.  Nela se inclui a forma de pagamento pelos seus serviços que, no caso das clientes femininas, e eram muitas, talvez constituissem, até, a maior parte das pessoas que buscavam o seu conselho, consistia numa «moeda» chamada «halek», termo de código que, no léxico de Forman, designa o acto sexual.  E a frequência com que esse vocábulo aparece no texto, numa base de vigor diário é, no mínimo, impressionante.

 
I Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999)
IN: "Discursos e Práticas Alquímicas". Volume I (2001) - Org. de José Augusto Mourão, Maria Estela Guedes, Nuno Marques Peiriço & Raquel Gonçalves. Hugin Editores, Lisboa, 270 pp. hugin@esoterica.pt
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