ALQUIMIA EM PORTUGAL
Manuel J. Gandra


[...] muitos olhos não vêem, por não atenderem,

nem olharem para o mesmo, que estão vendo [...]

 

ANSELMO CAETANO MUNHÓS
DE ABREU GUSMÃO E CASTELO BRANCO   

Também denominada crisopeia ou Química Hermética, a alquimia é a “[...] arte de resolver os corpos naturais compostos, ou os concretos naqueles princípios de que se compõem, para com a resolução ficarem mais puros e com maiores e mais eficazes virtudes [...]”, conforme a definição adoptada por um adepto português, inspirada no Lexicon Alchimiae de Martinus Rulandus1.

A Alquimia foi de todas as disciplinas “ingénuas”, i. e., herméticas, a única que em circunstância alguma deixou, desde os seus primórdios, de reivindicar para si a qualificação de divina e revelada, remetendo invariavelmente para o Corpus Hermeticum.

Por outro lado, o contacto com os escritos de todos os autênticos Filhos do Fogo transmite o sentimento comungado de que a Arcana Artis é simultaneamente uma Ciência Sagrada, uma Filosofia hermética e uma Arte Secreta.

Com efeito, à imagem de todas as demais disciplinas Tradicionais, também entre os químicos herméticos o acesso ao adeptado pressupõe um magistério caracterizado pela gradual dispensação ao discípulo de inspirações, intuições e visões, fonte do conhecimento transmitido iniciaticamente, como mistérios vivos, dirá Julius Evola 2. Sublinha, porém, o mesmo autor que o segredo alquímico não está ligado a um exclusivismo de seita e a um não querer dizer, mas sim a um não poder dizer 3. Isso mesmo se infere da frequente afirmação dos filósofos de que tanto os pobres como os ricos possuem em igual grau a matéria prima, germen a partir do qual a dos Sábios se obtém, pressuposta a capacidade de a Natureza se tornar perfeita se auxiliada pela Arte.

Becher, na sua Physica Subterranea, não deixa margem para dúvidas acerca daquilo a que aspiram todos os adeptos sinceros: “os falsos alquimistas não procuram senão fabricar o ouro, os verdadeiros filósofos só desejam a ciência; os primeiros só fazem tinturas, sofisticações, inépcias, os outros preocupam--se com o princípio das coisas”.

De facto, os monumentos que esta Metafísica Experimental (na feliz expressão do Mestre de Savignies, Eugène Canseliet) nos legou, sempre figuram o Filósofo investido de missão a um tempo demiúrgica e escatológica, destinada a reproduzir à escala microcósmica o drama da criação e da paixão da matéria, com vista à preparação da Parúsia, o estado de comunhão e confraternização universal.

Não constituindo, pois, a transmutação dos metais o anelo da Alquimia Tradicional visa ela espiritualizar o corpo e corporificar o espírito, realização espiritual e material concomitante, configurada por um processo natural, tanto na essência como nas operações. Tal concomitância tem sido não raro negligenciada por numerosos investigadores.

Duas posturas quanto ao objecto da Alquimia e à natureza das suas operações gozam hoje de enorme prestígio: a daqueles que se dedicam a discutir a realidade das transmutações no intuito de exibirem a Química Hermética como uma química embrionária e a dos que insistem no carácter meramente psicológico do seu simbolismo. Vem, porém, desenganá-los a ambos René Alleau, enunciando o problema em termos inequívocos: [...] se o verdadeiro discípulo de Hermes não se deixa cair em tentação, se resiste vitoriosamente às provas inevitáveis num domínio intermédio e subtil onde não são visíveis todos os perigos, então, progressivamente, a filosofia hermética pode elevá-lo do mundo dos corpos e dos prolongamentos extracorpóreos ao mundo das almas, depois, por meio de uma interiorização crescente, do psíquico ao espiritual, ainda que termine neste nível o ensinamento da Arte Real. Esta realização iniciática, muito difícil de alcançar, assinala o regresso do Adepto ao centro do estado humano. As principais consequências desta regeneração da natureza primordial são a felicidade e a longevidade que fazem do Novo Adão um reflexo humano de determinados atributos do Princípio e que abrem ao Eleito as portas do Paraíso terrestre e celeste. Tal é o verdadeiro objectivo da iniciação hermética e da elaboração da Grande Obra nos três mundos. Vê-se assim a razão por que, segundo a ordem das referências que podem ser escolhidas, é tão correcto interpretar a simbólica hermética no plano material e exterior como no plano psíquico e interior, sendo sempre possível uma transposição espiritual a cada nível da experiência estudada4.

No que respeita às interpretações simbólicas da Alquimia, elas enraízam na mística germânica do século XVII (nomeadamente na de Jacob Boehme) e suas derivas e foram propostas, entre outros, por E. A. Hitchcock, Oswald Wirth, René Guénon e por Carl Gustav Jung. Na actual centúria foi, justamente, este último quem pela primeira vez chamou a atenção para os textos alquímicos alegóricos e para as ilustrações que geralmente os acompanham, designando a Alquimia por Yoga do Ocidente e encarando-a como o registo do percurso conducente a uma profunda modificação psíquica (a obtenção do Si), à qual deu o nome de individuação e definiu como “um processo de diferenciação cujo objectivo é o desenvolvimento da personalidade individual”.

O fascínio que estas teorias têm exercido explica a enorme fortuna de que passaram a disfrutar (também patente no desenvolvimento de certas noções anteriormente apenas esboçadas) em trabalhos no âmbito da filosofia e da epistemologia da ciência - tais como La formation de l’Esprit Scientifique (1938) e La Psychanalyse du Feu (1949) de Gaston Bachelard -, da iconologia - neste caso o exemplo mais significativo são as obras de Van Lennep -, ou no da antropologia cultural, domínio onde pontifica Mircea Eliade que, além de atribuir à química hermética uma função comparável à da yoga como técnica caracteristicamente soteriológica, evidencia no seu Forgerons et Alchimistes (1956) a relação entre o conteúdo não racional e não erudito da Alquimia e a concepção mágica da metalurgia entendida como obstetrícia da Terra-Mãe, no seio da qual os minerais se sujeitam a uma gestação semelhante à dos embriões animais.

Apesar de tudo, e não obstante as doutrinas de Jung se terem tornado universalmente conhecidas e aparentemente aceites sem contestação de vulto, diversas objecções as têm tido por alvo. René Alleau apresenta assim a mais importante de todas elas: “[...] quando Jung fala de arquétipos, a que alquimia e a que época se refere? Se isso se relaciona com imagens “ligadas a certos processos perceptíveis na natureza que se reproduzem sem cessar e estão sempre activos”, estas imagens foram modificadas pelo processo histórico da cultura e de uma forma tão constante e profunda que não podem ser consideradas como modelos originais e imutáveis das condições interiores da vida do espírito. Em contrapartida, podemos aceitar a ideia dum arcaísmo do psiquismo humano, pois nem a biologia nem a psicologia desmentam esta hipótese experimentalmente verificável. Na condição de não esquecer, no entanto, que não há imagem do primordial a este nível, pois o primordial não pode ser representado nem sequer imaginado: pode apenas ser vivido na sua opacidade compacta e em que a incapacidade de imaginar é precisamente um dos sinais clínicos da regressão psíquica. Se existisse um “imaginário original típico”, este fenómeno patológico não se produziria” 5.

Outra crítica, agora de carácter metodológico, merece também uma referência. Baseia-se na circunstância de Jung não se interessar, regra geral, pelos ciclos de ilustrações no seu contexto próprio, preferindo associá-las à medida que elas lhe vão permitindo sustentar uma determinada interpretação. Ora, a partir do momento em que tudo pode transformar-se em material simbólico para a Alquimia, a especificidade do simbolismo alquímico esfuma-se, conduzindo tal capricho a uma extensão exegética do sistema de simbolização assumido pelos químicos herméticos nas suas implicações operativas e apenas nelas. E de novo se justifica a lição de Alleau: [...] a alquimia repousa sobre uma base concreta e precisa, sem a qual toda a sabedoria hermética deixaria de possuir qualquer fundamento seguro e ficaria sujeita unicamente à fantasia humana” 6.

Fernando Pessoa mostra-se algumas vezes inclinado a interpretar simbolicamente a Alquimia. Se, todavia, em determinados momentos da sua vida - e o problema reside em determinar exactamente quais, pois a quase totalidade dos documentos que interessam para o caso não se encontram datados - perfilhou esta posição, porventura tributária da de O. Wirth de cuja obra foi, como tudo leva a crer, atento leitor, noutras perspectivou a questão sob o ângulo do hermetismo Tradicional, estabelecendo uma clara distinção entre a química hermética e a vulgar e demarcando-se também, desse modo, das posições assumidas pelos Hiperquímicos.

É que, com efeito, se entre a Espagíria e a Alquimia apenas existe uma diferença de grau, já relativamente à química a diferença é abissal, quer quanto ao objecto quer quanto ao método, pois a crisopeia não se aplica à natureza dos fenómenos que a química estuda. É, por conseguinte, incorrecto pretender que a química se desenvolveu à custa da decifração dos arcanos alquímicos. Muito pelo contrário ela teve o seu progresso retardado pela atracção que a arte de Hermes, prolongada na teoria flogística (1650-1750), exerceu nos espíritos sequiosos de desvelar os segredos da natureza.

A história da alquimia ocidental principia no Egipto helenístico, cerca de 200 a. C. A literatura alquímica divulga-se seguidamente em Bizâncio e entre os árabes, passando à cristandade latina no século XII. Todavia, se a sua penetração na Europa mediévica ficou indubitavelmente a dever-se ao Islão (a quem igualmente pode ser atribuída boa parte da nomenclatura depois adoptada pelos Filósofos do Fogo do velho continente), o território da península Ibérica actuou como autêntica placa giratória para a sua difusão.

Com efeito, o Al-Andalus proporcionou quer os primeiros contactos da Europa com as fontes alquímicas, quer a divulgação da tratadística islâmica que tão significativo papel havia de desempenhar na constituição e desenvolvimento da alquimia cristã. Daquela, as obras que maior fortuna grangearam foram o Arcandorum Liber e o De Aluminibus et Salibus, atribuídas a Razi (trad. Gerardo de Cremona), o De Compositione Alchimie de Morienus (trad. Robert de Chester), o De Congelatione et Conglutinatione Lapidum, extraído do Livro dos Remédios de Avicena (trad. Alfred de Sareshel), o Liber Sacerdotum, o Liber de Divinitatis de LXX (Al-Kutub Al Sab´un) de Geber (trad. Gerardo de Cremona), bem assim como a Tabula Chemica de Ibn Umail, ou o Liber Misericordiae (Kitab Al-Rahma), divulgado por Paracelso.

No século XII, época áurea das traduções latinas de tratados islâmicos pela Escola de Toledo (Domingos Gundissalvo e Gerardo de Cremona), está confirmada a existência na Hispânia de uma sólida tradição de conhecimentos químicos originários do Egipto helenístico, os quais os sábios muçulmanos tentavam harmonizar com práticas metalúrgicas artesanais autóctones. Parece mesmo ter havido comunidades expressamente vocacionadas para o efeito, ao ponto de terem deixado marcas palpáveis no chão peninsular. Alguma toponimia lhes faz jus. Cerca do século X existia na Galiza uma vila denominada Alquimitia ou Alkimitia.

José Pedro Martins Barata estava convicto que tanto os dois afluentes do Rio Sever (a Ribeira de Avid, situada em Espanha, e a Ribeira Davide, que corre em território português), como o topónimo Castelo de Vide, derivam da palavra Abit, pela qual era conhecido pelos alquimistas o minério de chumbo sob a forma de carbonato, acrescentando que se trata de nome “de importação oriental, trazido pelos Árabes ou pelos Templários”.

Seja como for, a Tabula Smaragdina (trad. Hugo de Santalla), atribuída a Hermes Trismegisto e considerada o melhor compêndio da Arcana Artis, já era conhecida no século X em Córdova, onde fora usada como colofón de um outro livro de alquimia, o Sirr Al-Jaliqa ou Kitab Al-´Ilal, o qual fizera a sua aparição no Al-Andalus durante o califado do omíada Al-Hakam II (f. 976).

A par do conhecimento da inventiva alheia, assiste-se, entretanto, ao despontar da Alquimia islâmica hispânica. O seu primeiro produto de que se acha notícia, o Gayat Al-Hakim, redigido cerca de 1059 e tornado famoso com o título de Picatrix, passa indevidamente por ter sido obra do madrileno Abu Maslama.

Outros nomes são incontroversos. De um discípulo de Abu Maslama, de seu nome Ibn Bisrun, conserva-se uma epístola, dirigida a Ibn Al-Samh e citada pelo historiador Ibn Jaldun. Por seu turno, notável poeta, gramático, jurista e filósofo, Abu Muhammad ´Abd Allah Ibn Muhammad Ibn As-Sid (O Filho do Lobo, também conhecido por Al-Nahuí, o Gramático, e Al-Bataliaussi, o de Badajoz), nascido em Silves na época das primeiras taifas, dedicou à alquimia uns quantos capítulos do Kitab Al-Masâ-´Il.

Tais textos constituem o impressivo corolário do saber de práticas metalúrgicas arcaicas, sondadas pelos adeptos muçulmanos e às quais as Compositiones ad Tingenda e as Mappae Clavicula, darão uma assinalável notoriedade além Pirinéus.

Personalidades de nomeada (Daniel de Morley, Rogério Bacon e Alberto Magno) revelariam por ela um respeito considerável. De facto, gozou de enorme reputação, ao ponto de o Doutor Angélico, Tomás de Aquino, a considerar lícita desde que se abstivesse de penetrar no campo da magia, concluindo na Suma Teológica poder ser considerado autêntico o ouro fabricado pelos alquimistas. É, de resto, essa a atitude que, de uma forma geral, a Igreja reproduz, desconhecendo-se qualquer medida eclesiástica, anterior à segunda metade do séc. XIII, dirigida expressamente contra a Alquimia. Só então começará a ser alvo de ataques virulentos, sendo acusada de servir à manipulação da moeda e declarada falsa pela Bula Spondent quas non exhibent (1317) de João XXII.

Se, porém, a cultura alquímica helenística e as suas ramificações mediterrânicas se acham suficientemente investigadas e dilucidados os seus contornos, já outro tanto se não pode afirmar quanto à sua correspondente hispânica.

A relativa indefinição que reina com respeito ao universo das Artes do Fogo (metalúrgia) ao tempo da penetração do Islão no Al-Andalus, subsiste concomitantemente com a suspeição de a aura mágica do finisterra hispânico, manifestada pelo sincretismo dos eventos históricos com a mitologia, circunstância à qual os adeptos muçulmanos chegaram a conferir enorme valor simbólico, poder ter norteado o Islão para o contacto com o mosaico das cosmogonias que, consabidamente, ali coexistiam. Se é de todo infundada a suposição que diversos autores expõem de nunca ter havido em Portugal cultores da Arcana Artis não é menos destituída de verdade a opinião que lhes dá existência apenas a partir do século XVIII.

Entre nós, o Leal Conselheiro de D. Duarte é o precursor da galeria de opiniões depreciativas até agora documentadas acerca da crisopeia. Aquele monarca (em cuja biblioteca existia o De Quinta Essentia, apócrifo atribuído a Raimundo Lúlio) trata-a de burla e aos alquimistas de burlões e embusteiros. Tal opinião seria revalidada nas centúrias seguintes por D. Duarte da Gama e D. João Manuel (colaboradores do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende), Francisco Sá de Miranda, João de Barros, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Eloi de Sá Sotto Maior, etc., introdutores de neologismos como Alquime (= ouro falsificado) ou Alquimiar (= fingir, adulterar).

Assopradores ou alquimiadores, i. e., falsos alquimistas é inegável que sempre existiram. São conhecidos os nomes de uns quantos nacionais (Frei Roque de Almeida, Diogo Mendes, Conde de Castelo Melhor) e estrangeiros em trânsito (Giraldo Paris, Torres Villarroel, Cagliostro), merecedores desse epíteto que, todavia, não é lícito generalizar indiscriminadamente.

Cultores sérios e abnegados houve da Crisopeia: Afonso V, António de Gouveia, Anselmo Caetano de Abreu Gusmão e Castelo Branco,  Matias Aires, etc.

Ainda uns quantos dos apologistas da Alquimia sob a óptica hermetista, como Manuel Bocarro Francês, Rafael Bluteau, Visconde de Figanière, Fernando Pessoa, etc., merecem ser mencionados, para que conste. Aliás, só a notoriedade e o prestígio assinaláveis atingidos pela crisopeia podem justificar a representação de um artífice dessa Obra Real no túmulo do Rei D. Fernando, para já não referir os inúmeros exemplos conhecidos em Portugal de telas seiscentistas e setecentistas iconografando laboratórios e Filósofos do Fogo em plena actividade.

Globalmente, é certo, cabe à centúria de setecentos a mais importante cópia de notícias documentadas, não só a respeito da actividade dos Filósofos do Fogo, como da especulação em torno do objecto e natureza das operações a que se dedicavam. Era fatal que as Academias, tão concorridas no século a que me reporto, se ocupassem do assunto. Pela pena do poeta Tomás Pinto Brandão ficamos a saber que numa sessão Académica em que participara “se tinha discursado sobre a pedra filosofal larga e teimosamente”. As Conferências Discretas e Eruditas promovidas pelo 4º Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes (1673-1743) também o não deixaram sem análise. É Rafael Bluteau, clérigo Teatino, quem confere verosimilhança ao caso. Ele próprio afirma ter discursado numa dessas reuniões acerca “Da probabilidade da Pedra Filosofal”. Além disso o seu Vocabulário Portuguez e Latino (1712-1721), em grande parte acta desenvolvida das sessões desse cenáculo - que se reunia para o estudo de problemas filosóficos e matemáticos, além de questões relacionadas com a língua portuguesa e a crítica de autores - apresenta-o a discretear sobre a Turba dos Filósofos como se de um adepto se tratasse.

Não deixa de ser igualmente sintomática de uma familiaridade insuspeitada a circunstância de em inúmeras obras de medicina se encontrarem alusões detalhadas à química hermética e a operações espagíricas com ela aparentadas. O código conceptual subjacente a tais trechos pressupõe, é evidente, ou seria escusado, a existência de destinatários qualificados, o mesmo se podendo dizer da doutrina espagírica nelas pormenorizadamente exposta. Com efeito, na época, a medicina hermética ou paracélsica com os seus Remédios de Segredo gozava de grande prestígio e voga.

Alguém já sugeriu, sem contudo tornar públicas as suas fontes, que os freires de Cristo foram adeptos da Química Hermética. Nada obsta, se bem que o mais plausível é que tenham sido apenas da medicina espagírica ou iatroquímica. É o que se depreende do capítulo onde se preceituam as atribuições do Boticário do Convento de Cristo de Tomar. Não resisto à tentação de o reproduzir  a partir do códice existente no ANTT, intitulado Uzos das Ceremonias e Louvaveis costumes da Ordem de Christo reformados no anno de 1702: “O boticário será um religioso sacerdote de muita caridade e curiosidade, e que tenha alguma ciência da botica ou experiência dela, ao qual se dará religiosos, ou seculares que o ajudem; procurando sempre haver pessoa que saiba bem da botica pelo que importa à saúde dos religiosos, crédito e bom serviço da botica, e assim deve estar o boticário presente à visita pela manhã, e tarde, para notar bem as mezinhas que se mandem dar a cada um, não se fiando nunca na sua memória, pois é coisa de tanta importância a saúde dos enfermos, procurando sempre estar a botica muito provida dos símplices, e mais mezinhas necessárias às necessidades e enfermidades que sobrevivem aos religiosos, fazendo e mandando fazer as águas destiladas, xaropes, pílulas e mais compostos de que se usa, pedindo para isso ao Prelado quem o saiba bem fazer, quando em casa o não houver para tudo ser perfeito; e pedirá ao Prelado todo o açúcar necessário, que terá por rol para dele dar conta por inteiro. Não dará para fora mezinha alguma sem licença do Prelado, excepto pós comuns, unguentos, e outras coisas semelhantes, de pouco porte, mas nunca xaropes, nem purga, sem o Prelado assinar as receitas do médico constando ser de pobres. Não comprará drogas, nem outras mezinhas sem licença do Prelado, nem sem as ver quem disso bem entenda, assim para a bondade delas, como para o preço. De todos os símplices, e compostos da botica terá muito cuidado, para que não se corrompam, e quando houver de fazer algumas coisas daquelas, que se costumam fazer de noite dará conta sempre disso ao Prelado para que saiba a ocasião de sua falta e o que passa naquelas horas, e tempo, e procurará sempre assistir nessa oficina”.

É indesmentível o facto de a Química Hermética ter sido cultivada por clérigos e, frequentemente, à sombra de ordens religiosas, o que, como é sabido, sucedeu nos conventos beneditinos e franciscanos de Breslau e Cimiez pelo menos até ao século XVII. No que respeita à Espagíria, bastará frisar que um convento possuía invariavelmente hortos de ervas e plantas medicinais na sua cerca. Seja como for, a impossibilidade de se aduzirem provas cabais da prática laboratorial relacionada com a crisopeia em Tomar não invalida, para já, tal hipótese. É pena que se desconheça quer o teor quer o paradeiro da única fonte porventura capaz de lançar alguma luz sobre o problema, isto é o Tratado de observações Chymicas atribuído por Barbosa Machado ao cronista da Ordem de Cristo, frei Bernardo da Costa. Mas terão, efectivamente, os religiosos portugueses sido tentados a empreender a Grande Obra? A esse quesito só uma afirmativa convém, uma vez que o interesse concitado por parte de diversas casas de Religião pela tratadística não poderá justificar-se exclusivamente por uma mera curiosidade intelectual. Porém, em nenhumas outras como nas Livrarias da Congregação de S. Filipe Neri, outrora instalada no Convento, actual Palácio das Necessidades, e do Convento de Mafra (a única conventual in situ, no nosso país) o acervo terá sido, de acordo com os dados disponíveis, tão significativo.

Apurar como vieram esses monumentos parar a Portugal constitui tarefa de difícil, se não de impossível, concretização. Expressamente encomendados ou simplesmente trazidos na bagagem de Adeptos de outras nacionalidades que nos visitaram? A. M. Amorim da Costa parece optar pela segunda possibilidade quando afirma: “Portugal foi, certamente, país desejado e visitado por alguns alquimistas ambulantes estrangeiros que por cá terão demorado (e, porventura, até fixado), deixando atrás de si alguns discípulos, talvez ferverosos depositários dos seus ensinamentos, de cujas práticas se podem encontrar vestígios, aqui e ali”.

O contributo de pesquisadores espanhóis, não obstante a sua inegável utilidade, não se mostra mais decisivo. Apesar de tudo, penso não ser necessário fazer depender exclusivamente dessas visitas esporádicas a existência de Adeptos operando no nosso país, embora, é certo, também cá se tenham deslocado alguns, nem sempre, convirá sublinhar, com o intuito de desvelar os segredos de que se haviam tornado detentores...

É conveniente não perder de vista o papel proeminente desempenhado pela península Ibérica na difusão da alquimia na Europa Medieval e, pelos vistos, o de Portugal no que concerne e Espanha. Não é de excluir, inclusive, o caso de ter sido sonegada a Adeptos Lusitanos a autoria de escritos, entretanto reinvindicada para autores castelhanos a quem anda por fama atribuída. De resto, a inversa também é válida, isto é, Adeptos (ou assopradores pois os houve igualmente) portugueses visitaram nações estrangeiras onde terão, eventualmente, mantido contactos com outros filhos de Hermes de quem receberiam instrução tanto oral como escrita.

Quanto à Medicina Hermética, iatroquímica ou espagírica, o seu edifício teórico é creditado a Paracelso e a discípulos como Pedro Severino, José Duchesne, Thomas Moffett, Osvaldo Crollius e Roberto Fludd.

Na óptica espagírica não basta escolher os remédios, metais, minerais ou plantas, conforme a Lei das Correspondências, para curar o paciente. É indispensável que os medicamentos sejam preparados segundo técnicas herméticas, ou seja, de acordo com aquelas mesmas Leis que intervêm na confecção da Grande Obra. Por outras palavras: não basta prescrever uma trituração de ouro ou de um qualquer sal de mercúrio, ferro ou antimónio, nos casos em que, analogicamente, sejam indicados. É preciso prepará-los pelo método espagírico, i. e., separar e reunir quimicamente, abrir as substâncias químicas (não apenas os sais metálicos colocados à sua disposição pela metalurgia, contrastaria e alquimia, mas também os metalóides, minerais e certas plantas) por meio de métodos de fermentação e destilação.

Convirá, apesar de tudo, ressalvar que os Arcanos e Quintessências espagíricas não supõem a preparação da Pedra Filosofal, objecto da alquimia, propriamente dita.

Tais medicamentos tiveram enorme aceitação em Portugal porque correspondiam a aspirações e crenças generalizadas desde a Idade Média, conforme evidencia a fama grangeada pelas Águas Maravilhosas atribuídas a Pedro Hispano.

Foram expoentes da farmácia química: Duarte Madeira Arrais, João Curvo Semedo (principal impulsionador da utilização de remédios de segredo em Portugal), José Custódio da Costa e Jacob de Castro Sarmento (que desempenhou importante papel na introdução e vulgarização em Portugal das correntes iatromecânicas sob a influência de Boerhaave e Newton).

Os remédios concebidos por João Curvo Semedo eram vendidos pelos dominicanos, em Lisboa, na transição do século XVII para o XVIII. Em Aveiro e na Batalha os mesmos padres vendiam um outro segredo, a Água Celeste. Na última localidade possuíam um privilégio para que nenhum leigo lhes fizesse concorrência. Em Elvas, este instituto religioso comercializava a Água de Inglaterra de André Lopes de Castro, nos finais do século XVIII. Por seu turno, os jesuítas fabricavam-nos em todas as suas Boticas, sendo os mais conhecidos as Pedras Cordiais, preparadas em Goa, no Colégio de S. Paulo, a Teriaga Brasílica e uma Água de Inglaterra, preparadas pelo boticário de Santo Antão.

Outras Ordens religiosas (beneditinos, carmelitas e oratorianos) fabricavam e vendiam remédios secretos.

A forma como estes medicamentos eram produzidos e publicitados permitia a auto-medicação, para a qual contribuíam os chamados regimentos, literatura posológica que os acompanhava. Colidiam frontalmente com as mézinhas da farmácia galénica, caracterizada pela produção em pequena escala pelo boticário, mediante receita do médico para um determinado doente. As substâncias vegetais do método galénico, facilmente degradáveis, impunham esse procedimento, o que não acontecia com os medicamentos químicos, muito mais estáveis e capazes de serem consumidos longe do local de fabrico. 

Entre os opositores dos segredos destacaram-se os Conimbricenses, a Inquisição, em consequência de as obras de Paracelso haverem sido incluídas no Index, e Luís António Verney e António Nunes Ribeiro Sanches, que considerou a farmácia conventual a responsável pelo estado de penúria dos boticários laicos.

Condenados oficialmente pela Reforma Pombalina dos estudos médicos, em 1772, o movimento tendente à total erradicação dos remédios secretos seria incrementado, após 1782, com a criação da Junta do Proto-Medicato.    

NOTAS  

1 “Alchimia est separatio impuri a substancia puriore”.

2 Cf. Tradição hermética, p. 33.

3 Idem, p. 214.

4 Cf. Alchimie et Cryptographie.

5 Idem, p. 16-17.

6 Ibidem, p. 313.

7 No que concerne à produção nacional, consulte Manuel J. Gandra, Subsídios para a bibliografia crítica das fontes e estudos respeitando ao Hermetismo em Portugal. I. Alquimia (Mafra, 1994) e Para a História da Alquimia em Portugal (no prelo).

    

Bibliografia

 

ALLEAU, René, Alchemie et Cryptographie, in L’Alchimie de E. J. Holmyard, Paris, 1979; BERTHELOT, Les Origines de l’Alchimie, Paris, 1885 [a p. 279: “a Alquimia era uma filosofia, isto é, uma explicação racionalista das metamorfoses da matéria”]; ELIADE, Mircea, Le Yoga - Immortalité et Liberté, Paris, 1954 [cap. VII]; EVOLA, Julius, A Tradição Hermética, Lisboa, 1979; GANDRA, Manuel J., Subsídios para a bibliografia crítica das fontes e estudos respeitando ao Hermetismo em Portugal. I. Alquimia (tratamento biblioteconómico de Amélia Caetano), Mafra, 1994; GARCIA FONT, Juan, Historia de la Alquimia en España, Madrid,  Editora Nacional, 1976;  HOLMYARD, E. J., Alchemy, Londres, 1957; HUSSON, Bernard, Transmutations Alchimiques, Paris, 1974; PEREIRA, Moutinho, Alquimistas portugueses em busca da pedra filosofal, in Diário de  Notícias. Suplemento (30 Jan. 1988) [Entrevista com Manuel J. Gandra]; RAMÓN DE LUANCO, D. José, La Alquimia en España: escritos inéditos, noticias y apuntamientos que pueden servir para la Historia de los Adeptos Españoles, Madrid, 1889 [Reproduz o Livro do Tesouro a partir dos códices de Madrid e de Sevilha. Numa colecção alquímica, “a mais copiosa que conhecemos entre as espanholas”, manuscrita pelo calígrafo D. Francisco Javier de Santiago Palomares (1728-1796) encontra-se vária matéria a merecer registo, entre outra: a tradução do latim para espanhol da Clavis Sapientiae de Artefius, realizada no Porto por D. Francisco Fernandez de Obecurri y Vallejo e concluída em 22 de Junho de 1774; a reprodução integral de uma versão inédita do Livro “del Tesoro, atribuido sin razón ni prueba al décimo Alfonso de Castilla” (p. 250-281). Reedição anastática em 1980]; RUIZ SERRA, Javier, Breve recorrido histórico de la Alquimia en Espana, in La Alquimia en Espana / D. José Ramón de Luanco, Madrid, 1980 [Trata-se do Prólogo que antecede a reprodução anastática do texto publicado em 1889].  

 

 SUBSÍDIO PARA O CATÁLOGO DA TRATADÍSTICA ANTIGA