José de Almada Negreiros
FRISOS

Canção da saudade

Ruínas

Primavera

Trevas

Canção

A taça de chá

TREVAS

De dia não se via nada, mas pla tardinha já se apercebia gente que vinha de punhais na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo neles. E os punhais não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençóis de linho escorridos de ombros franzinos. E a brisa que vinha dava gestos de asas vencidas aos lençóis de linho, asas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os medos que nasciam.

E vinha vindo a noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por mor do barulho, de braços estendidos pra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite ceguinha como a lanterna que Ihe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhais nos peitos vazios.

A Lua e uma laranja de oiro num prato azul do Egipto com pérolas descriminadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na brisa eram um bailado de estátua de sonho em vitrais azuis. Mãos ladras de sonhar levaram a laranja, e o prato enlutou-se.

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da brisa dos túmulos, havia surdinas de gritos distantes — e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.

A brisa fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheirais plo meu respirar.

Escondidas todas por detrás de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhais acesos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Vêm mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabelos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de além do monte vem dizer-me que tudo dorme em silêncio na escuridão.

Veio a manhã e foi como de dia: não se via nada.