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ACÁCIO BARRADAS.
Acácio Barradas chefiou a redacção de alguns dos mais importantes jornais portugueses, entre eles o "Diário Popular", o "Diário de Lisboa" e o "Diário de Notícias". Nessa situação privou com inúmeros artistas e contribuiu para a sua projecção, caso de Luiz Pacheco.
O seu ensaio sobre a entrevista, que agora publicamos, é o prefácio a um livro em que Luiz Pacheco recolhe algumas entrevistas que concedeu, saído na sua própria editora, a Contraponto, valioso repositório de autores surrealistas, como António Maria Lisboa, Natália Correia, Herberto Helder, Mário Cesariny e o próprio Luiz Pacheco. Tem por título "O Uivo do Coiote" (1997).

O texto de Acácio Barradas, autor que julgo ter passado pelo Surrealismo ou perto dele, enquanto poeta, para além do seu valor teórico, deontológico e histórico, manifesta um aspecto muito característico do movimento surrealista em Portugal: a paixão pessoal que envolveu, nas amizades estreitas e nas zangas estratégicas ou reais. Depois de muito ter sofrido, porque a vivência do Surrealismo em Portugal é por tudo isto uma questão de resistência, e Luiz Pacheco uma personalidade muito extravagante, a publicação de "O uivo do coiote" marca a ruptura definitiva (?) entre os dois grandes amigos. Um dos motivos invocados por Acácio Barradas para o divórcio: as gralhas... (corrigidas nesta versão).

Maria Estela Guedes

 
Acácio Barradas

 

A entrevista é o mais suspeito de todos os géneros jornalísticos. Primeiro: a sua autoria, em grande número de casos, dificilmente se pode determinar. Segundo: não é possível, salvo pelos próprios interlocutores, avaliar a sua autenticidade (1), a menos que se trate de um frente-a-frente "em directo". Na melhor das hipóteses (e com a ressalva apontada), o que conta é a credibilidade (2) dos interlocutores, com predominância daquele que lhe confere a forma definitiva.

Sobre a autoria, algumas reflexões:

Aceita-se habitualmente sem controvérsia, no meio jornalístico, aliás de acordo com o que está legalmente estipulado em tal matéria, que o autor da entrevista é quem a assina e, nessa qualidade, a configura, antes de a tornar do domínio público. De acordo com este pressuposto, a entrevista torna-se propriedade do entrevistador, como seu "autor intelectual" (assim reza a lei), pois a sua interferência é a mais determinante, desde o projecto à execução (3). Por consequência, o entrevistador usa a entrevista como coisa sua, nomeadamente usufruindo em exclusivo dos direitos de autor correspondentes à respectiva publicação em livro, se assim o entender.

Quando a famosa Oriana Falacci ou os seus émulos lusos (Maria João Avillez, Baptista-Bastos ou Mário Ventura) resolveram reunir em livro as melhores entrevistas que publicaram na Imprensa, por certo nunca Ihes passou pela cabeça pedir autorização aos entrevistados e muito menos partilhar com eles direitos de autor. Nem a lei o impõe, nem a prática corrente o exige.

E os jornais que publicaram tais entrevistas e que por elas remuneraram os entrevistadores? Acaso não deveriam ser tidos e achados para o efeito? A prova de que também assumem tal propriedade por inteiro é que, quando chamam a si a edição em livro, utilizam o material publicado a seu bel-prazer, igualmente sem partilharem direitos, quer com entrevistadores quer com entrevistados.

A demonstrar esta realidade recordem-se as edições pelo "Diário de Notícias", na altura ainda estatizado, de vários álbuns comemorativos do seu 125º aniversário, incluindo duas colectâneas com entrevistas consideradas históricas ("Palavras do Tempo", vol. 1 - Política , 1990; vol. 2 - Cultura , 1991). Mesmo nos casos em que os entrevistadores foram previamente consultados (a título de mera cortesia, que não em busca de autorização), a simples ideia de informar desse facto os entrevistados nem sequer ocorreu. Quando muito (e também por mera cortesia) foi-lhes oferecido um exemplar para recordação.

Em suma: o entrevistado está sempre numa situação de perda. É-lhe duplamente negada a condição de co-autor e de co-proprietário da entrevista que concedeu e sobre a qual o único direito que lhe assiste é, se pisar o risco, ir parar ao banco dos réus. Só então, sim, lhe é reconhecida a qualidade de co-responsável, de parceria com o jornalista a quem prestou as declarações incriminadas, já que entretanto foi alterada a lei que impunha a automática responsabilização do director do órgão de comunicação que as difundisse.

Será este procedimento indiscutível? A meu ver, não. A entrevista carece, pelo menos, de dois interlocutores (4). E se o entrevistador, que pergunta, é vulgarmente considerado o agente activo, a verdade é que o entrevistado (a menos que se trate de uma conversa imaginária, no estilo dos encontros encenados com personagens históricas) pode muito bem tornar-se o sujeito da acção, produzindo respostas que, ao constituírem uma força indutora do questionário, assumem de certo modo a sua orientação. Em casos destes, muito frequentes sobretudo nos meios audiovisuais, a personalidade do entrevistado pode dominar o entrevistador, fazendo com que um rol de perguntas relativamente pobre, mal fundamentado por negligência ou impreparação, dê origem a um trabalho com interesse.

No sector da Imprensa, tal circunstância é sobretudo detectável em entrevistas estilo "natureza morta", ou seja, com elaboração prévia de um questionário, cuja entrega ao entrevistado lhe permite analisá-lo friamente antes de formular as respostas por escrito. Nos trabalhos assim conjecturados (que ganham em concisão o que perdem em espontaneidade, mas em que a participação do entrevistado é fortemente personalizada), alguns jornalistas resolvem simular o diálogo com arremedos coloquiais, introduzindo-lhe interrupções e apartes que quase sempre soam a falso, visto que o discurso escrito utiliza, por norma, um nexo expositivo que não se compadece com tais artifícios (5).

Uma vez mais, neste caso, a verdade, isto é, a revelação do modus faciendi , deveria ditar a sua lei, impedindo manipulações desacreditantes (6). A menos que sobre a verdade se aceite como boa a afirmação que me fez, em Angola, nos anos 60, o jornalista Jorge Simões, então director do "Diário de Luanda", órgão da União Nacional. "A verdade", sentenciou ele, "somos nós que a fazemos; para isso é que somos jornalistas".

Mas estamos já no campo da autenticidade e da sua quase impossível avaliação - excepto pelos seus interlocutores - neste género jornalístico. E aqui os problemas adquirem maior melindre, porquanto implicam a denúncia de inaceitáveis processos que, embora longe de constituírem regra, mesmo como excepção não devem ignorar-se e têm de ser combatidos.

Em princípio, a única entrevista autêntica é a concedida "em directo", perante as câmaras de televisão ou os microfones da rádio, desde que se definam previamente os temas em análise e o tempo de participação, com escrupulosa observância das "regras do jogo", que mesmo assim podem ser afectadas por factores adicionais, como a falta de tele ou fonogenia.

A verdade, porém, é que só em situações de excepção este quadro comportamental é assegurado, pelo que os meios audiovisuais, em especial a TV, usam e abusam dos artifícios da montagem, por vezes sacrificando o essencial em proveito do maior número (de caras e factos) no menor tempo (de emissão).

Um exemplo recente de ordem pessoal pode clarificar esta afirmação. Foi no período comemorativo dos 20 anos do 25 de Abril. A SIC procurou-me para recolher um depoimento sobre a forma como se vivera aquela data no "Diário Popular", jornal onde então trabalhava. De tudo o que eu disse (em sucintas respostas às questões que me foram apresentadas pela jornalista Mafalda Costa), a SIC aproveitou escassos segundos, com vista a encaixar o maior número de depoimentos no mínimo de tempo. O pior é que, para atingir esta performance , não hesitou em adulterar o que declarei, cortando-me a palavra e deixando no ar uma ideia oposta à que exprimi.

Passo a explicitar: ao ser interrogado sobre a existência, em Abril de 1974, de um acordo entre jornais que implicava uma fronteira horária a partir da qual o território dos vespertinos não podia ser invadido pelos matutinos e vice-versa, confirmei que, de facto, assim era. Do meio-dia à meia-noite, os vespertinos podiam fazer quantas edições quisessem, o mesmo acontecendo com os matutinos entre a meia-noite e o meio-dia. Mas frisei que no 25 de Abril os matutinos tinham violado este acordo, acrescentando: "E fizeram muitíssimo bem". Como estas últimas palavras foram escamoteadas, acabei por surgir publicamente como um burocrata a querer controlar a Imprensa, de cronómetro em punho, em plena revolução.

Ao fazer-me passar por esta vergonha, a SIC vacinou-me para o futuro. De facto, não será tão cedo que voltam a gravar-me na televisão. Do que aliás ninguém se ressentirá, pois não faltarão jornalistas dispostos a tudo (sobretudo se Ihes pagarem bem) para aparecerem na "máquina que mudou o mundo". Por mim, podem esquecer-me à vontade.

Se, em vez da televisão, a afronta partisse de um jornal, talvez eu tivesse recorrido ao direito de rectificação constante da Lei de Imprensa. Mas alguém se lembra de alguma vez ter televisto esse direito acatado, em defesa do nome de um simples cidadão?

Não se julgue, porém, que os jornais são isentos de percalços destes - e até de alguns bem maiores. Dois exemplos:

Numa altura em que os Beatles eram celebridades mundiais quase inacessíveis, um deles, Paul McCartney, veio passar férias ao Algarve e, ao passar por Lisboa, tinha à perna todos os grandes órgãos de informação portugueses. Acontece, porém, que só Baptista-Bastos, na altura um azougado repórter do "Popular", logrou o "furo" da entrevista, com uma fotografia do Beatle conseguida de raspão à entrada para o automóvel. O autor da fotografia, Marques da Costa, jamais conseguiu entender como o tempo de um instantâneo fotográfico deu para a recolha de tantas declarações...

Mais recentemente, Neves de Sousa, outro sabido repórter do extinto "Diário de Lisboa", publicou naquele jornal uma entrevista-fantasma com o cineasta João Botelho. Tal entrevista teria sido efectuada algures no estrangeiro, durante um festival internacional de cinema em que fora exibido o filme "Tempos Difíceis", daquele realizador. Simultaneamente, em localidade das imediações, o Benfica competia para uma taça europeia. Daí que, enviado especial com a equipa encarnada, Neves de Sousa tivesse aceite o pedido do seu colega Rodrigues da Silva, chefe da secção Cultura/Espectáculos, no sentido de entrevistar João Botelho. Isto no pressuposto de que seria fácil encontrá-lo, visto que o cineasta decerto iria ver o jogo, não só por gostar de futebol e ser adepto do Benfica, mas por viajar acompanhado de sua mulher, a jornalista Leonor Pinhão, que ali se deslocaria também como enviada especial, para fazer a reportagem do encontro.

Nada de estranhar, portanto, que a entrevista tivesse sido efectuada, apenas com esta ressalva: o entrevistado não se lembra de a ter concedido... O mais curioso é que a entrevista não evitava o realismo de certos pormenores, chegando a referir o cigarro nervosamente fumado pela mulher do realizador, facto que gerou algum mal-estar entre Leonor Pinhão e seu pai (o popular jornalista Carlos Pinhão, na altura internado num hospital onde viria a falecer) , visto que ela o presenteara com a piedosa mentira de ter deixado de fumar definitiva e irrevogavelmente (7).

Relembrar isto, agora, porquê e para quê? Pelo prazer da chicana? Para um ajuste de contas retardado com velhos camaradas de profissão, com os quais, aliás, não tenho relações hostis? Nada disso. Apenas pela convicção de que, custe o que custar e doa a quem doer, é sempre tempo de repor a verdade (8). Neste caso concreto para demonstrar, com alguns exemplos devidamente testemunhados, que a entrevista é, de facto, um bico-de-obra, susceptível de múltiplas contrafacções.

Talvez por isso, o Clube de Jornalistas, que instituiu os Prémios Gazeta, sem dúvida o mais prestigiado galardão da Imprensa portuguesa, evitou durante dez anos considerar a entrevista como uma das modalidades a premiar. Agora, porém, decidiu rever a questão, pelo que a entrevista passou a figurar entre os géneros a distinguir. Trata-se, a meu ver, de uma temeridade. O mínimo que, a propósito, eu posso dizer é que não desejaria estar na pele do júri.

Quanto às entrevistas reunidas neste volume, não deixa de ser curioso que o Luiz Pacheco tenha insistido comigo para o prefaciar, depois de o ter criticado pelas afirmações (do meu ponto de vista abomináveis, despropositadas e injustas) que fez à extinta revista "K" sobre Natália Correia - felizmente quando esta ainda era viva e muito senhora de o mandar à merda.

Muitas outras afirmações dele também não as perfilho, mas defendo a liberdade com que as exprime e o direito a exprimi-las. Essa liberdade da má-língua à antiga portuguesa é um sopro de oxigénio que falta à nossa vida literária, ultimamente tão estúpida e acomodatícia que, para a sacudir, provavelmente será pouco o uivo de um coiote "a moribundar".

Não antecipo juízos (faça-os o leitor) sobre as entrevistas que o Luiz Pacheco decidiu seleccionar para este livro. Ele lá sabe porque as escolheu, excluindo outras que entretanto vieram a público. As quatro que seleccionou (e que foram publicadas no "JL", no "Expresso", n' "A Capital" e na revista "K", entre Novembro de 1985 e Julho de 1992) contribuem sem dúvida para acentuar o seu mito de escriba marginal e desbocado. Mito que sempre cultivou e tão do agrado se mostra dos jornalistas que o entrevistam, a avaliar pelo incitamento das perguntas que nesse sentido lhe fazem. Honra lhe seja, Luiz Pacheco raramente os desilude nesse (des)propósito.

Enfim, o prólogo vai longo e, como seu corolário, impõe-se realçar o carácter transgressor deste livro, em que o entrevistado abre um precedente de imprevisíveis efeitos, ao assumir-se como autor das entrevistas de que se reconhece protagonista. Sob tal aspecto o seu procedimento é curiosamente contraditório, pois tanto vai a favor como contra a corrente, assim provocando autêntico redemoinho. De facto, marcha contra a corrente quando subverte a epidemia do culto da personalidade que atingiu a classe jornalística, com vários dos seus representantes a assumirem papel de vedetas e a usarem o nome como imagem de marca, chegando ao cabotinismo de o arvorar em título de programas televisivos (9). Mas em contrapartida reverte esse culto em proveito próprio, ao colocar-se na ribalta sob o mais intenso foco de luz.

Como se vê, Luiz Pacheco não aceita sobreposições de personalidade que lhe atribuam papéis de segunda.

Não é vadio de quem se possa fazer gato-sapato, é um marginal militante.

Em conformidade, nas entrevistas que seleccionou para este volume, trata de confiscar as prerrogativas habitualmente desfrutadas pelos jornalistas, actuando como proprietário do texto e interferindo neste com emendas (de gralhas, mas não só), acrescentos e omissões (10). E abusa, claro está. Porque não estabelece diferenças entre as entrevistas aqui reunidas e a verdade é que todas diferem sob muitos pontos de vista, além de que uma delas (a de António Tavares-Teles, publicada n' "A Capital") tem uma concepção tão personalizada que não permite indecisões em matéria de autoria.

Em todo o caso, se a arte de manipular os elementos recolhidos numa entrevista era, até aqui, atributo exclusivo dos jornalistas, como senhores da última palavra por terem a faca e o queijo na mão, com Luiz Pacheco a situação muda radicalmente. A última palavra pertence, neste caso, ao entrevistado. E tal como Flaubert em relação a Madame Bovary, Luiz Pacheco arroga-se o direito de proclamar: "A entrevista sou eu".

 
NOTAS
 

(1) Para exemplificar casos extremos de falta de autenticidade, lembram-se as lamentáveis entrevistas feitas, em finais de 1993, por jornalistas portugueses ao herói encarcerado da resistência timorense, Xanana Gusmão. Ao recolherem as suas declarações em ambiente de coacção, perante os esbirros indonésios (logo sem qualquer hipótese de o ouvirem exprimir-se livremente), João Gabriel (da SIC/TSF) e Rui Araújo (da RTP), forçaram o código deontológico, privilegiando o sensacionalismo e o espectáculo em detrimento do rigor informativo. Com a agravante, no caso de João Gabriel, de ter formulado perguntas despropositadas que correspondiam a um convite à denúncia.

(2) A credibilidade é um capital tão precioso e custa tanto a obter, que chega a fazer dó a forma como alguns jornalistas o esbanjam, a troco de outras prebendas. Maria Elisa e Joaquim Letria são exemplos paradigmáticos. Inegavelmente talentosos e competentes, a predisposição que manifestam para confundir jornalismo e marketing tem prejudicado a sua credibilidade em proveito de outros valores. Maria Elisa é um caso emblemático de sedução pelo Poder (e pelas variantes do mesmo, desde que assessorou Maria de Lurdes Pintasilgo), chegando ao ponto de ter feito a Cavaco Silva uma entrevista "de conveniência" no tempo de antena do PSD. Posteriormente (e em acumulação com os seus afazeres na RTP) foi assalariada da Fundação Gulbenkian, que a contratou como consultora de imagem, depois de Fernanda Mestrinho ter posto condições para a aceitação desse lugar "por razões deontológicas". Para estupefacção de quem ainda se espanta com estas coisas, Maria Elisa invocou publicamente o aval do presidente da AJP-Associação de Jornalistas Portugueses, Carlos Albino, para o qual este trabalho de marketing não se afigurou incompatível com o exercício da actividade jornalística... A suprema ironia é que a AJP surgiu com o objectivo de suprir as insuficiências e deficiências do Sindicato em matéria deontológica, reivindicando o direito à passagem da Carteira Profissional de Jornalista. Quanto a Joaquim Letria, chegou a ser presidente do Sindicato de Jornalistas (1987/88), mas, uma vez eleito, foi o primeiro a afrontar os princípios éticos e deontológicos da profissão: publicitou roupas como manequim, fez relações públicas, assessorou políticos em campanha eleitoral. Perante as críticas de que foi alvo - e para ficar com as mãos livres sem dar satisfações a ninguém - acabou por depositar a Carteira Profissional no Sindicato dos Jornalistas, decidindo transformar-se em empresário. Entretanto o seu exemplo frutificou. A partir dele foi um fartar vilanagem... São bem conhecidos os casos de Artur Albarran, que alugou a dentadura a uma pasta dentífrica, e de Henrique Garcia, que encenou um telejornal e uma reportagem em directo do exterior para fazer passar por informação a mensagem publicitária de um banco, com o subterfúgio de ter depositado a Carteira Profissional de Jornalista, a fim de estar temporariamente dispensado de respeitar o Código Deontológico! Também Carneiro Jacinto, antigo dirigente do Sindicato dos Jornalistas e hoje alto funcionário do Estado, se distinguiu entretanto como entrevistador "encartado" da SIC, parecendo confiante na desmemória colectiva, ao interrogar muitos entrevistados com a arrogância de quem-não-deve-não-teme, como se ninguém soubesse das gratificações que recebeu da BRISA quando trabalhava no semanário "O Jornal" e, pior do que isso, como se lhe assistisse o direito de preopinar de alto sobre temas de moralidade política, sabendo-se das circunstâncias nada abonatórias que determinaram a sua dispensa da Presidência da República como assessor de Mário Soares. Por que não usou a sua frontalidade de caserna para falar de si próprio?

(3) A dicotomia entrevistador-entrevistado deixa de ter sentido quando se dá a anormalidade de ambos serem a mesma pessoa. Um exemplo lamentável dessa anomalia comprovei-o com o escritor Fernando Namora, o qual, não obstante a reputação de que desfrutava, descia à ignomínia de forjar entrevistas consigo próprio para divulgação na Imprensa, mercê da cumplicidade de jornalistas seus amigos colocados em postos de chefia. Como tais entrevistas surgiam, por norma, a par do lançamento de um novo livro, eram obviamente integradas numa operação promocional que poderíamos classificar de publicidade encapotada. Mais recentemente, o "JL" lançou o género "entrevista-de-rabo-na-boca", que consiste em convidar um escritor (no caso de, por coincidência, ser também jornalista) a entrevistar-se a si próprio, a propósito da publicação de obra sua. É claro que o carácter promocional subsiste, embora não encapotadamente, adquirindo este procedimento contornos de auto-retrato. Em todo o caso, não deixa de ter o seu quê de burlesco. E nem sequer é pertinente o argumento, para o efeito invocado, de que o jornalista, enquanto escritor, se submete ao papel a que tantas vezes sujeita os seus entrevistados, visto que afinal continua, nesta simulação, a ser dono e senhor da primeira à última palavra.

(4) Uma aberrante excepção à norma de um mínimo de dois interlocutores passou-se com o "Diário Ilustrado" nos anos 50. Inseria aquele jornal um suplemento de cultura intitulado "Diálogo", em que me indignou determinado artigo sobre literatura angolana. O texto era da autoria de Reis Ventura, o qual, sob o nome de Vasco Reis, tinha cometido a proeza de arrebatar, com o livro de versos "Romaria" (justamente esquecido), o prémio literário que certo júri recusou à famosa "Mensagem" de Fernando Pessoa. Personagem afecta ao Poder colonial-fascista e orador-mor do regime em Luanda, Reis Ventura apregoava, no tal artigo, os valores da literatura angolana, omitindo deliberadamente o nome e a obra daqueles que, por se situarem no quadrante ideológico mais adverso ao seu, decidiu fingir que não existiam. Com a rebeldia impetuosa dos meus vinte anos, elaborei uma réplica que dirigi ao director do jornal, José Osório de Oliveira. Este, apesar de ao tempo haver Censura e de poder utilizá-la como subterfúgio (atitude comum entre directores de jornais dessa época), teve a cortesia de me escrever para Luanda, onde eu vivia, solicitando-me autorização para substituir algumas expressões eventualmente chocantes por mim utilizadas. Após a publicação do meu artigo, com as alterações propostas, fui procurado por Reis Ventura, o qual, com inexcedível hipocrisia, me manifestou paternal afeição (ou não tivesse ele sido frade...) propondo-me uma curiosa artimanha, que desde logo recusei. Pretendia ele selar a polémica de forma expedita e original, entrevistando-me. E mais: apresentar-me-ia a entrevista inteiramente completa pela sua parte, com introdução, perguntas e final, deixando-me os espaços das respostas em branco para eu preencher como entendesse. A sua liberalidade ia ao ponto de não reclamar a devolução da entrevista, pois eu próprio, depois de lhe acrescentar as respostas, poderia remetê-la ao destino para publicação. Entretanto, ele avisaria do facto o jornalista Amândio César, coordenador do suplemento e seu cúmplice nesta esparrela. A minha terminante recusa não o demoveu, pois a entrevista caiu-me um dia na secretária do jornal "a província de Angola", de que eu era redactor e onde Reis Ventura colaborava. Passei os olhos pelas perguntas e percebi de imediato que, se tivesse a ingenuidade de lhe responder à letra, teria graves complicações com a polícia política, na altura em fase de instalação em Luanda. O risco era desnecessário, pelo que dei ao documento o uso adequado, enfiando-o no caixote do lixo. Porém, a dupla Reis Ventura-Amândio César não desistiu e procedeu à publicação da entrevista mesmo sem as minhas respostas. Com o título provocatório a quatro colunas ("Algumas perguntas a Acácio Barradas"), dizia-se que eu não quisera responder àquele questionário e que o meu mutismo se afigurava esclarecedor, permitindo tirar as respectivas ilações. Devo dizer que estou a citar de memória, mas, se as palavras foram outras, o sentido das insinuações era este. Quer dizer: com respostas ou sem elas, acabei por ser apontado à PIDE, mediante este processo inédito de uma entrevista sem interlocutor, em que o silêncio falou por mim.

(5) Modelo singular deste procedimento é a entrevista que Luiz Pacheco concedeu a Baptista-Bastos para publicação no "JL" em 1985. Tal entrevista é uma das que o entrevistado resolveu seleccionar para o presente volume.

(6) Uma forma de manipulação desacreditante é, por exemplo, a que força o entrevistado a produzir determinada declaração que só pode justificar-se como resposta à pergunta que lhe foi formulada. No caso de o entrevistador escamotear tal pergunta, o entrevistado fica em situação delicada. Muitas vezes pelo receio de que coisas como estas aconteçam, certos entrevistados só prestam declarações a jornalistas da sua confiança, ou sob condição de que lhes seja concedido o direito de conhecer previamente a forma final da entrevista, com a faculdade de a poderem corrigir se necessário. Esta reacção é típica do chamado gato escaldado. Sei do que falo, pois eu próprio já fui trapaceado por jornalistas demasiado expeditos, que me ouviram mal e reproduziram pior: ao registarem afirmações minhas descontextualizadas, conferiram-lhes sentido radicalmente diverso do que exprimi.

(7) É caso para cogitar: se figuras como McCartney e João Botelho podem ser vítimas de contrafacções, então a que extremos de manipulação estarão sujeitos os pobres mortais sem recursos para se defenderem? Quando chefiei a Redacção do "Diário Popular" (1985/90), dei instruções para que a rubrica "A Cara da Gente", que inseria diariamente o depoimento de uma figura do povo, deixasse de ser agendada ao jornalista Orlando Raimundo, hoje redactor do semanário "Expresso", depois de o ter ouvido vangloriar-se de encaixar dicas da sua lavra na boca dos incautos entrevistados.

(8) Em nome da verdade, que advogo não apenas para uso alheio mas também em causa própria, compete-me esclarecer que levei anos a aderir aos princípios éticos e deontológicos que aqui defendo. Entrei para o jornalismo nos anos 50 e, ao longo de mais de uma década, jamais ouvi aflorar, nem mesmo nos cursos de aperfeiçoamente profissional que frequentei, algo que se parecesse com a necessidade de separar a propaganda (era assim que então se dizia) da informação. Muitos jornalistas faziam indistintamente as duas coisas. E alguns deles eram profissionais com a mais alta cotação. Para dar apenas dois exemplos significativos, citarei os nomes de Vítor Direito e Urbano Carrasco. O primeiro, até há pouco PDG do "Correio da Manhã", acumulava as funções de chefe de Redacção do jornal "República" com as de assessor de Imprensa do Casino Estoril; o segundo, além de ser o mais qualificado repórter do "Diário Popular", detinha o exclusivo da publicidade redigida da Torralta. Com tão ilustres exemplos, estive longe de ser a impoluta Virgem Maria. De facto, impulsionado por necessidades materiais, acabei por aderir ao sistema, produzindo alguns textos publicitários, aliás generosamente pagos, para a Agência Latina (onde pontificavam dois antigos jornalistas, Jorge Tavares Rodrigues e José Manuel Tengarrinha) e para a Torralta, por encomenda de Urbano Carrasco. Devo dizer que o primeiro grande alerta, que me fez adquirir consciência sobre o erro deste procedimento, partiu de dois jovens camaradas do "Diário Popular" (Margarida Silva Dias e José Manuel Rodrigues da Silva), em casa dos quais - como já escrevi no "Diário de Notícias" - deparei nos anos 60 com este elucidativo cartaz: "Nunca escrevas nada que não possas assinar". A partir daí questionei o meu próprio procedimento e, aliás, não tardou que essa tomada de consciência alastrasse pela classe jornalística, convertendo-se em Código Deontológico aprovado em assembleia geral do respectivo Sindicato. Desde então, já lá vai mais de um quarto de século, a minha conduta transformou-se radicalmente. Foi como se tivesse readquirido a dignidade perdida.

(9) Casos de "Joaquim Letria", "Artur Albarran", "Carlos Cruz" (o primeiro, como já se disse, depositou a Carteira Profissional; o último tornou-se há muito empresário-produtor, mas assume com frequência o papel de jornalista, nomeadamente quando faz entrevistas). Com tais exemplos vindos do alto não admira que a formiguinha já tenha catarro no caso da jovem Catarina Portas. Por efeito do apelido e da ajuda promocional da televisão (além do talento e da beleza que indiscutivelmente possui) cedo surgiu como vedeta-entrevistadora no "Diário de Noticias", beneficiando de inusitado suporte publicitário e com o seu nome a pontificar sobre o do entrevistado. Aliás, só este aspecto (de que certamente a principal responsabilidade não é sua) se afigura eticamente criticável, pois a questão da precedência não é de somenos numa entrevista. Ela pode ser interpretada como conferindo ao entrevistado um estatuto menor ou secundário, o que se afigura absurdo e deselegante da parte de quem entrevista. De facto, há uma flagrante diferença entre os cabeçalhos em que se leia "Catarina Portas entrevista... Fulano de Tal" e "Fulano de Tal entrevistado... por Catarina Portas". A ordem dos factores não é obviamente arbitrária. Se, em sentido figurado, aceitarmos o pressuposto de que o órgão de comunicação social é a casa onde o jomalista-entrevistador é anfitrião, a mais elementar cortesia determina-lhe que receba o entrevistado como seu convidado, dando-lhe precedência e nunca precipitando-se a entrar pela porta à sua frente. Em consequência de tal entendimento, alguns problemas tive de defrontar no exercício de cargos de chefia, ao impedir a violação desta norma de conduta por jornalistas contaminados pelo vírus do vedetismo. Vírus a que não estão imunes profissionais tão qualificados como Miguel Sousa Tavares, a avaliar pelos anúncios que a SIC fez inserir na Imprensa sobre o seu programa "20 Anos, 20 Nomes". Neste caso, porém, a precedência atribuída ao entrevistador era atenuada por um efeito gráfico, segundo o qual o nome do entrevistado figurava em tipo de letra mais destacada. Refira-se ainda como contraste exemplar, a atitude de Joaquim Furtado ao rejeitar a utilização do seu nome para título do programa que veio a chamar-se "Casa Comum". Enfim, um sinal animador de que ainda há jornalistas que não gostam de confundir-se com os produtos e aos quais a televisão não conseguiu, por enquanto, dar volta ao miolo...

(10) Algumas das alterações que o Luiz Pacheco diz ter introduzido nos textos, atribui-as ele ao facto de três das entrevistas aqui reunidas terem sido gravadas e de a sua voz sumida poder ter dado origem a algumas confusões. É uma explicação plausível, sobretudo em casos tão flagrantes como o da entrevista ao "Expresso" que o apresenta a vender "Casal Garcia" a cinco paus na Feira do Livro, quando em boa verdade ele vendia a "Carta a Garcia". Mas garantir que não foi além de simples rectificações como esta, quem não o conhecer que ponha as mãos no fogo.