MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Maria do Céu Costa
A Fundação Marques da Silva, no Porto (Marquês), abriu ao público com várias exposições que não se confinam à arquitetura, incluídas aquelas de que tive a oportunidade de falar no artigo antes publicado no Triplov, «Fundação Marques da Silva», patentes no jardim, constituídas por detritos e ruínas da própria casa. Uma das exposições de interior, identificada como «Siza: Unseen & Unknown / Inédito & Desconhecido», dá-nos a ver, pela primeira vez em Portugal, três séries de desenhos da família: dele, Álvaro Siza, da esposa, Maria Antónia Siza, e do filho, Álvaro Leite Siza, pelo menos no que toca a imagens por mim recolhidas.
Esta exposição foi «desenvolvida no Museu do Desenho de Arquitetura, em Berlim», e estou a citar do panfleto informativo, «bem como no Museu de Arte Tsinghua, em Pequim. Projetada pelo Arq. António Choupina, em co-curadoria com a Dr.h.c. Kristin Feireiss, a mostra explora um tema lançado pelo centenário da Bauhaus, a partir da (des)conhecida obra de Álvaro Siza: o legado académico, familiar e profissional.». Mais adiante, o panfleto menciona que «Gropius (1883-69) deu continuidade aos ideais de Taut (1880-38): conceber o edifício do futuro, que seria arquitectura, escultura e pintura em simultâneo». Ora esta tríade, concebida por Taut, pode ser apreciada nas exposições da Fundação Marques da Silva, sem esquecer palacete, atelier e jardim, o que assinala a grande modernidade destas mostras de abertura ao público. Ou seja, a parte arquitetónica da Fundação, embora antiga casa de brasileiro, absorveu aspetos importantes das artes plásticas da modernidade, ficando assim todo o recinto impregnado no que de mais contemporâneo podemos ver no Porto.
Entre os desenhos de Maria Antónia, dominados por grupos de mulheres, assinalo, por preferência pessoal, o torso nu de mulher crucificada e o retrato do marido; nos do filho, Álvaro Leite, muito graciosos, louvando a esbelteza dos corpos jovens, destaca-se o pan-erotismo. Aliás, a vertente erótica é comum aos três.Três desenhadores, duas gerações, unidos num elo de uma similitude que decerto vem apenas da circunstância de serem desenhos executados com os mesmos materiais, por pessoas que viveram na mesma casa, partilhando assim saberes, técnicas, instrumentos e afetos.
Os desenhos de Siza, em princípio, não pretenderiam ingressar na área das artes plásticas exibíveis, não obstante alguns, como o desdobrável de, salvo erro, noventa desenhos, feitos numa só noite, dificilmente poderem considerar-se doodles, rabiscos, como é a maior parte dos outros, em que se nota que o arquiteto escapa à precisão do projeto técnico, poetando à margem. Só estes noventa desenhos, livres, tanto quanto vi, do projeto arquitetónico, podiam dar lugar a uma exposição.
É muito interessante, e quem sabe se pioneira entre nós (os desenhos, na maioria, remontam a décadas anteriores à data de 2020), a assunção do rabisco como arte em pé de igualdade com qualquer outra. Foi a modernidade que se apropriou dele como expressão estética, e pode aproximar-se, pela pouca vigilância a constrangê-lo, da escrita automática. Automatismo de escrita e automatismo de desenho são muito característicos do surrealismo. Na Wikipédia, vemos, além da menção a rabiscos famosos, executados por monarcas, uma descrição do que é talvez mais conhecido nas artes plásticas como doodle, em inglês:
«Um sarrabisco[1], gatafunho[2] ou rabisco, ou ainda o termo estrangeiro doodle é um tipo de esboço ou desenho realizado ao acaso, quando uma pessoa está distraída ou ocupada. São desenhos simples que podem ter significado concreto de representação ou simplesmente representar formas abstratas.»
«Muitos exemplos podem ser encontrados em cadernos escolares, muitas vezes à margem, desenhados por alunos distraídos ou desinteressados durante uma aula. Ou ainda, durante as conversas telefônicas se uma caneta e papel estiverem disponíveis».
«Geralmente os sarrabiscos incluem caricaturas de professores ou colegas de escola, pessoas famosas ou personagens de desenhos animados, seres fictícios, paisagens, formas geométricas, banners com legendas e animações feitas desenhando-se uma sequência de cenas em várias páginas de um livro ou caderno.».
Os doodles que primeiro vi, há alguns trinta anos, expostos na Cooperativa Diferença, em Lisboa, com assinatura da artista Joana Rosa, não eram rabiscos, sim pequenos objetos tridimensionais, feitos de papel amarrotado. Se ainda consigo identificar a exposição, ela tinha precisamente por título, «Doodles». No caso de Álvaro Siza, são devaneios à margem de riscos propriamente de arquiteto, que aguarda ou ganha inspiração para a casa no convívio com as mais flexíveis e inquietas ondas da arte pura, ou fundamental, como da ciência se diz, quando a queremos distinguir da aplicada.